“O Estado da Ucr�nia n�o existe”, asseguram publica��es compartilhadas milhares de vezes nas redes sociais em v�rios idiomas desde o final de fevereiro de 2022. O pa�s n�o teria “registrado as suas fronteiras na ONU quando a URSS se dissolveu”, argumentam, acrescentando que a R�ssia, portanto, n�o teria violado o direito internacional invadindo seu territ�rio em 24 de fevereiro de 2022.
“O secret�rio-geral das Na��es Unidas afirmou que a Ucr�nia n�o solicita registro de fronteira desde 1991, ent�o o Estado da Ucr�nia n�o existe.... E n�o sabemos disso!!! 04/07/2014. O secret�rio-geral da ONU, Ban Ki-Moon, fez uma declara��o impressionante, cuja distribui��o na m�dia ucraniana e na Internet est� proibida. O conflito entre os dois pa�ses foi discutido na Sess�o do Conselho de Seguran�a da ONU. A partir disso, chegou-se a seguinte conclus�o: A Ucr�nia n�o registra suas fronteiras desde 25/12/1991. A ONU n�o registrou as fronteiras da Ucr�nia como um Estado soberano”, diz o trecho de uma das publica��es compartilhadas no Facebook (1, 2) e no Twitter.
O texto ainda continua: “De acordo com o Tratado da CEI, o territ�rio da Ucr�nia � um Distrito administrativo da URSS. Portanto, ningu�m pode ser culpado pelo separatismo e pela mudan�a for�ada das fronteiras da Ucr�nia. Sob a lei internacional, o pa�s simplesmente n�o tem fronteiras oficialmente reconhecidas”.

Publica��es com conte�do semelhante circulam em franc�s, espanhol, alem�o, ingl�s, grego e b�lgaro.
Ban Ki-moon em 2014?
As publica��es circulam no contexto da invas�o russa � Ucr�nia em 24 de fevereiro de 2022.Uma pesquisa na internet mostra que, em 7 de abril de 2014, o ent�o secret�rio-geral da ONU, Ban Ki-moon, esteve em Ruanda no marco dos 20 anos do genoc�dio ocorrido no pa�s. A ONU publicou o discurso que ele fez no evento. Em nenhum momento ele mencionou a Ucr�nia.

Em abril de 2014, as tens�es eram altas na regi�o ucraniana de Donbass, ap�s a anexa��o da Crimeia no m�s anterior.
A situa��o na Ucr�nia foi abordada em entrevista coletiva pelo porta-voz adjunto do secret�rio-geral em Nova York em 7 de abril de 2014.
“Questionado sobre as tens�es [...] o porta-voz informou que o secret�rio-geral est� profundamente preocupado com a crescente instabilidade no leste da Ucr�nia [observada] no �ltimo fim de semana. Ele insta a todos aqueles que t�m responsabilidade ou influ�ncia sobre a situa��o a diminuir a escalada, e incentiva todas as partes a se manifestarem pacificamente para aliviar a situa��o”, de acordo com um resumo da entrevista coletiva publicado no site da ONU.
Essa declara��o foi reiterada pelo porta-voz adjunto no dia seguinte.
A situa��o na Ucr�nia tamb�m n�o foi o foco de uma reuni�o do Conselho de Seguran�a da ONU em 7 de abril de 2014. Conforme a agenda oficial do �rg�o, n�o houve sess�o naquele dia.
No dia seguinte, 8 de abril de 2014, for�as separatistas pr�-R�ssia declararam a forma��o de um "governo provis�rio da Rep�blica de Donbass".
Fronteiras reconhecidas
N�o h� registro da frase atribu�da a Ban Ki-moon nas publica��es virais, enquanto em 2014 tanto o ex-secret�rio-geral da ONU quanto outros funcion�rios de alto escal�o defenderam a preserva��o da soberania ucraniana diante das amea�as russas.Em 1º de mar�o de 2014, o vice-secret�rio-geral da ONU, Jan Eliasson, informou durante uma coletiva de imprensa que Ban Ki-moon havia “reiterado seu apelo ao pleno respeito e preserva��o da independ�ncia, soberania e integridade territorial da Ucr�nia”.
Em 19 de mar�o de 2014, o mesmo funcion�rio afirmou que o secret�rio-geral continuava “dialogando com os atores-chave com o objetivo de desescalar a situa��o, instando continuamente o di�logo e o cumprimento adequado da Carta da ONU no que diz respeito � soberania e � integridade territorial da Ucr�nia”.
Em 13 de abril do mesmo ano, o Conselho de Seguran�a discutiu a situa��o na Ucr�nia. �scar Fern�ndez-Taranco, subsecret�rio-geral para Assuntos Pol�ticos, disse: “O secret�rio-geral e as Na��es Unidas continuam comprometidos em encontrar uma solu��o pac�fica para essa crise crescente”.
Segundo as declara��es dispon�veis do porta-voz do secret�rio-geral que remontam a 2014, Ban Ki-moon solicitou a prote��o do status da Ucr�nia em v�rias ocasi�es.
Em 2 de maio de 2014, ele pediu que “todas as partes respeitem plenamente a soberania e a integridade territorial da Ucr�nia”. A solicita��o foi reiterada no dia seguinte por Ban Ki-moon em um comunicado e novamente em junho e agosto de 2014.
Parceiros fortes
Outra evid�ncia contradiz a ideia de que a ONU n�o reconhece a Ucr�nia e suas fronteiras: os fortes la�os entre a organiza��o internacional e o Estado ucraniano.Em maio de 2015, o secret�rio-geral esteve em Kiev para comemorar o 70º anivers�rio do fim da Segunda Guerra Mundial na Europa. “As Na��es Unidas e a Ucr�nia s�o parceiros fortes: a Ucr�nia � um membro fundador das Na��es Unidas e, em seus 24 anos de independ�ncia, forneceu for�as de manuten��o da paz para muitas partes do mundo”, disse Ban Ki-moon na �poca.
A Ucr�nia tamb�m foi eleita para ser um dos membros tempor�rios do Conselho de Seguran�a da ONU, ocupando um assento no �rg�o pela �ltima vez de 2016 a 2017.
O ex-chanceler ucraniano Hennadiy Udovenko chegou a presidir a Assembleia Geral da ONU em 1997 e 1998.

