
Em pouco mais de dois anos, o tratamento da covid-19 evoluiu bastante. Atualmente, existem rem�dios testados e aprovados para todas as fases da doen�a — desde os quadros mais leves e iniciais at� os mais graves e avan�ados.
O problema, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, � que boa parte desses medicamentos n�o est� dispon�vel no pa�s, apesar de j� serem utilizados em larga escala em outras partes do mundo.
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"N�s estamos num ponto de evolu��o em que temos medica��es orais contra a covid. E o Brasil est� 'comendo poeira' das ag�ncias regulat�rias de outros pa�ses", critica a pneumologista e pesquisadora Let�cia Kawano Dourado, uma das respons�veis pelas diretrizes de tratamento da covid-19 feitas pela Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS).
"Falamos de tratamentos capazes de transformar a covid de uma doen�a amea�adora em algo mais brando. Alguns deles, quando prescritos nos primeiros dias ap�s o diagn�stico, conseguem prevenir a hospitaliza��o em cerca de 70 a 80% dos pacientes que t�m mais risco de desenvolver quadros graves", continua.
"J� temos esses f�rmacos em uso na Uni�o Europeia, no Reino Unido, nos Estados Unidos, no Canad�… Outro dia eu comentei que o brasileiro n�o tem acesso a nenhum dos tratamentos e um colega no Jap�o ficou chocado e disse que nem conseguia imaginar como isso era poss�vel", completa.
Veja a seguir que tratamentos s�o esses, como eles funcionam e porque ainda n�o est�o dispon�veis no pa�s.
Antivirais: o verdadeiro tratamento precoce contra a covid
Em linhas gerais, esses rem�dios impedem a replica��o do coronav�rus no organismo. Com isso, o pat�geno deixa de invadir as c�lulas e h� menos probabilidade de o quadro infeccioso se agravar e necessitar de suporte hospitalar.
At� o momento, tr�s medica��es desse grupo j� foram testadas e aprovadas em v�rios pa�ses: o remdesivir (da farmac�utica Gilead Sciences), o paxlovid (Pfizer) e o molnupiravir (MSD).
Por ora, o �nico deles que est� liberado no Brasil pela Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa) � o remdesivir.
Esse f�rmaco � administrado por 5 a 10 dias, atrav�s de uma infus�o intravenosa (na veia)
At� o final do ano passado, o rem�dio da Gilead era oferecido aos pacientes numa fase mais avan�ada da doen�a. Mas os resultados obtidos eram question�veis — e existia at� uma discord�ncia sobre a indica��o dele, com os Institutos Nacionais de Sa�de dos Estados Unidos sugerindo o uso do remdesivir, enquanto a OMS n�o fazia essa mesma recomenda��o.
Mas um estudo publicado em 22 de dezembro no peri�dico The New England Journal of Medicine revelou que a aplica��o precoce desse antiviral, logo nos primeiros dias de covid, resultou num risco 87% menor de hospitaliza��o ou morte entre pacientes de alto risco, como idosos, obesos ou portadores de doen�as card�acas e renais, em compara��o com quem tomou placebo (subst�ncia sem nenhum efeito terap�utico).
Apesar de estar aprovado no pa�s, o uso do remdesivir, na pr�tica, � bem restrito: em 2021, o tratamento foi avaliado pela Comiss�o Nacional de Incorpora��o de Tecnologias no Sistema �nico de Sa�de (Conitec), �rg�o do Minist�rio da Sa�de que define quais novidades (rem�dios, exames, aparelhos…) ser�o comprados e distribu�dos na rede p�blica do Brasil.
� �poca, a decis�o foi a de n�o incorporar esse medicamento no SUS.
Como j� citado acima, a classe dos antivirais � composta de outras duas op��es al�m do rendesivir: o paxlovid e o molnupiravir.
Uma grande vantagem deles � o fato de serem comprimidos, que podem ser tomados em casa, sem necessidade de ir at� uma cl�nica de infus�o ou um hospital.

