O Pr�mio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2023 foi dado aos cientistas Katalin Karik� e Drew Weissman.
Segundo o comit� organizador, a premia��o tem a ver com as "descobertas relacionadas �s modifica��es nas bases nucleot�dicas que permitiram o desenvolvimento das vacinas de mRNA contra a covid-19".
Karik� nasceu na Hungria em 1955 e se especializou em bioqu�mica. Ela trabalha na farmac�utica BioNTech e � professora da Universidade da Pensilv�nia, nos Estados Unidos.
Weissman tamb�m atua na Universidade da Pensilv�nia. Natural dos EUA, ele estudou imunologia e microbiologia durante a forma��o.
Entenda a seguir como o trabalho de pesquisa deles serviu de base para as vacinas de mRNA, que fizeram a estreia mundial durante a pandemia de covid-19.
Mini-impressoras dentro de n�s
Com exce��o de �vulos e espermatozoides, todas as c�lulas do nosso corpo carregam dentro do n�cleo o genoma completo, o DNA.
Nesse conjunto de cromossomos, est�o "escritas" muitas das informa��es que definem os processos org�nicos, as caracter�sticas f�sicas e a propens�o a determinadas doen�as de cada um de n�s.
Mas o DNA sozinho n�o faz nada: quando ele precisa enviar algum comando � c�lula, essa fita em dupla h�lice gera uma c�pia simples de determinado trecho do c�digo gen�tico.
Esse "xerox" gen�tico vem numa fita simples e � o que conhecemos como RNA mensageiro, ou mRNA.
Esse material ent�o sai do n�cleo e viaja at� os ribossomos, no citoplasma da c�lula. Essa estrutura l� a "receita" gen�tica do mRNA e fabrica uma prote�na espec�fica relacionada �quele comando escrito no DNA.
Desde que esse mecanismo foi conhecido, a partir dos anos 1960, os cientistas come�aram a se perguntar: ser� que � poss�vel aproveitar essas "mini-impressoras" que carregamos dentro das c�lulas para produzir prote�nas espec�ficas?
O objetivo era que essas prote�nas tivessem algum fim terap�utico, e pudessem servir para gerar uma resposta do sistema imunol�gico o que permitiria combater o crescimento de um tumor ou a invas�o de um v�rus mortal, por exemplo.

Pedras pelo caminho
Mas � claro que a ideia n�o funcionou logo de cara. A principal barreira a ser superada tinha a ver com o fato de o mRNA ser uma mol�cula muito fr�gil como se trata apenas de uma mensageira, ela logo se degrada no organismo.
Nos primeiros experimentos, os mRNAs sintetizados em laborat�rio sequer conseguiam chegar perto das c�lulas. Eles estragavam pelo caminho, antes de cumprir a miss�o para o qual foram projetados.
Al�m disso, esses compostos se mostraram altamente inflamat�rios. Eles geraram uma rea��o imunol�gica forte, que colocava em risco o pr�prio uso desse princ�pio na medicina.
Essas dificuldades foram superadas gra�as a dois trabalhos distintos. O primeiro deles, comandado pelo justamente m�dico americano Drew Weissman e pela bioqu�mica h�ngara Katalin Karik�, descobriu que algumas modifica��es b�sicas na estrutura do mRNA poderiam deix�-lo menos inflamat�rio.
Esse esfor�o, ali�s, rendeu � dupla o Pr�mio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2023.
O segundo, que envolveu v�rios grupos de pesquisa, como o comandado pelo bioqu�mico canadense Pieter Cullis, descobriu que "embrulhar" a fita de mRNA numa nanopart�cula de lip�dios (ou gordura) � uma forma eficaz de proteg�-lo da degrada��o. Assim, essa mol�cula pode ser injetada, viajar pelo organismo e chegar �s c�lulas onde cumprir� a fun��o para a qual foi projetada.
"Com essas modifica��es, a ci�ncia estava diante de uma ferramenta potente e poderosa", disse o biom�dico Joel Rurik, da Universidade da Pensilv�nia, nos Estados Unidos, numa entrevista � BBC News Brasil em maio de 2023.
"Trabalhar com o mRNA � algo relativamente simples e r�pido. Basta fazer o download da sequ�ncia gen�tica no computador e pedir para uma bioimpressora imprimir este material. Voc� consegue produzir toneladas dele sem a necessidade de usar uma �nica c�lula", complementou o cientista.
"Falamos, portanto, de uma estrat�gia eficaz do ponto de vista dos custos, est�vel, com facilidade de distribui��o e que pode ser usada de forma mais ampla ou f�cil que muitas ferramentas terap�uticas ou de engenharia imunol�gica", resumiu.
'Estreia' antecipada
Ainda que os testes cl�nicos com as primeiras vacinas de mRNA tenham come�ado no in�cio dos anos 2000, a comunidade cient�fica esperava que as primeiras vers�es comercialmente dispon�veis, aprovadas pelas ag�ncias regulat�rias, s� chegassem ao mercado em meados de 2025.
At� que veio a covid-19 e tudo mudou. A emerg�ncia da pior pandemia em um s�culo exigiu que muitos especialistas mudassem os planos e come�assem a estudar um v�rus absolutamente novo: o Sars-CoV-2.
Assim que o sequenciamento gen�tico do causador da covid foi conclu�do, ainda em janeiro de 2020, os grupos que j� trabalhavam com imunizantes de mRNA para outros pat�genos (como o v�rus sincicial respirat�rio) direcionaram os esfor�os para o novo coronav�rus.

