Quase 130 mil vidas poderiam ser salvas em 2021 se o Brasil tivesse iniciado uma campanha massiva de vacina��o contra a covid-19 ainda em janeiro.
Essa � uma das conclus�es de um trabalho assinado por pesquisadores da Universidade de S�o Paulo (USP) e da Funda��o Get�lio Vargas (FGV), que realizou essas contas no final de fevereiro.
O assunto voltou aos holofotes nos �ltimos dias, em raz�o dos depoimentos da CPI da Covid e das den�ncias de corrup��o nas negocia��es de compras de vacinas.
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Em 24 de junho, o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), declarou no Senado Federal que "o atraso na compra das vacinas da Pfizer e da CoronaVac resultou em 95,5 mil mortes".
"Outros pesquisadores, usando um m�todo inclusive mais robusto que o nosso, estimaram 145 mil mortes especificamente pela falta de aquisi��o de vacinas tempestivamente pelo Governo Federal", disse o pesquisador na CPI.
No dia seguinte, a sess�o que ouviu os irm�os Luis Miranda (DEM-DF), deputado federal, e Luis Ricardo Miranda, servidor do Minist�rio da Sa�de, foi marcada pelo detalhamento das acusa��es de press�o para compra de vacinas que sequer haviam finalizado os estudos cl�nicos, enquanto a negocia��o de imunizantes de outros fornecedores se arrastou por semanas ou at� meses.
Nos �ltimos dias, o jornal Folha de S.Paulo revelou um novo epis�dio, em que um suposto representante de uma empresa americana afirma que funcion�rios do Minist�rio da Sa�de teriam "cobrado" um extra de US$ 1 (R$ 5) por dose para fechar a compra de 400 milh�es de unidades da vacina da AstraZeneca.
Diante de tantos fatos, vem a pergunta: o que poderia ter acontecido com a pandemia no Brasil se a aquisi��o de vacinas tivesse sido feita sem atrasos e percal�os, para que a campanha se iniciasse com anteced�ncia?
Os c�lculos indicam que muitas vidas poderiam ter sido salvas.
O que mostram as pesquisas?
Como mencionado no in�cio da reportagem, um dos trabalhos que melhor estimou o impacto de uma campanha de vacina��o ampla e r�pida foi realizado por representantes da USP e da FGV.
Num trabalho publicado em 23 de fevereiro de 2021, eles propuseram um modelo matem�tico para entender como o atraso na vacina��o poderia impactar o n�mero de casos e mortes por covid-19.
Os resultados, que foram divulgados num artigo que est� em pr�-print e ainda n�o foi revisado por outros especialistas, revelam que 127 mil mortes poderiam ter sido evitadas no Brasil se a campanha tivesse come�ado "em condi��es ideais" no dia 21 de janeiro de 2021.

Para que esse n�mero de vidas salvas fosse atingido no final do ano, os autores entendem que seria necess�rio aplicar cerca de 2 milh�es de doses todos os dias quantidade que, para a estrutura j� dispon�vel no Sistema �nico de Sa�de (SUS), n�o seria um exagero ou algo fora da realidade.
O c�lculo tamb�m revela que, conforme as semanas passam, esse n�mero de vidas salvas ao longo do ano diminui: caso uma campanha massiva s� se iniciasse em 21 de fevereiro, a taxa de mortes evitadas cairia para 86 mil.
Em mar�o, esse n�mero ficaria em 54 mil. Em abril, seria reduzido para 30 mil. Em maio, para 16 mil.
"Ao que tudo indica, a vacina��o em massa no Brasil s� deve come�ar de fato em agosto. [...] Para que um cen�rio diferente fosse poss�vel, essa negocia��o [de compra de vacinas] deveria ter sido feita j� no ano passado", analisou o professor de matem�tica aplicada Eduardo Massad, autor principal do estudo, numa entrevista para a Ag�ncia Fapesp em mar�o de 2021.
Na mesma reportagem, Massad tamb�m chamou a aten��o para o fato de que todos os resultados de casos e mortes por covid-19 eram subestimados, pois n�o consideravam a chegada das variantes do coronav�rus, capazes de tornar as curvas epid�micas ainda mais acentuadas.
A import�ncia de ser �gil
Uma segunda investiga��o, tamb�m divulgada em pr�-print por cientistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), refor�a a necessidade de vacinar o maior n�mero de pessoas no menor espa�o de tempo poss�vel.
O c�lculo levou em conta uma s�rie de vari�veis, como a efic�cia dos imunizantes dispon�veis no pa�s, o potencial que esses produtos possuem de prevenir casos moderados, graves, interna��es ou mortes e at� a percep��o de risco que as pessoas que j� tomaram suas doses possuem sobre as outras medidas preventivas, como o uso de m�scaras e o distanciamento f�sico.
Mesclando todos esses fatores, o estudo chegou a um total de 18 cen�rios diferentes de como a vacina��o poderia influenciar o ritmo da pandemia no pa�s.
