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Estado de Minas

Supor que democracia era irrevers�vel foi um dos maiores erros hist�ricos, diz historiadora

A jornalista e historiadora americana Anne Applebaum analisa em entrevista os perigos enfrentados pelo sistema de governo ocidental que muitos consideraram triunfante h� alguns anos.


03/09/2021 06:09 - atualizado 03/09/2021 06:32

Anne Applebaum é vencedora do Prêmio Pulitzer e autora do livro 'O Crepúsculo da Democracia'
Anne Applebaum � vencedora do Pr�mio Pulitzer e autora do livro 'O Crep�sculo da Democracia' (foto: Anne Applebaum)

� primeira vista, pode ser dif�cil encontrar algum fator comum entre a polariza��o pol�tica nos pa�ses latino-americanos e europeus, os movimentos populistas nos Estados Unidos, Brasil e na Hungria ou o comportamento dos governos da Venezuela e da Pol�nia.

No entanto, a jornalista e historiadora americana Anne Applebaum relaciona esses fen�menos como sintomas de um enfraquecimento global da democracia liberal, o sistema de governo que muitos consideravam triunfante apenas alguns anos atr�s.

Autora do livro O Crep�sculo da Democracia Como o Autoritarismo Seduz e as Amizades S�o Desfeitas em Nome da Pol�tica , Applebaum afirma em entrevista � BBC News Mundo (servi�o em l�ngua espanhola da BBC) que essa tend�ncia � diferente em termos hist�ricos, mas tamb�m n�o a considera irrevers�vel.

Ela acredita que a pandemia de Covid-19 pode ter enfraquecido alguns governantes, como Jair Bolsonaro, j� que a crise mundial de sa�de "tem levado algumas pessoas a entender que esse tipo de populismo desenfreado e esses movimentos antici�ncia, antievid�ncias, antim�dia e antifato t�m um custo".

Ela defende que haja um debate maior sobre o papel das m�dias sociais nas democracias, sobretudo em pa�ses como o Brasil, mas se diz contra censuras e remo��es de material.

A sa�da seria discutir regula��es p�blicas e tornar mais transparente a forma como algoritmos das m�dias sociais difundem mensagens.

"Seria muito �til para os pa�ses latino-americanos se envolverem mais no debate atual sobre como reformar a Internet e como tornar as m�dias sociais mais civilizadas", diz a autora.

"Existem especialistas muito bons no Brasil com quem conversei, assim como em outras partes do continente, que pensaram muito sobre como as redes sociais podem ser alteradas e reformadas", acrescenta.

Confira abaixo a entrevista com a autora que vive boa parte do ano na Pol�nia.

Ela � vencedora do Pr�mio Pulitzer pelo seu livro Gulag , sobre a hist�ria dos campos de concentra��o sovi�ticos.


BBC News Mundo: A democracia liberal foi amea�ada de muitas maneiras no passado, por ideologias e movimentos inimigos, como o fascismo ou o comunismo. O que torna o momento atual t�o especial em termos hist�ricos?

Anne Applebaum: O que torna o momento atual especial � que as democracias mais antigas e est�veis s�o as que agora est�o amea�adas.

O enfraquecimento da democracia n�o est� acontecendo apenas em lugares que recentemente passaram a ter governos democr�ticos, mas tamb�m em lugares como os EUA, Gr�-Bretanha e Fran�a, que t�m uma longa experi�ncia com a democracia.

A segunda coisa que torna isso diferente � o fato de que um fen�meno semelhante est� ocorrendo em tantos pa�ses ao mesmo tempo.

Esta n�o � uma quest�o de pol�tica americana, brasileira, filipina, turca ou h�ngara. Movimentos e estados de �nimo pol�ticos muito semelhantes podem ser vistos em pa�ses que n�o t�m nada a ver uns com os outros.

O ataque ao Capitólio por partidários de Donald Trump em janeiro marcou um momento de crise para a democracia dos EUA
O ataque ao Capit�lio por partid�rios de Donald Trump em janeiro marcou um momento de crise para a democracia dos EUA (foto: EPA)

O que os EUA, a Hungria e as Filipinas t�m em comum hist�rica, pol�tica e sociologicamente? No entanto, todos eles sofrem de problemas muito semelhantes. E acho que isso torna esse momento diferente dos anteriores.

BBC: Voc� v� esse fen�meno, "o decl�nio da democracia", como algo irrevers�vel talvez?

Applebaum: N�o. O t�tulo do livro n�o � uma previs�o; � mais uma quest�o. N�o acho que nada seja irrevers�vel.

