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Estado de Minas MILHO FERMENTADO

A bebida de origem ind�gena banida na Col�mbia

Estigmatizada e ainda ilegal, a chicha pode ser encontrada em garrafas coloridas nas 'chicher�as' de Bogot�.


14/04/2023 06:17 - atualizado 14/04/2023 14:28


Garrafas com líquido de cor diferente na janela
Estigmatizada e ainda ilegal, a chicha pode ser encontrada em garrafas coloridas nas 'chicher�as' de Bogot� (foto: Lina Zeldovich/BBC)

"Sabia que voc� est� infringindo a lei bebendo isso?"

Enquanto me provocava com a quest�o, minha guia de viagem Andrea Izquierdo colocava uma jarra cheia de uma bebida espumante, cor de p�ssego claro, na mesa de degusta��o � nossa frente.

Estamos na Casa Galeria, um restaurante no distrito da Candel�ria, em Bogot� – o centro hist�rico e colorido da capital colombiana. E a subst�ncia ilegal que ela estava pronta para me servir chama-se chicha, uma bebida ind�gena feita de milho fermentado, popular em boa parte da Am�rica Latina.

Eu havia ouvido falar que a chicha era uma bebida non grata na Col�mbia, mas achei que fosse brincadeira. "Metade dos lugares por aqui vende chicha, incluindo os vendedores nas ruas em todo canto", argumentei. "Como pode ser ilegal?"

Izquierdo trouxe a jarra mais para perto, para que eu pudesse examinar a bebida com mais cuidado. Cheirei o l�quido – o aroma lembra cerveja, kombucha e suco misturados, o mais inocente dos brindes.

"Acredite ou n�o, a chicha foi proibida no final dos anos 1940 e, desde ent�o, � ilegal na Col�mbia", afirma Izquierdo.

� claro que ela tinha raz�o. Parte das tradi��es ind�genas, a bebida foi considerada vil� por mais de um s�culo e oficialmente proibida em 1949.


Homem empurrando carrinho de venda por rua
Vendedores ambulantes oferecem chicha na Col�mbia (foto: Getty Images)

A alega��o � que ela tornaria as pessoas violentas e ignorantes, devido a toxinas perigosas criadas durante a fermenta��o. Afirmava-se que ela causaria uma doen�a chamada chichismo, uma lenta deteriora��o do corpo e da mente.

Por quase toda a segunda metade do s�culo 20, sempre que as autoridades encontravam pessoas produzindo chicha, o equipamento era confiscado, os l�quidos eram descartados e os produtores eram presos. Pessoas que fossem encontradas bebendo chicha tamb�m corriam risco de pris�o.

"As pessoas n�o passavam anos presas por essas infra��es, mas eles podiam manter voc� na cadeia por seis meses a um ano", segundo Izquierdo.

O que aconteceu?

Para entender como a bebida se tornou sin�nimo de doen�a, � preciso conhecer, em primeiro lugar, como estava se desenvolvendo a sociedade colombiana, em diversos aspectos.

S�culos antes da chegada dos europeus, o povo origin�rio muisca habitava o alto planalto montanhoso onde hoje fica a cidade de Bogot�. Os muiscas produziam chicha usando seu processo tradicional.

As mulheres mascavam o milho e cuspiam a mistura em uma tigela de argila para fermentar. O processo de fermenta��o era iniciado pela saliva.

Elas ent�o enterravam a tigela coberta no solo para que permanecesse fresca. E, depois de cerca de duas semanas, a tigela era desenterrada, j� com a mistura amarelada espessa e levemente alco�lica.

"� importante observar que nem todas as mulheres podiam mascar milho para produzir chicha", explica Izquierdo. "Somente as mulheres s�bias da comunidade podiam faz�-lo, para passar para a chicha sua sabedoria, que seria ingerida por outras pessoas."

Mascar grandes quantidades de milho exigia tempo e esfor�o. Por isso, a chicha era originariamente produzida em quantidades relativamente pequenas e reservada apenas para certas cerim�nias ou celebra��es especiais.

"As mulheres se sentavam e simplesmente mascavam, mascavam e mascavam, muito conscientes do que estavam fazendo", explica Izquierdo. "Elas come�avam pelo menos 15 dias antes da ocasi�o, para que pudessem mascar em quantidade suficiente."

Quando a bebida estava pronta, a tigela de chicha comunit�ria era passada pelas pessoas e cada um tomava o seu gole.

Posteriormente, as pessoas aprenderam a moer o milho em vez de mascar e come�aram a produzir chicha em quantidades maiores. Ela acabou se tornando uma bebida comum, que as pessoas carregavam em caba�as para beber.

Izquierdo explica que, depois de secas, as caba�as endurecem e podem ser usadas para guardar l�quidos. Ela disp�s alguns copos pequenos feitos com caba�as e cord�es sobre a mesa, oferecendo-me um deles.