"Nos estudos, o paxlovid chegou a reduzir em mais de 70% as hospitaliza��es e os �bitos nas popula��es vulner�veis � covid", calcula o m�dico Jos� David Urbaez Brito, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia do Distrito Federal.
H� tr�s detalhes importantes no uso desses antivirais. O primeiro � que eles devem ser prescritos logo no in�cio da infec��o, de prefer�ncia nos primeiros cinco dias.
Segundo, s� faz sentido dar essas medica��es para aqueles pacientes com maior risco de desenvolver as complica��es da doen�a, como idosos, obesos e portadores de doen�as pulmonares, card�acas e renais.
Nos demais indiv�duos, a tend�ncia da covid-19 � evoluir sem a necessidade de grandes interven��es farmacol�gicas.
Terceiro, os dois tratamentos precisam ser disponibilizados por um pre�o razo�vel — de nada adianta eles serem aprovados e custarem milhares de reais, o que impede o acesso � maioria das pessoas.
"Esses antivirais reduzem o tempo de hospitaliza��o e a necessidade da UTI, o que significa uma economia importante para todo o sistema de sa�de", analisa o m�dico e pesquisador Luciano Cesar Azevedo, professor de emerg�ncias da Faculdade de Medicina da Universidade de S�o Paulo (USP).
"Mas, para que sejam incorporados no SUS, a rela��o custo-benef�cio precisa ser favor�vel. Ou seja, eles n�o podem chegar no Brasil com um pre�o exorbitante, porque isso pode anular o benef�cio de evitar interna��es e todos os custos humanos e financeiros disso", completa o especialista, que tamb�m atua no Hospital S�rio-Liban�s, na capital paulista.
Embora j� sejam aprovados e utilizados na pr�tica em locais como Estados Unidos, Canad�, Reino Unido e Austr�lia, n�o existem perspectivas claras de quando o paxlovid ou o molnupiravir chegar�o ao Brasil.
A Anvisa recebeu um pedido para libera��o emergencial do molnupiravir, da MSD, em 26 de novembro e recentemente realizou reuni�es com a Pfizer para colher informa��es sobre o paxlovid.
Procurada pela BBC News Brasil, a ag�ncia encaminhou um link de seu site oficial com informa��es dos tratamentos j� aprovados contra a covid. N�o h�, por�m, nenhuma men��o aos dois antivirais ou quando eles podem ficar dispon�veis no pa�s na lista "medicamentos em an�lise" disponibilizada na p�gina.
Anticorpos monoclonais: uso � precoce, mas pre�o dificulta acesso
"Esses medicamentos costumam agir contra a prote�na spike, estrutura que fica na superf�cie do coronav�rus e se liga aos receptores de nossas c�lulas para dar in�cio � infec��o", explica Azevedo.
"Os anticorpos monoclonais 'grudam' nessa prote�na e ativam a resposta imune para remover o v�rus do organismo", completa o m�dico.
At� o momento, quatro f�rmacos dessa classe foram aprovados pela Anvisa: regdanvimabe (da farmac�utica Celltrion Healthcare), casirivimabe/imbevimabe (Regeneron/Roche), sotrovimabe (GSK) e banlanivimabe/etesevimabe (Eli Lilly).
O tempo � um fator chave para o sucesso dessas terapias. "Falamos de medicamentos indicados para pacientes de alto risco, mas que ainda est�o numa fase precoce e sem complica��es da covid, e n�o foram hospitalizados", pontua Azevedo.
Esses rem�dios s�o aplicados em ambiente hospitalar, por meio de infus�es venosas.

O problema, mais uma vez, est� no acesso. Azevedo, que trabalha em dois dos maiores hospitais da Am�rica Latina, diz que nunca conseguiu prescrever esses f�rmacos para pacientes com covid.
"A disponibilidade � muito baixa e limitada. � raro ver essas drogas sendo usadas na pr�tica", aponta.