Na verdade, acho que um dos erros que cometemos nas �ltimas d�cadas foi supor que a pr�pria democracia era irrevers�vel.

Em outras palavras, uma vez que voc� tinha uma democracia em funcionamento, voc� n�o precisava fazer nada demais para mant�-la.

Voc� podia deixar que pol�ticos profissionais se preocupassem com isso e podia ir fazer qualquer outra coisa, como ganhar dinheiro ou pintar quadros.

Na realidade, nada � inevit�vel. O decl�nio da democracia n�o � inevit�vel, mas tamb�m n�o � inevit�vel a sobreviv�ncia da democracia.

Se ela vai diminuir ou sobreviver, isso depende das decis�es que tomamos todos os dias.

BBC: No final de seu livro, voc� diz que "n�o h� solu��o final" e "nenhum roteiro para uma sociedade melhor". Mas uma das grandes quest�es que enfrentamos agora � como as democracias liberais podem enfrentar as teorias da conspira��o e o que voc� chama de "mentiras m�dias", usando a defini��o do historiador Timothy Snyder, sem limitar a liberdade de express�o, sem tornar o rem�dio pior do que a doen�a. O que voc� pensa sobre isso?

Applebaum: Essa � uma das quest�es mais dif�ceis que enfrentamos hoje. Esta � uma das explica��es por que a democracia est� em perigo em tantos lugares: que o espa�o da informa��o � muito mais contest�vel e fr�gil do que jamais foi.

J� escrevi sobre isso e acho que as respostas podem estar em algumas formas de regulamenta��o: n�o simplesmente censurar ou remover coisas, mas ter regulamenta��o p�blica e um maior entendimento de como funcionam os algoritmos que espalham mensagens nas redes sociais e outras plataformas atrav�s da Internet.

Al�m disso, espero que os governos democr�ticos levem mais a s�rio a cria��o de alternativas de servi�o p�blico e encontrem novas maneiras de usar a Internet para discuss�es e debates p�blicos.

Embora o Facebook, o Twitter, o Google e o YouTube sejam projetados para criar deliberadamente mais raiva, empolga��o e debates menos racionais, precisamos de algumas formas de debates p�blicos projetadas para criar um bom di�logo e um consenso.

Applebaum é crítica do impacto que a mídia social tem no debate público
Applebaum � cr�tica do impacto que a m�dia social tem no debate p�blico (foto: AFP)

Isso � tecnologicamente poss�vel. Ainda n�o temos um modelo de neg�cios, mas � uma das coisas que as democracias podem fazer juntas para resolver esse problema.

Acho que � uma das coisas mais dif�ceis que temos de fazer agora. Voc� tem raz�o, � algo muito primordial.

BBC: Voc� cita a pesquisa da psic�loga pol�tica Karen Stenner sobre preconceitos autorit�rios e diz que as pessoas costumam ser "atra�das por ideias autorit�rias porque a complexidade as incomoda". Voc� pode explicar isso?

Applebaum: Algumas pessoas preferem que o mundo seja unificado, que todos ao seu redor concordem, que haja uma mensagem �nica e clara dos l�deres de seu pa�s.

Eles ficam incomodados com discuss�es, debates e trocas de ideias agressivas. E alguns se incomodam com a complexidade e as nuances.

Eles gostariam que seus l�deres pudessem oferecer explica��es simples sobre o mundo ao seu redor e solu��es simples que possam ser endossadas com entusiasmo.

Muitas pessoas n�o gostam de ouvir que existem respostas m�ltiplas, que temos que chegar a um acordo com os demais e que isso pode levar tempo.

Ent�o, eles come�am a preferir sistemas pol�ticos autorit�rios e unificados que n�o lhes d�o esse tipo de op��o.

BBC: Uma das grandes tend�ncias atuais que voc� descreve em seu livro � o surgimento de movimentos nacionalistas e de extrema-direita. Voc� diria que a pandemia refor�ou essa tend�ncia at� agora ou a enfraqueceu? Algu�m poderia argumentar que Donald Trump n�o teria perdido a elei��o do ano passado se n�o fosse pela pandemia, que tamb�m enfraqueceu l�deres como Jair Bolsonaro no Brasil...

Applebaum: � uma pergunta muito dif�cil de responder. Certamente nos primeiros dias da pandemia parecia bastante claro que muitos l�deres autorit�rios iriam tentar us�-lo para ganhar mais poder, para reprimir jornalistas, para reprimir a oposi��o pol�tica. E isso aconteceu em v�rios pa�ses.