"Os viajantes colocavam esses copos em volta do pesco�o e, quando chegavam a uma aldeia ou faziam uma parada para descanso, as pessoas podiam despejar um pouco de chicha para eles", conta.


Andrea Izquierdo gesticulando em frente a uma mesa
A guia de turismo Andrea Izquierdo conta a hist�ria da chicha na Col�mbia (foto: Lina Zeldovich/BBC)

'Vinho colombiano' e 'p�o l�quido'

No s�culo 19, a bebida era parte integrante da alimenta��o das pessoas na Col�mbia.

Os produtores a fabricavam comercialmente. Eles mergulhavam e mo�am o milho, misturando caldo de cana – um ingrediente que, historicamente, n�o fazia parte do processo, mas intensificava a fermenta��o e a produ��o.

Naquela �poca, a chicha era considerada uma bebida saud�vel, segundo o historiador Stefan Pohl-Valero, da Faculdade de Medicina e Ci�ncias da Sa�de da Universidade Del Rosario, em Bogot�. As pessoas acreditavam que ela fortalecia as pessoas.

No final dos anos 1820, o professor de medicina Jos� Mar�a Merizalde estudou as propriedades cient�ficas da chicha e escreveu que o "vinho colombiano" definitivamente tinha um valor "nutritivo".

"O vigor que os ind�genas [andinos] adquirem com a chicha n�o � inferior ao que os europeus adquirem com o vinho e a cerveja", segundo Merizalde, citado por Pohl-Valero no seu estudo intitulado The Scientific Lives of Chicha (“As vidas cient�ficas da chicha”, em tradu��o livre), de 2020.

Al�m de vitaminas, a bebida cont�m alto teor de a��cares e carboidratos fornecedores de energia. "Pode n�o ser muito bom para n�s hoje em dia, mas os trabalhadores que realizavam trabalho f�sico o dia inteiro precisavam dela", afirmou Pohl-Valero.

A chicha, �s vezes, era descrita como "p�o l�quido".

Seguindo as instru��es de Izquierdo, peguei uma das caba�as marrons arredondadas e a pendurei no pesco�o como um pingente. Segurei o copo, que ela encheu, e tomei um gole.

Levemente azeda e espumosa, a chicha poderia ser mais bem descrita como um gosto adquirido. E tamb�m � mais espessa – eu quase conseguia mastig�-la.

De fato, � um p�o l�quido.

A chegada da concorr�ncia

"Mas por que ela foi transformada em vil�?", perguntei.

Em 1889, o imigrante alem�o Leo S. Kopp abriu em Bogot� a Cervejaria Bavaria, o primeiro grande fabricante de cerveja da Col�mbia. E, coincid�ncia ou n�o, no mesmo ano, o m�dico Liborio Zerda, que trabalhava no laborat�rio de qu�mica da faculdade de medicina de Bogot�, afirmou que a chicha era t�xica.

Zerda havia sido aluno de Merizalde, mas sua vis�o sobre a chicha era diferente. Ele a considerava prejudicial devido aos "princ�pios t�xicos, alcaloides ou �cidos, que s�o produzidos durante a terr�vel fermenta��o do milho para a prepara��o da chicha", segundo Pohl-Valero, citando Zerda no seu estudo.


Mão servindo a bebida em cuia
As pessoas bebiam chicha em caba�as (foto: Getty Images)

Josu� G�mez, colega de Zerda do Hospital da Caridade de Bogot�, uniu-se �s cr�ticas, cunhando o termo chichismo – uma doen�a causada pela chicha, caracterizada por "pigmenta��o da pele", "olhar triste, l�nguido e est�pido" e cheiro "p�trido" do corpo.

Os dois m�dicos anunciaram que os dependentes de chicha – os enchichados – perdiam sua energia e a vontade de trabalhar, desintegrando-se lentamente – um problema de propor��es nacionais, segundo eles, levando � "degenera��o racial" do povo colombiano.

"Assim, a chicha foi patologizada", segundo Pohl-Valero.

N�o se sabe ao certo se a patologia foi sancionada pelo governo ou n�o, mas muitos colombianos acreditam que a Cervejaria Bavaria mantinha pol�ticos no bolso.

De qualquer forma, o apoio dos m�dicos certamente ajudou as campanhas publicit�rias da Bavaria, incluindo cartazes que anunciavam “Chega de chincha, tome cerveja!”.

As imagens mostravam adultos sadios e at� crian�as sorvendo a bebida dourada, fermentada sem saliva, nem toxinas, e de forma higi�nica – em canecas ou garrafas individuais, no lugar das tigelas compartilhadas.