O pre�o � uma das principais barreiras � disponibilidade delas por aqui: o tratamento chega a custar entre 10 e 20 mil reais por paciente.
Para piorar, nenhuma dessas drogas foi incorporada no SUS.
Na avalia��o de Dourado, a aus�ncia dos anticorpos monoclonais na rede p�blica de sa�de fez com que o acesso a eles se tornasse praticamente nulo por aqui.
"Muitas farmac�uticas decidiram que s� iriam negociar com os governos nacionais. No Brasil, portanto, quase ningu�m consegue fazer esse tratamento, nem com plano de sa�de", conta.
"Mesmo que alguma pessoa ou operadora de sa�de fa�a a importa��o dessas medica��es diretamente, o valor vai ser absurdamente mais alto e h� o risco de atrasos por quest�es burocr�ticas que podem inviabilizar o uso do tratamento nos primeiros dias da doen�a", acrescenta a m�dica.
A Conitec avaliou, por exemplo, o uso do rem�dio banlanivimabe/etesevimabe no SUS, mas, em agosto, decidiu n�o fazer a incorpora��o.
Essa avalia��o leva em conta as evid�ncias cient�ficas dispon�veis e o custo-benef�cio em incluir a terapia no sistema p�blico, entre outros quesitos.
A comiss�o afirmou que n�o existiam "dados sobre seguran�a e efic�cia em pessoas previamente vacinadas", n�o foram encontrados "dados de seguran�a para utiliza��o dos medicamentos em pacientes mais inst�veis" e que "os dados sobre o uso do medicamento s�o preliminares".
Dourado lamenta a decis�o e o tempo para que ela fosse tomada — a Anvisa aprovou esse tratamento em maio e a Conitec s� bateu o martelo quase quatro meses depois. "O Brasil perdeu a oportunidade de salvar vidas usando esse medicamento".
"E pior que, se voc� demorar muito, perde-se o tempo em que o tratamento pode ser utilizado. O banlanivimabe/etesevimabe, por exemplo, parece perder efic�cia agora contra a variante �micron."
"Tivemos uma janela de oportunidade para baixar o risco de hospitaliza��o de pacientes que foi desperdi�ada", completa.
Anti-inflamat�rios: restritos aos casos mais graves, est�o amplamente dispon�veis
Quando a infec��o pelo coronav�rus evolui e fica mais s�ria, a resposta do sistema imunol�gico deixa o corpo num estado inflamat�rio.
O problema � que essa inflama��o pode sair do controle e acabar prejudicando o funcionamento de �rg�os vitais, como o cora��o e os pulm�es.
� justamente para regular essa resposta imune exagerada que os m�dicos lan�am m�o dos anti-inflamat�rios.
Em pacientes com quadros mais graves de covid, o rem�dio mais utilizado dessa classe � a dexametasona.
"Esse � um corticoide antigo, barato e totalmente dispon�vel", entende Azevedo.
Mais recentemente, surgiram outras duas op��es que tamb�m atuam sobre a inflama��o nos quadros mais graves de covid: os inibidores do receptor da interleucina-6, como o tocilizumabe (Roche), e os inibidores da janus quinase, caso do baracitinibe (Eli Lilly).
Em linhas gerais, a recomenda��o � que os m�dicos usem a dexametasona e eventualmente adicionem mais um outro desses medicamentos, a depender de determinados crit�rios t�cnicos.

Alguns desses tratamentos, inclusive, j� eram usados para outras doen�as com fundo inflamat�rio, como a artrite reumatoide.
De acordo com o site da Anvisa, o baracitinibe est� aprovado para o tratamento da covid no Brasil — j� no caso do tocilizumabe, que est� recomendado pela OMS, os m�dicos costumam fazer o uso off-label (fora da bula) no pa�s para os pacientes com quadros mais severos de covid.
