O crescimento econ�mico sem emprego a capacidade de produzir cada vez mais bens e servi�os com cada vez menos trabalho humano � uma das tend�ncias do mundo do trabalho evidenciadas pela pandemia que vieram para ficar, avalia o soci�logo italiano Domenico De Masi.
Criador no in�cio dos anos 2000 do conceito de "�cio criativo" a ideia de que o justo equil�brio entre trabalho, estudo e descanso favorece a capacidade inventiva , De Masi opina que a �nica maneira de evitar que o desemprego aumente de forma incontrol�vel � reduzir as horas de trabalho � medida em que a tecnologia avan�a.
O soci�logo tamb�m defende o Estado de bem-estar social e pol�ticas de renda b�sica universal, num mundo onde o emprego � cada vez mais inst�vel.
"� cada vez mais frequente uma experi�ncia de trabalho composta por m�ltiplos empregos que se sucedem e se entrela�am, intercalados com per�odos de desemprego; empregos tempor�rios, "gig economy" [economia dos aplicativos], contratos peri�dicos", enumera De Masi.
"Isso induz todos os trabalhadores a um sentimento de precariedade", diz o soci�logo.
"Uma vez que o tempo para encontrar trabalho, ou reencontr�-lo, ser� mais longo, nos interst�cios, ser� necess�rio que todos tenham a garantia de uma sobreviv�ncia digna, assegurada atrav�s de uma renda b�sica de cidadania e, posteriormente, de uma renda universal", defende.
Cr�tico de Jair Bolsonaro (PL), amigo do ex-presidente Luiz In�cio Lula da Silva (PT) e entusiasmado pelo Brasil, De Masi citava o pa�s como um exemplo para o resto do mundo, em seu livro O futuro chegou, publicado em 2013 ano em que, � despeito dos grandes protestos nas ruas, o Brasil registrou uma das menores taxas de desemprego de sua hist�ria, �s v�speras da profunda crise econ�mica que teria in�cio no ano seguinte no governo de Dilma Rousseff.
"Depois de ter copiado a Europa por 450 anos e os Estados Unidos por mais de 50 anos, agora que ambos os mitos-modelos est�o em profunda crise, o gigante latino-americano est� sozinho consigo mesmo, enfrentando seu futuro", diz De Masi, sobre o Brasil.
"Esta � uma situa��o inquietante, que pode se dissolver em confus�o ou pode gerar o modelo sem precedentes que o mundo precisa. Acredito firmemente nessa segunda hip�tese."
Confira os principais trechos da entrevista concedida por Domenico De Masi � BBC News Brasil.
O soci�logo participou em novembro do evento Semin�rios Cultura e Democracia, organizado pelo Instituto Cultura e Democracia, Funda��o Friedrich Ebert Brasil e Funda��o Perseu Abramo.
BBC News Brasil - Quais s�o, na sua avalia��o, as mudan�as mais importantes no mercado de trabalho causadas pela pandemia?
Domenico De Masi - Ap�s a pandemia, e por causa dela, o mercado de trabalho sofrer� mudan�as significativas. O lockdown prolongado tornou necess�rio fechar muitos neg�cios e, portanto, tem causado uma redu��o acentuada em suas atividades e a fal�ncia das empresas mais fr�geis, com a consequente demiss�o de toda ou parte de sua for�a de trabalho.
Enquanto isso, as empresas que tinham capital para investir adotaram novas tecnologias, substituindo o trabalho humano. Por fim, a dissemina��o do trabalho remoto, permitindo que milh�es de pessoas trabalhassem em casa, possibilitou reduzir o uso de ve�culos, combust�veis e refeit�rios de empresa etc., causando desemprego nesses setores.
Enquanto isso, a grande transforma��o do trabalho que come�ou h� 200 anos continuou.
Os oper�rios, que no in�cio do s�culo 20 representavam a grande maioria da popula��o ativa em todo o mundo industrializado, agora, substitu�dos por m�quinas eletromec�nicas e rob�s, foram reduzidos a apenas um ter�o; outro ter�o � composto por funcion�rios, por sua vez, substitu�dos por computadores; outro ter�o, por fim, � representado por trabalhadores criativos: executivos, gerentes, dirigentes, empres�rios, profissionais, cientistas, artistas.
O que est� claro para n�s tamb�m hoje � que a pandemia ama bilion�rios.
Em 2020, de acordo com o �ndice de Bilion�rios da Bloomberg, a fortuna total dos 500 mais ricos do mundo cresceu 31% em rela��o ao ano anterior.

BBC News Brasil - Quais dessas mudan�as devem se tornar permanentes?