Em mar�o daquele mesmo ano, os primeiros estudos cl�nicos dessas vacinas come�aram a acontecer. Dez meses depois, em dezembro, a Food and Drug Administration (FDA), a ag�ncia regulat�ria dos EUA, aprovou os dois produtos com a tecnologia mRNA desenvolvidos e testados pelas farmac�uticas Moderna e Pfizer/BioNTech.
Pouco depois, eles tamb�m foram liberados em outras partes do mundo no Brasil, a Ag�ncia Nacional de Vigil�ncia Sanit�ria (Anvisa) deu sinal verde para o uso do imunizante da Pfizer em 23 de fevereiro de 2021.
Essa foi a primeira vez na hist�ria que uma vacina de mRNA baseada nos trabalhos pioneiros de Karik� e Weissman chegou ao bra�o das pessoas fora do ambiente das pesquisas cient�ficas.
Ela se baseia naquele princ�pio explicado no in�cio desta reportagem: cada dose do produto traz uma fita de RNA mensageiro (mRNA), que instrui as c�lulas do nosso pr�prio organismo a fabricar a prote�na S (de Spike, ou esp�cula em portugu�s) presente na superf�cie do coronav�rus.
A partir da�, o sistema imunol�gico reconhece esse material e gera uma resposta, capaz de proteger caso o agente infeccioso de verdade tente invadir o corpo.

O que vem por a�
Logo ap�s a experi�ncia com a covid-19, o pr�ximo "passo natural" para o mRNA � que ele seja usado para desenvolver vacinas contra outras doen�as infecciosas.
Inclusive, laborat�rios j� est�o realizando testes de imunizantes contra todos os tipos de coronav�rus, o influenza, o zika, o chikungunya, a dengue, a mal�ria, o HIV, entre outros.
Segundo o ClinicalTrials.Gov, site que registra todos os testes cl�nicos em andamento nos Estados Unidos, existem cerca de 800 estudos do tipo em andamento que avaliam algum aspecto dessa plataforma tecnol�gica.
Rurik classificou esse campo da ci�ncia como "empolgante".