Segundo os especialistas, a disponibilidade desses f�rmacos no pa�s n�o � t�o preocupante, uma vez que eles j� eram prescritos por aqui antes mesmo de a pandemia come�ar.
"Em alguns lugares, essas medica��es acabaram faltando no momento mais grave, durante o primeiro semestre de 2021. Mas, com a diminui��o dos casos no segundo semestre, o acesso voltou a se normalizar", relata Azevedo.
"Mas, na pr�tica, temos usado pouco esses outros rem�dios [inibidores e interleucina-6 e inibidores de janus quinase] em compara��o com a dexametasona", conclui.
� poss�vel melhorar o acesso aos tratamentos contra a covid-19?
Na avalia��o de Urbaez Brito, o Brasil poderia usar toda a sua tradi��o em combater doen�as infecciosas para negociar com as farmac�uticas.
"O Minist�rio da Sa�de sempre foi brilhante e tem uma enorme experi�ncia em comprar grandes quantidades de tratamentos modernos indicados para outras enfermidades, como as infec��es pelo HIV ou pela hepatite C", conta.
"E isso sem contar que, quando consideramos o tamanho do pa�s e da popula��o, falamos de grandes volumes. Isso � muito atrativo para as farmac�uticas e facilita a compra por um pre�o menor", aposta o infectologista.

J� Dourado acredita que o governo deveria ser mais �gil nos processos de aprova��o, compra e distribui��o dos rem�dios.
"As ag�ncias regulat�rias dos Estados Unidos, da Uni�o Europeia e de outras partes do mundo conseguem acesso antecipado aos dados dos testes cl�nicos dos medicamentos. Assim, elas j� fazem a an�lise em tempo real e aceleram a aprova��o", compara.
"Me parece que o Brasil est� atrasado em todas as etapas. � necess�rio fazer um monitoramento dos estudos que est�o em curso, entrar em contato com as farmac�uticas, ter acesso �s informa��es antecipadamente, fazer avalia��es e recomenda��es, j� negociar contratos…", lista.
"Da�, assim que a Anvisa aprovar o tratamento, ele j� ficaria dispon�vel para os pacientes com rapidez", conclui a pneumologista.
A BBC News Brasil entrou em contato com o Minist�rio da Sa�de para obter um posicionamento oficial a respeito da disponibilidade dos tratamentos contra a covid-19 no pa�s, especialmente na rede p�blica, por�m n�o foi enviada nenhuma resposta at� a publica��o desta reportagem.
J� a Ag�ncia Nacional de Sa�de Suplementar (ANS), �rg�o que � respons�vel por regulamentar os planos de sa�de e define quais tratamentos s�o de cobertura obrigat�ria ou n�o pelas operadoras, enviou uma nota de esclarecimentos por e-mail.
No texto, a ag�ncia afirma que "os medicamentos para o tratamento da covid-19 (rendesivir, casirivimabe/imdevimabe, banlanivimabe/etesevimabe, regdanvimabe, sotrovimabe e baricitinibe) n�o possuem cobertura para a utiliza��o ambulatorial e/ou domiciliar".
"Todavia, se prescritos pelo m�dico assistente para administra��o durante a interna��o (interna��o hospitalar ou interna��o domiciliar substitutiva � interna��o hospitalar), quando respeitadas as indica��es de suas bulas, os referidos medicamentos ter�o cobertura obrigat�ria", finaliza a nota.
No entanto, apesar da cobertura obrigat�ria garantida pela ANS, o acesso a esses medicamentos na rede privada esbarra nas dificuldades de importa��o e na curta janela de oportunidade para o uso, que geralmente fica restrito aos primeiros dias da doen�a.
Al�m disso, quatro desses tratamentos (os anticorpos monoclonais casirivimabe/imdevimabe, banlanivimabe/etesevimabe, regdanvimabe, sotrovimabe) s� s�o indicados para pacientes n�o hospitalizados, o que inviabiliza sua cobertura pelos planos de sa�de segundo as regras atuais da ANS.
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