De Masi - Nos �ltimos anos, a oferta de m�o de obra cresceu porque a popula��o mundial aumentou, mas a demanda diminuiu devido ao progresso tecnol�gico.
O trabalho que as m�quinas nunca poder�o tirar do homem � o de natureza cognitiva e criativa.
� f�cil prever que, para os respons�veis pelas tarefas executivas, sejam eles trabalhadores manuais ou administrativos, as horas de trabalho semanais ser�o progressivamente reduzidas, enquanto seu tempo livre aumentar�.
Gra�as ao trabalho remoto, o trabalho vai se desconstruindo cada vez mais no tempo e no espa�o; para os trabalhadores criativos, o limite entre o trabalho e o n�o trabalho ser� cada vez mais t�nue, dando vida �quela ociosidade criativa em que estudo, trabalho e lazer coincidem.
As tr�s mudan�as que a pandemia tem evidenciado, e que certamente permanecer�o nos pr�ximos anos, s�o o crescimento sem emprego (jobless growth), ou seja, a capacidade de produzir cada vez mais bens e servi�os com cada vez menos trabalho humano; a dissemina��o do trabalho remoto e a difus�o do com�rcio eletr�nico.
O trabalho remoto representa um primeiro passo na revolu��o hist�rica que est� mudando nossa vida profissional e familiar: uma revolu��o que continuar� mesmo ap�s a pandemia e que ningu�m poder� impedir.
Em dezenas de organiza��es, a experi�ncia do trabalho remoto realizada for�osamente nos �ltimos meses tem sido acompanhada por pesquisas sociol�gicas para monitorar seus efeitos.
A maioria dos chefes entrevistados diz que a produtividade geral de seus funcion�rios aumentou, e a maioria dos trabalhadores diz estar disposta a continuar trabalhando remotamente mesmo ap�s a pandemia.
Quanto ao com�rcio eletr�nico, durante a pandemia, ele cresceu exponencialmente.
Antes do in�cio da pandemia, a Amazon valia US$ 916,2 bilh�es; ap�s um ano, valia US$ 1,6 trilh�o. Em 2020, Jeff Bezos, dono da Amazon e o homem mais rico do mundo, faturou US$ 8,99 bilh�es por m�s. Sua fortuna pessoal passou de US$ 115 bilh�es em 2019 para US$ 196 bilh�es em 2020.
Se distribu�sse apenas uma parte desse valor, dando um b�nus de US$ 10 mil para cada um de seus 840 mil funcion�rios no mundo, talvez ele nem percebesse.

BBC News Brasil - O senhor tem falado com entusiasmo sobre o trabalho remoto. Mas, no Brasil, onde o acesso � tecnologia � muito desigual e os empregos informais de baixa remunera��o s�o a maioria, o trabalho remoto durante a pandemia se mostrou um privil�gio dos trabalhadores de maior n�vel educacional. N�o � ut�pico falar sobre como o trabalho remoto permite o lazer criativo em sociedades t�o desiguais?
De Masi - O trabalho remoto diz respeito ao trabalho intelectual e requer aparatos tecnol�gicos como o computador e a internet.
Portanto, � necess�rio criar as condi��es para que todos os cidad�os possam ter acesso � internet, n�o apenas para o trabalho remoto, mas tamb�m para se informar, conectar e interagir diariamente.
Por�m, para todos aqueles que realizam o trabalho no escrit�rio, mas que possuem equipamentos tecnol�gicos adequados para fazer o mesmo trabalho em casa, deveria ser imediatamente permitido o trabalho remoto.
Em muitos casos, n�o s�o defici�ncias tecnol�gicas, mas defici�ncias culturais que dificultam a dissemina��o do trabalho � dist�ncia.
Muitos chefes especialmente chefes de pessoal se op�em ao trabalho remoto por um conceito antiquado de poder que eles identificam como um controle constante, f�sico e obsessivo de seus funcion�rios.
BBC News Brasil - Como os pa�ses devem responder ao avan�o do desemprego e da desigualdade em um mercado de trabalho em transforma��o, que expulsa os menos qualificados, ao mesmo tempo em que cria poucas novas posi��es, altamente especializadas?
De Masi - Nos �ltimos 200 anos, quatro grandes ondas tecnol�gicas se sucederam: a das m�quinas mec�nicas no in�cio do s�culo 19; a das m�quinas eletromec�nicas no in�cio do s�culo 20; a da tecnologia da informa��o nas �ltimas d�cadas do s�culo 20; e a da intelig�ncia artificial atualmente.
Cada uma dessas ondas tirou empregos dos homens, substituindo-os por m�quinas e causando o desemprego tecnol�gico. As primeiras m�quinas e rob�s substitu�ram oper�rios; computadores substitu�ram funcion�rios; a intelig�ncia artificial substituir� gestores e profissionais.