"As vacinas de mRNA usadas contra a covid-19 lan�aram um enorme holofote na �rea. Com isso, vieram os investimentos privados e os programas governamentais de incentivo", contextualizou.
O pr�prio trabalho do biom�dico � um exemplo disso. Nos �ltimos anos, ele investiga se o mRNA pode servir como uma ferramenta para que as c�lulas de defesa reconhe�am e destruam fibroblastos "doentes" no cora��o.
Os fibroblastos s�o um tipo de c�lula que forma a estrutura do m�sculo card�aco. Quando essas unidades apresentam algum tipo de defeito, isso pode representar a origem de uma doen�a cr�nica (como a insufici�ncia card�aca) ou aguda (como o infarto).
"Treinar" as c�lulas imunol�gicas para identificar os fibroblastos defeituosos, portanto, pode se tornar, no futuro, um caminho para prevenir as condi��es que afetam o cora��o.
Ainda no mundo da cardiologia, outros grupos trabalham com o mRNA como uma forma de baixar o LDL, o colesterol ruim. Essa mol�cula est� diretamente relacionada com uma s�rie de desfechos perigosos, como o pr�prio infarto e o Acidente Vascular Cerebral (AVC).
Isso porque algumas pessoas possuem um gene que faz elas expressarem demais uma prote�na chamada PCSK9, o que leva o colesterol �s alturas. Inibir essa fabrica��o excessiva por meio do mRNA poderia ser um caminho para lidar de forma definitiva com esse fator de risco para tantas doen�as cardiovasculares.

Aos poucos, a tecnologia do mRNA tamb�m volta �s suas origens: as pesquisas sobre o uso dessas vacinas contra tumores come�aram a ganhar mais f�lego nos �ltimos meses.
Afinal, o c�ncer � uma fonte de muitas muta��es gen�ticas. Al�m disso, ele tem a caracter�stica de produzir certas mol�culas capazes de suprimir o sistema imunol�gico.
Em outras palavras, as c�lulas cancerosas s�o capazes de produzir determinadas subst�ncias que bloqueiam a imunidade. Com isso, as unidades de defesa n�o reconhecem a amea�a e o tumor cresce no corpo sem encontrar resist�ncia.
J� existem atualmente tratamentos que tiram essa "venda" das unidades de defesa e permitem que o pr�prio sistema imunol�gico passe a atacar o c�ncer. Esse grupo de f�rmacos � conhecido como imunoterapia, e est� dispon�vel contra o melanoma e outros tipos da doen�a.
Mas e se fosse poss�vel aplicar uma vacina de mRNA para que o organismo do paciente identificasse certas muta��es tumorais mais comuns? Ou ainda criar um produto farmac�utico totalmente personalizado, baseado nas altera��es gen�ticas que aparecem em cada indiv�duo com c�ncer?
Al�m disso, um dos grandes sonhos da oncologia sempre foi desenvolver uma esp�cie de mem�ria imunol�gica contra o c�ncer, de modo que o sistema imune saiba quando o tumor retornou ou est� se espalhando para outros tecidos.
Todas essas possibilidades est�o sendo testadas agora por grupos de pesquisas e farmac�uticas.
O passo concreto mais recente do mRNA contra o c�ncer foi anunciado pelos laborat�rios Moderna e MSD em abril: uma vacina experimental contra o melanoma foi capaz de diminuir o risco de morte em 44% quando associado � imunoterapia.
Vale ponderar, no entanto, que o produto ainda est� em desenvolvimento e precisa passar por novas etapas de estudo antes de chegar �s cl�nicas e aos hospitais.
Por fim, Rurik apontou que o mRNA n�o � mais uma plataforma exclusiva para doen�as infecciosas, card�acas ou oncol�gicas.
"Tamb�m j� vemos estudos em andamento para tratar l�pus e outras doen�as autoimunes", exemplifica.
Mas, para que isso realmente aconte�a, os cientistas precisar�o ainda trabalhar bastante para provar a seguran�a e a efic�cia de tantas novidades.
O principal desafio ser� demonstrar que todas essas terapias n�o geram problemas no sistema imunol�gico ou prejudicam o funcionamento de �rg�os vitais, como o f�gado.
"Mas � ineg�vel que h� muita coisa acontecendo agora com o mRNA, e tenho certeza que ideias malucas, que imagin�vamos imposs�veis, virar�o realidade nos pr�ximos cinco anos", concluiu o biom�dico.