Um exemplo: se 630 mil pessoas fossem vacinadas por dia com a CoronaVac, a vacina mais prevalente no Brasil, numa hip�tese em que ela protege 100% contra os quadros mais severos, seria poss�vel diminuir em 45% as mortes por covid-19.
Por�m, se o n�mero de imunizados aumentasse para 1,2 milh�o/dia, a queda dos �bitos seria de 65%.
J� no caso da AZD1222, de AstraZeneca, Universidade de Oxford e FioCruz, essas porcentagens seriam ainda maiores: o uso de 630 mil doses a cada 24 horas levaria a uma redu��o de 57% no n�mero de v�timas. J� com 1,2 milh�o de vacinados, daria para chegar a um n�mero 74% menor de �bitos.

Por mais que essas porcentagens pare�am abstratas e longe da nossa realidade, o f�sico m�dico Thomas Vilches, um dos autores do estudo, entende que elas sinalizam algo essencial: a necessidade de botar o p� no acelerador e ampliar o acesso � vacina��o.
"Nosso trabalho evidencia que as taxas de efic�cia de um imunizante ou outro nem fazem tanta diferen�a quando pensamos em termos coletivos. O mais importante mesmo � a velocidade com que se vacina a popula��o", resume o especialista em modelagem matem�tica de doen�as infecciosas, que hoje � consultor da Universidade Yale, nos Estados Unidos.
Efeitos j� aparentes
H� ainda uma terceira evid�ncia s�lida dos ganhos que um programa �gil de vacina��o contra a covid-19 pode trazer.
Ela vem da observa��o dos grupos que iniciaram a campanha e j� est�o com praticamente 100% de seus integrantes protegidos com as duas doses, como � o caso dos profissionais da sa�de e dos idosos.
Um time de pesquisadores da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), da Universidade Harvard e do Minist�rio da Sa�de avaliou justamente essa quest�o em uma pesquisa divulgada recentemente, no dia 19 de junho.
Os autores apontam que, nas seis primeiras semanas de 2021, 25% das mortes por covid-19 ocorreram entre pessoas com mais de 80 anos. A partir de maio e junho, essa faixa et�ria passou a representar apenas 12% dos �bitos registrados.
O mesmo fen�meno foi observado nos indiv�duos de 75 a 79 anos algumas semanas depois.
Mas o que ajuda a explicar esse decl�nio, mesmo num momento em que a segunda onda estava em pleno vapor pa�s adentro?
Justamente a vacina��o veloz com foco nos mais velhos.
"O r�pido aumento da cobertura vacinal entre idosos brasileiros foi associado a quedas importantes na mortalidade relativa em compara��o com indiv�duos mais jovens", escrevem os cientistas.
"Se as taxas de mortalidade entre os idosos permanecessem proporcionais ao que foi observado at� a semana 6 [entre janeiro e fevereiro], seriam esperadas 43.802 mortes adicionais relacionadas � covid-19 at� a semana 19 [entre maio e junho]", concluem.
Agora, j� imaginou o que poderia ter ocorrido se mais brasileiros tivessem acesso � vacina ainda neste primeiro semestre de 2021?
Perguntas sem respostas
Apesar de todos esses modelos e contas seguirem uma linha de racioc�nio e darem uma ideia do tamanho da oportunidade perdida, � realmente complicado colocar na balan�a todos os fatores que poderiam influenciar nesse cen�rio.
E boa parte dessas incertezas e vari�veis se deve ao fato de a vacina��o ter um efeito coletivo: quando algu�m recebe as duas doses, n�o est� apenas se protegendo, mas impedindo que novas cadeias de transmiss�o do v�rus sejam criadas e afetem outras pessoas.
Vamos a um exemplo pr�tico desse fen�meno: depoimentos e documentos compartilhados na CPI revelam que a Pfizer fez uma oferta de 70 milh�es de doses de vacinas para o Brasil ainda em agosto e setembro de 2020, mas n�o obteve respostas para seguir com as negocia��es.
Segundo esses mesmos relatos, a farmac�utica se comprometia a entregar as primeiras 1,5 milh�o de unidades ainda em dezembro do ano passado.
Considerando que o imunizante necessita de duas doses para conferir a prote��o desejada, isso significa que esse primeiro lote contemplaria cerca de 750 mil brasileiros.
E � justamente a� que vem a grande quest�o: n�o seriam apenas esses primeiros 750 mil contemplados ainda no final de 2020 que ficariam mais protegidos do coronav�rus e de suas complica��es, mas toda a rede de contatos deles se beneficiaria disso.
Ora, se a vacina impede a transmiss�o do agente infeccioso (ou ao menos as suas manifesta��es mais graves, que exigem interna��o e intuba��o), esse primeiro grupo de vacinados j� representaria uma poss�vel "quebra" nas cadeias de transmiss�o.
E isso, por tabela, reduziria n�o apenas o surgimento de novos casos, como tamb�m a taxa de interna��es e mortes pela doen�a.
"Acontece que as epidemias e pandemias crescem de forma exponencial. Uma pessoa infectada passa o v�rus para duas, que transmite para quatro e assim por diante", diz Vilches.