Em outras palavras, estamos aprendendo a produzir cada vez mais bens e servi�os com menos trabalho humano. Cem anos atr�s, havia 40 milh�es de italianos que, em um ano, trabalhavam 70 bilh�es de horas; hoje s�o 60 milh�es e trabalham 40 bilh�es de horas.
Ainda assim, eles produzem infinitamente mais. Este � o fen�meno do crescimento sem emprego, que se acentuar� com a difus�o das biotecnologias, nanotecnologias, novos materiais, impressoras 3D, plataformas, reconhecimento de voz e intelig�ncia artificial.
A �nica maneira de evitar que o desemprego aumente de forma incontrol�vel � reduzir as horas de trabalho � medida que a tecnologia avan�a.
Segundo dados da OCDE [Organiza��o para a Coopera��o e Desenvolvimento Econ�mico], um franc�s trabalha 34,4 horas por semana e um alem�o, 30,8 horas. N�o surpreende que o n�vel de emprego seja de 70% na Fran�a e 79% na Alemanha.
Recentemente, a imprensa relatou os resultados de um experimento realizado na Isl�ndia com 2.500 m�dicos, enfermeiros e policiais, para testar o que acontece quando se trabalha uma hora a menos por dia pelo mesmo sal�rio.
Como os resultados t�m sido excelentes em todos os aspectos, os empregadores e sindicatos islandeses concordaram em reduzir as horas de trabalho de 40 para 35 horas semanais para 86% de todos os trabalhadores daquele pa�s, mantendo os sal�rios inalterados.

BBC News Brasil - Qual ser� o papel da renda b�sica universal neste novo mundo?
De Masi - Durante dois s�culos, a sociedade industrial se concentrou na seguran�a: o jovem de 18 anos que entrava numa empresa sabia que permaneceria l� at� a aposentadoria e sabia de antem�o os anos de aumento do seu sal�rio e a progress�o de sua carreira.
Com o triunfo da economia neoliberal, a partir dos anos 1980, sob [o presidente americano Ronald] Reagan e [a primeira-ministra brit�nica Margareth] Thatcher, o fen�meno da precariza��o se acentuou e os riscos aumentaram.
Para quem trabalha, aumentou a inseguran�a, a dura��o e intensidade do trabalho, a flexibilidade, a multiatividade, a informalidade e a descontinuidade. Para quem n�o trabalha, aumentou a precariedade e a mis�ria, a desorienta��o e a depress�o.
Costuma-se dizer que, para erradicar a pobreza, � necess�rio crescimento econ�mico.
Primeiro Reagan e depois Bush pai [o presidente americano George H. W. Bush] implementaram as ideias neoliberais dos economistas [Simon] Kuznets e [Arthur] Laffer de que os impostos dos ricos deveriam ser reduzidos para incentiv�-los a investir e, ao mesmo tempo, desencoraj�-los de sonegar impostos. Dessa forma, essa riqueza crescente beneficiaria os pobres, aliviando sua condi��o.
Em vez disso, a hist�ria mostra que o n�mero de pobres aumenta, mesmo quando a riqueza cresce, porque sabemos como produzir riqueza, mas n�o sabemos, ou n�o queremos, distribu�-la.
Portanto, se queremos evitar que a pobreza se traduza em conflito e que o conflito transborde para a viol�ncia, devemos recorrer ao Estado de bem-estar social.
� cada vez mais frequente uma experi�ncia de trabalho composta por m�ltiplos empregos que se sucedem e se entrela�am, intercalados com per�odos de desemprego; empregos tempor�rios, gig economy [economia dos aplicativos], contratos peri�dicos, etc.
Isso induz todos os trabalhadores a uma sensa��o de precariedade. Como disse o soci�logo franc�s Andr� Gorz: 'Uma coisa � certa: somos todos, potencialmente, excedentes'.
Uma vez que o tempo para encontrar trabalho, ou reencontr�-lo, ser� mais longo, nos interst�cios, ser� necess�rio que todos tenham a garantia de uma sobreviv�ncia digna, assegurada atrav�s de uma renda b�sica de cidadania e, posteriormente, de uma renda universal.

BBC News Brasil - Qual o senhor acredita ser o futuro dos empregos da gig economy? H� alguma maneira de os trabalhadores recuperarem direitos em um mundo onde os consumidores se acostumaram a servi�os cada vez mais baratos e r�pidos?
De Masi - O com�rcio eletr�nico torna os consumidores c�mplices dos produtores em detrimento dos transportadores.