Mas � claro que a pandemia tamb�m gerou diferentes rea��es contr�rias.

Primeiro, uma esp�cie de rea��o antigovernamental e antiestado que vemos em muitos lugares, e tamb�m uma demanda por ci�ncia neutra, por sa�de p�blica, por um governo mais inteligente.

Esses desejos se desenvolveram de maneiras diferentes no mundo.

Na verdade, eu discordo, acho que a pandemia de alguma forma ajudou Donald Trump.

Lembre-se de que sua resposta � pandemia foi: "Devemos ignorar isso tudo, devemos seguir em frente, tudo vai ficar bem."

E temo que muitas pessoas gostaram dessa mensagem de que n�o deveriam fazer nada em particular, de que n�o precisavam mudar seu modo de vida.

Ent�o � complicado, n�o sei se podemos dizer como a pandemia afetou a reelei��o de Trump.

Mas � verdade que em alguns pa�ses, certamente em algumas partes dos EUA, no Brasil e em outros lugares, a pandemia tem levado algumas pessoas a entender que esse tipo de populismo desenfreado e esses movimentos antici�ncia, antievid�ncias, antim�dia e antifato t�m um custo.

� dif�cil para mim dizer quantas pessoas entenderam isso e quantas refor�aram seu entendimento.

É difícil estabelecer o quanto a pandemia afetou líderes como Jair Bolsonaro no Brasil, diz Applebaum
� dif�cil estabelecer o quanto a pandemia afetou l�deres como Jair Bolsonaro no Brasil, diz Applebaum (foto: Reuters)

Mas est� bem claro que os pa�ses que tinham as melhores burocracias de sa�de p�blica e onde havia mais confian�a entre o povo e o governo tiveram o melhor desempenho durante a pandemia.

Seja na Alemanha, Coreia do Sul ou Taiwan, esses lugares se sa�ram melhor do que os EUA e o Brasil, onde os l�deres anticient�ficos dificultaram muito o combate � pandemia.

BBC: A democracia tamb�m est� em crise em v�rias partes da Am�rica Latina, onde as institui��es s�o menos fortes do que nos EUA e na Europa. Existe algum conselho ou li��o que a regi�o deveria aprender com o que est� acontecendo no mundo ocidental?

Applebaum: Na verdade, cheguei � conclus�o de que a crise n�o � t�o diferente no Brasil, na Hungria ou nos EUA como se poderia acreditar.

Eles deveriam ser muito diferentes. E dever�amos pensar que as democracias mais novas t�m institui��es mais fracas. Mas n�o estou segura disso.

Me parece que a crise tem muito mais a ver com profundas d�vidas sobre a globaliza��o e a economia global, com o surgimento de regimes autorit�rios em outros lugares.

E ent�o, como j� mencionamos, eles t�m a ver sobretudo com essa mudan�a na natureza da informa��o.

Seria muito �til para os pa�ses latino-americanos se envolverem mais no debate atual sobre como reformar a Internet e como tornar as m�dias sociais mais civilizadas.

Existem especialistas muito bons no Brasil com quem conversei, assim como em outras partes do continente, que pensaram muito sobre como as redes sociais podem ser alteradas e reformadas.

Para a regi�o, acho que seria muito importante que os parlamentos, presidentes e l�deres se envolvessem mais na compreens�o de quais s�o os problemas e na reflex�o sobre como a regulamenta��o poderia funcionar.

Eles t�m uma grande influ�ncia na Internet em espanhol e portugu�s e podem fazer uma grande diferen�a.

BBC: Voc� visitou a Venezuela no in�cio de 2020 e diz em seu livro que o pa�s se assemelha "aos antigos Estados marxista-leninistas" e "aos novos regimes nacionalistas" ao mesmo tempo. Por qu�?

Applebaum: Hugo Ch�vez e agora Maduro usam essa linguagem marxista e algumas de suas pol�ticas econ�micas envolveram formas muito primitivas de nacionaliza��o e destrui��o da empresa privada, que guarda semelhan�a com o passado.

Mas, na realidade, os m�todos que eles usaram para controlar a conversa p�blica na Venezuela e tomar o poder foram muito semelhantes aos usados por autocratas nacionalistas em outros lugares, come�ando por enfrentar a m�dia e minar a oposi��o.