A chicha, no entanto, sobreviveu ao ass�dio. Ela se manteve at� o s�culo 20, quando o candidato liberal � presid�ncia da Col�mbia Jorge Eli�cer Gait�n foi assassinado em 1948, o que levou o pa�s a um longo per�odo de instabilidade civil.

Alguns pol�ticos culparam a "condi��o patol�gica dos pobres, resultante do consumo de chicha", pelo levante, segundo Pohl-Valero.

O Escrit�rio de Assuntos Interamericanos (ag�ncia norte-americana que promoveu o com�rcio pan-americano nos anos 1940) tamb�m participou da luta contra a chicha. "Eles produziram alguns cartazes muito famosos", afirma Pohl-Valero. "E, assim, a chicha foi criminalizada."

Um cartaz dizia que "a chicha deixa voc� burro". "A chicha causa o crime!", dizia outro, mostrando uma faca coberta de sangue. "As pris�es est�o cheias de pessoas que tomam chicha!", dizia ainda um terceiro, mostrando um prisioneiro e uma mulher chorando.

Um ano depois, o ministro da Higiene, Jorge Bejarano, sancionou uma lei proibindo a produ��o e a venda de chicha na Col�mbia. Todas as chicher�as – lugares que produziam ou serviam a bebida – desapareceram da noite para o dia.

A clandestinidade e o retorno

Estendi a m�o com minha caba�a vazia e Izquierdo a encheu novamente.

Enquanto eu tomava a bebida azeda, mantendo-a sob o meu palato, n�o conseguia imaginar como a tradi��o sobreviveu. "Como as pessoas conseguiram preservar a bebida?", perguntei.

"Os produtores de chicha viraram clandestinos", explicou Izquierdo, da mesma forma que fizeram os contrabandistas durante a Lei Seca, nos Estados Unidos.

As pessoas n�o podiam visitar as chicher�as, mas iam �s casas dos amigos e vizinhos. "E, � claro, todos conheciam os melhores produtores de chicha, de forma que as pessoas batiam � porta e perguntavam 'voc� tem chicha?', ela conta.

Se os produtores conhecessem voc�, eles vendiam a bebida. Eles colocavam as garrafas em sacos de papel, como se fossem p�es, para camufl�-las.

"As grandes f�bricas fecharam porque eram facilmente controladas, mas as fam�lias continuaram a produzir a bebida", acrescenta Pohl-Valero. "Paradoxalmente, o bairro de trabalhadores constru�do pela Cervejaria Bavaria [em volta dela] era onde acontecia a produ��o e consumo da chicha."

E foi tamb�m nas vizinhan�as da cervejaria que a chicha fez seu primeiro retorno oficial, cerca de 40 anos depois.

"Em algum momento nos anos 1980, o bairro organizou um festival que servia chicha por um dia, em uma ocasi�o especial", conta Pohl-Valero.

Ele destaca que nem todos ficaram felizes. Muitas pessoas acharam aquilo um retrocesso, ap�s d�cadas de combate � subst�ncia perigosa.


Menino olha sorrindo para recipiente com milho
Uma crian�a ind�gena Wayuu moe milho para fazer a chicha em sua casa na comunidade Witka, no departamento de La Guajira, na Col�mbia (foto: Getty Images)

Mas a chicha retornou nos anos que se seguiram, estabelecendo lentamente seu retorno, gota a gota, � lista de bebidas aceitas na Col�mbia.

"Era preciso que acontecesse um dia", afirma Izquierdo. "Porque voc� n�o pode proibir as pessoas de comer o que quiserem, ou beber o que quiserem. Voc� simplesmente n�o pode proibir algo que � t�o natural para as pessoas."

A proibi��o segue em vigor, mas ela explica que � poss�vel vender e consumir chicha no centro da capital hoje em dia. "Mas, como ainda � proibida, n�o podemos regulamentar sua produ��o."

Por isso, n�o existem regulamentos oficiais para controlar o processo.

As receitas s�o preservadas por gera��es de fam�lias de produtores de chicha e podem variar de um parente para outro. Alguns produtores acrescentam maracuj�, outros misturam mirtilos e ainda outros, abacaxi. E muitas chicher�as ostentam uma s�rie de garrafas variadas, com suas cores formando um arco-�ris.

"Se n�o h� regulamenta��o, como saber se um lugar est� servindo chicha adequadamente produzida?", perguntei. "Voc� precisa saber quem a produziu", responde Andrea Izquierdo.

As diversas gera��es de produtores que preservaram as receitas em d�cadas de opress�o orgulham-se das suas tradi��es.

Eles conduziram o processo em tempos sombrios. Eles protegeram a receita, apesar do risco de pris�o se a usassem. As receitas passaram da av� para a m�e e, dela, para a filha.

Depois de terem passado por tudo isso, podemos ter certeza de que hoje est�o produzindo sua melhor chicha, segundo Izquierdo.

Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Travel.


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