Os empregos da gig economy aumentar�o cada vez mais em n�mero e a explora��o desses trabalhadores ser� cada vez mais cruel, at� que eles se sindicalizem radicalmente ou at� que sejam completamente substitu�dos por drones e pela intelig�ncia artificial.
Por enquanto, a vit�ria do neoliberalismo sobre o socialismo � esmagadora. Isso se deve ao fato de que os explorados perderam a consci�ncia de classe, n�o se sindicalizam, n�o se organizam para lutar contra aqueles que os exploram e nem mesmo sabem precisamente quem os explora.
BBC News Brasil - Em 2013, em seu livro O Futuro Chegou, o senhor citava o Brasil como um exemplo para o resto do mundo. Agora, o Brasil � considerado um contraexemplo, por suas a��es durante a pandemia e na quest�o ambiental. Onde as coisas deram errado?
De Masi - Como disse Tom Jobim: "O Brasil n�o � para amadores". Apenas amadores podem pensar que o regime de Bolsonaro ser� duradouro e que o modelo cultural brasileiro pode ser alterado em quatro anos.
Esse modelo, como observei no livro O Futuro Chegou, e como explicaram os grandes antrop�logos brasileiros, � feito de mesti�agem, sincretismo, alegria, sensualidade, simpatia, hospitalidade, solidariedade, esperan�a e beleza.
�, portanto, um modelo de humanismo corporal, precioso para toda a humanidade.
� um imenso patrim�nio de livros, pesquisas, reportagens, monumentos, pinturas, filmes, fotografias, al�m de lugares e objetos, que cobrem o per�odo de muitos s�culos densos de obras, descobertas e inven��es.
O brasileiro � informal, trabalha em mangas de camisa e sabe atuar em grupos, � fluido em seus processos de tomada de decis�o, n�o tem preconceitos ideol�gicos, aprende fazendo, tende a combinar trabalho com divers�o, presta servi�os de forma atenciosa, af�vel, afetuosa.
Essa identidade cont�m uma intelig�ncia grande, muito vital, mas tamb�m uma fragilidade juvenil, e � essa fragilidade que tornou poss�vel a conquista do poder por um governo bruto e neoliberal como o atual. Um governo que, com suas veias totalit�rias, � particularmente capaz de acentuar o infantilismo das massas e neutralizar a maturidade das elites.
BBC News Brasil - Lula � atualmente o primeiro colocado nas pesquisas de inten��o de voto para as elei��es presidenciais do Brasil em 2022. Como o senhor v� um poss�vel retorno dele � Presid�ncia?
De Masi - O papel desempenhado por Lula durante seus dois mandatos presidenciais consistiu em dar voz � classe mais baixa. Em n�meros absolutos, foram criados 20 milh�es de empregos durante suas duas presid�ncias, enquanto 40 milh�es de brasileiros pobres ingressaram na "classe C".
Uma revolu��o t�o radical em um pa�s t�o desigual, por um lado, levou alguns pol�ticos do PT a cair em um del�rio de onipot�ncia, entregando-se � corrup��o.
Por outro lado, amedrontou o capitalismo internacional que, em resposta a essa revolu��o, tirou Lula de cena com um duplo golpe, midi�tico e judici�rio.
Lula � hoje uma figura pol�tica ainda mais valiosa para a esquerda mundial do que era h� vinte anos.
Ele sabe que a doen�a senil do socialismo est� em ter perdido o contato com os pobres, ter renunciado � sua fun��o pedag�gica para com aos explorados, ter negligenciado a forma��o de vanguardas capazes de exercer uma lideran�a competente nas lutas pol�ticas.
BBC News Brasil - � poss�vel para o Brasil "reinventar seu futuro"?
De Masi - N�o s� � poss�vel, � certo! Pessoalmente, acredito que, assim que esse infeliz par�ntese do governo Bolsonaro acabar, o modelo de vida e sociedade historicamente elaborado pelo Brasil retomar� toda sua vitalidade.
Seu sucesso no mundo, � claro, depender� da capacidade dos brasileiros de se mobilizar, organizar, agir com mais racionalidade sem perder a simpatia, modernizar sem comprometer a sustentabilidade, de ser, talvez, menos improvisadores, sem perder a criatividade.
Depois de ter copiado a Europa por 450 anos e os Estados Unidos por mais de 50 anos, agora que ambos os mitos-modelos est�o em profunda crise, o gigante latino-americano est� sozinho consigo mesmo, enfrentando seu futuro.
Esta � uma situa��o inquietante, que pode se dissolver em confus�o ou pode gerar o modelo sem precedentes que o mundo precisa.
Acredito firmemente que essa segunda hip�tese se realizar� e que o Brasil retomar� sua jornada de grande democracia, alimentada pelo humanismo e pela criatividade.
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