"Agora, se voc� impede que a primeira pessoa dessa cadeia se infecte, os benef�cios disso tamb�m s�o exponenciais, pois voc� deixa de passar o v�rus adiante", completa o especialista.
E todo esse pensamento sinaliza que, caso a vacina��o come�asse com for�a total j� em dezembro de 2020 ou janeiro de 2021, seria poss�vel prevenir um grande n�mero de casos e de mortes que aconteceram dali em diante no Brasil.

O atual cen�rio
Se considerarmos que a vacina��o contra a covid-19 teve in�cio no dia 17 de janeiro de 2021, isso significa que j� se passaram 165 dias de campanha.
At� o momento, 99,8 milh�es de imunizantes j� foram aplicados (considerando as primeiras e segundas doses), o que significa uma m�dia de 608 mil vacinas utilizadas todos os dias.
Vale notar que esse n�mero est� abaixo das metas estabelecidas tanto no estudo da USP e da FGV quanto no trabalho feito por especialistas da Unicamp e da Unesp.
Outro ponto de destaque � a falta de const�ncia no ritmo de imuniza��o: enquanto tivemos dias com recordes absolutos, como � o caso de 23 de abril (1,7 milh�o de doses aplicadas) e 17 de junho (2,2 milh�o de doses), h� momentos em que os postos de sa�de parecem viver no marasmo total.
A boa not�cia � que a m�dia mensal de vacina��o est� subindo, como mostra a lista abaixo:
- Janeiro: 192.424 doses/dia
- Fevereiro: 247.824 doses/dia
- Mar�o: 556.574 doses/dia
- Abril: 743.164 doses/dia
- Maio: 626.876 doses/dia
- Junho: 808.677 doses/dia
Mas, novamente, � preciso destacar que o Brasil pode muito mais: com a estrutura do Programa Nacional de Imuniza��es (PNI) j� dispon�vel e distribu�da por todas as regi�es, seria poss�vel alcan�ar tranquilamente uma m�dia de 1,5 a 2 milh�es de vacinados todos os dias.
E essa meta j� foi obtida em experi�ncias anteriores, como as campanhas de imuniza��o contra a poliomielite e a gripe.
Al�m da import�ncia da rapidez na vacina��o, Vilches apela para a urg�ncia em lidar com outros dois desafios do momento: continuar respeitando as medidas n�o farmacol�gicas de preven��o, como o uso de m�scaras e o distanciamento social, e desencorajar o comportamento de preferir um tipo de vacina ou outro.
"A grande ironia das medidas de controle � que, quanto mais elas fazem efeito e diminuem os n�meros de casos e mortes, menos necess�rias elas parecem aos olhos da sociedade", observa o especialista.
"Mas � importante notar que, enquanto n�o tivermos uma boa parcela da popula��o vacinada, todos esses cuidados b�sicos seguem necess�rios", recomenda.
Outro ponto � o fen�meno dos "sommeliers de vacinas", que querem escolher qual produto ser� aplicado neles alguns preferem a Pfizer, outros v�o de AstraZeneca e assim por diante.
Esse tipo de atitude n�o faz nenhum sentido em nosso atual momento, entende o pesquisador.
"N�o podemos achar que nossa prote��o individual � mais importante que toda a imunidade coletiva gerada quando boa parte da popula��o j� recebeu as suas doses", diz.
"E ser� justamente essa imunidade coletiva que permitir� a gente sair da pandemia no futuro", completa.
O outro lado
A reportagem da BBC News Brasil procurou o Minist�rio da Sa�de para saber como o Governo Federal interpreta o ritmo de vacina��o contra a covid-19 no pa�s.
A resposta veio por meio de uma nota enviada pela assessoria de imprensa, que diz que o minist�rio "n�o mede esfor�os para ampliar a vacina��o da covid-19 em todo pa�s, com o objetivo de alcan�ar toda a popula��o vacin�vel at� o final de 2021. O Brasil atingiu uma marca importante que demonstra o avan�o na vacina��o: ultrapassou a casa de 129 milh�es de doses distribu�das para todo o Brasil e mais de 98 milh�es de doses aplicadas. Al�m disso, a pasta tamb�m antecipou mais de 16 milh�es de doses, que chegariam no segundo trimestre, para dar celeridade � campanha de imuniza��o".
O texto tamb�m informa que j� foram contratadas 600 milh�es de doses e elas ser�o entregues at� o final do ano: "O quantitativo � suficiente para imunizar toda a popula��o brasileira vacin�vel, de 160 milh�es de pessoas. A pasta esclarece que depende das entregas dos fabricantes para realizar a distribui��o aos estados."
Por fim, os respons�veis pela comunica��o do minist�rio dizem que h� uma intensifica��o das a��es "que promovam a comunica��o e mobiliza��o social sobre os benef�cios da imuniza��o, a import�ncia do alcance das coberturas vacinais, bem como a preven��o da doen�a. Al�m disso, estimula estados, munic�pios e Distrito Federal na busca ativa dos indiv�duos para completar o esquema vacinal".
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