Segundo Applebaum, os problemas da democracia na América Latina podem ser semelhantes aos de outras partes do mundo
Segundo Applebaum, os problemas da democracia na Am�rica Latina podem ser semelhantes aos de outras partes do mundo (foto: Getty images)

Acima de tudo, existe a ideia de que abaixo de Ch�vez est�o os verdadeiros venezuelanos, e que os oponentes [de Ch�vez] s�o de alguma forma falsos, traidores, elites ou forasteiros, e ent�o h� permiss�o para violar a lei, minar o Estado de direito e destruir institui��es porque ele tem o apoio da "verdadeira" Venezuela, e n�o da "falsa" Venezuela esse tipo de ret�rica populista � a mesma que pode ser ouvida na Turquia, R�ssia ou Hungria.

Nesse sentido, algumas das t�ticas e t�cnicas que o regime venezuelano utilizou para chegar ao poder s�o bastante conhecidas.

No ano passado, eu dei uma aula nos EUA em que comparei o regime venezuelano ao atual governo polon�s.

Dado que o regime venezuelano se autodenomina socialista bolivariano contra a Igreja, e uma vez que o partido governante polon�s � muito pr�-Igreja e muito nacionalista, na superf�cie eles parecem ser bem diferentes.

Mas se voc� olhar como eles se comportam e qual � sua atitude em rela��o �s institui��es, h� muitas semelhan�as.

BBC: Mas voc� v� isso como um exemplo de que n�o h� mais uma distin��o na maneira como a extrema-direita ou a extrema-esquerda tendem a governar?

Applebaum: N�o generalizo muito porque nem todos os pa�ses s�o iguais. Mas sim, � verdade que a extrema-esquerda e a extrema-direita t�m muito em comum.

E tamb�m � verdade que, em termos gerais, muitas das antigas divis�es entre esquerda e direita s�o muito menos importantes do que costumavam ser.

O que importa muito mais � a divis�o entre quem respeita ou n�o o Estado de direito, a independ�ncia dos tribunais, quem acredita e n�o acredita na liberdade de express�o, em estar integrado com o resto do mundo e fazer parte da comunidade internacional.

Essas quest�es s�o muito mais importantes agora do que muitos dos argumentos tradicionais sobre o tamanho do Estado.

BBC: A retirada das tropas americanas do Afeganist�o e a tomada do poder pelo Taleb� s�o outro sinal do decl�nio da democracia ocidental no mundo?

Applebaum: As circunst�ncias s�o um pouco diferentes. Na realidade, os EUA v�m se retirando lentamente do Afeganist�o h� anos. A miss�o da Otan terminou formalmente l� em 2014. Portanto, isso j� dura h� algum tempo.

Quaisquer que sejam as raz�es pol�ticas dom�sticas para a retirada dos EUA e os argumentos sobre se foi prudente ou tolo faz�-lo neste momento, o impacto � que estamos observando em tempo real como um movimento autocr�tico, tir�nico, mis�gino e violento se impondo sobre uma sociedade que tinha elementos de liberaliza��o, que teve muito mais sucesso do que h� 20 anos e criou um espa�o de maior liberdade para mulheres e minorias.

A tomada do poder pelo Talebã no Afeganistão
A tomada do poder pelo Taleb� no Afeganist�o "� uma esp�cie de golpe psicol�gico para o mundo democr�tico", disse Applebaum (foto: Getty Images)

Estamos vendo como essa destrui��o acontece. Ent�o, sim, � uma esp�cie de golpe psicol�gico para o mundo democr�tico, mesmo que obviamente n�o fosse essa a inten��o da retirada.

BBC: Em seu livro, voc� tamb�m cita uma frase do fil�sofo franc�s Jean-Fran�ois Revel, que disse no final de 1973 que o diagn�stico do capitalismo parecia mais com um obitu�rio. E voc� ressalta que esse mesmo diagn�stico "parece se aplicar ao presente". Voc� diria que tamb�m h� um decl�nio do capitalismo neste momento?

Applebaum: Depende do que voc� entende por capitalismo. N�o vejo o neg�cio privado desaparecendo e n�o vi ningu�m criar uma alternativa � economia privada que seja melhor do que as que existem.

� verdade que h� muito precisamos de uma reforma de nossas estruturas financeiras internacionais cleptocr�ticas. As institui��es que tornam a lavagem de dinheiro poss�vel nesta forma de capitalismo autocr�tico e cleptocr�tico n�o s�o realmente capitalismo, � uma esp�cie de capitalismo estatal que domina tantos pa�ses.

Acho que h� muito espa�o para reformas e h� maneiras pelas quais nossos mercados financeiros t�m caminhado na dire��o errada. Mas n�o vejo que algu�m tenha criado qualquer alternativa.


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