Registro de fronteiras?
“As Na��es Unidas n�o s�o um Estado nem um governo e, portanto, n�o t�m autoridade para reconhecer um Estado ou um governo”, explica o site da ONU. “Como organiza��o de Estados independentes, pode admitir um novo Estado como membro ou aceitar as credenciais dos representantes de um novo governo”, acrescenta.“N�o existe registro de fronteira”, disse � AFP Mira Kaneva, professora assistente do Departamento de Direito Internacional da Universidade de Sofia, na Bulg�ria, em 23 de fevereiro de 2022.
“O reconhecimento das fronteiras � feito por meio da assinatura de um tratado adequado �s partes envolvidas. O reconhecimento entra em vigor ap�s a ratifica��o do tratado, e n�o ao ser registrado nas Na��es Unidas, que � onde se registram os acordos internacionais”, explicou.
Dimitar Gochev, professor adjunto de direito internacional na mesma universidade, disse � AFP: “As fronteiras n�o s�o registradas na ONU. Os tratados s�o registrados, de acordo com o artigo 102 da Carta das Na��es Unidas. No entanto, a falta de registro n�o � motivo de nulidade: um tratado n�o registrado tem plena for�a de lei”.
O professor acrescentou que “as fronteiras da Ucr�nia s�o determinadas pelo princ�pio uti possidetis juris, o que significa que, quando um Estado se dissolve, os novos Estados adotam as fronteiras da unidade administrativa que os antecede”.
O reconhecimento russo
As publica��es virais afirmam que “a Ucr�nia n�o registra suas fronteiras desde 25/12/1991”, data da dissolu��o da Uni�o Sovi�tica.
Em um plebiscito realizado em 1º de dezembro de 1991, a Ucr�nia votou esmagadoramente pela sua independ�ncia da Uni�o Sovi�tica. O ent�o presidente russo Boris Yeltsin a reconheceu no dia seguinte.
Em 8 de dezembro de 1991, os l�deres das tr�s maiores rep�blicas da URSS, R�ssia, Ucr�nia e Belarus (na �poca conhecida como Bielorr�ssia), assinaram o acordo de funda��o da Comunidade de Estados Independentes (CEI), apresentando-se como Estados soberanos. Ap�s a dissolu��o da URSS, outros oito pa�ses se juntaram � CEI.
De acordo com o artigo 5º do tratado fundador da comunidade, as partes “reconhecem e respeitam a integridade territorial de cada uma e a inviolabilidade das fronteiras existentes na Comunidade”.
“Em 1991, o presidente russo Boris Yeltsin reconheceu a independ�ncia da Ucr�nia”, disse � AFP David R. Marples, professor de hist�ria da R�ssia e do Leste Europeu da Universidade de Alberta, no Canad�, em um e-mail datado de 24 de fevereiro de 2022. “E em 1997, dentro do Tratado de Amizade assinado entre a R�ssia e a Ucr�nia, essas fronteiras foram novamente reconhecidas pela R�ssia.”
Esse tratado foi assinado por Boris Yeltsin e pelo presidente ucraniano Leonid Kuchma em 31 de maio de 1997. O artigo 2º do acordo afirma que “as altas partes contratantes, de acordo com as disposi��es da Carta das Na��es Unidas e suas obriga��es decorrentes da Ata Final da Confer�ncia sobre Seguran�a e Coopera��o na Europa, respeitar�o a integridade territorial uma da outra e confirmar�o a inviolabilidade das suas fronteiras comuns”.
Em 28 de janeiro de 2003, a R�ssia e a Ucr�nia tamb�m assinaram um tratado sobre sua fronteira comum. Esse acordo bilateral foi registrado nas Na��es Unidas em 2016.
De acordo com seu pre�mbulo (em russo na segunda p�gina, em ingl�s na p�gina 209), o acordo respondia � “necessidade de resolver quest�es relativas � delimita��o da fronteira [entre os dois Estados] com o objetivo de fortalecer ainda mais as rela��es amistosas e de vizinhan�a entre os povos ucraniano e russo”. A localiza��o exata da fronteira entre os dois pa�ses est� descrita no documento e os mapas detalhados de delimita��o est�o inclu�dos nos anexos.
O que � o Memorando de Budapeste?
As publica��es tamb�m alegam que, de acordo com o “Memorando de Budapeste”, a Ucr�nia n�o tem fronteiras. “O estado da Ucr�nia n�o existe, nunca existiu”, dizem. Mas isso tamb�m � falso, pois o acordo afirma o contr�rio.Assinado em 5 de dezembro de 1994 em Budapeste, o memorando inclui garantias de seguran�a em rela��o � decis�o da Ucr�nia de desistir de seu arsenal nuclear. No artigo 1º, os signat�rios, incluindo a R�ssia, comprometem-se a “respeitar a independ�ncia, a soberania e as fronteiras existentes da Ucr�nia”.
No artigo seguinte, tamb�m concordam em “abster-se da amea�a ou uso da for�a contra a integridade territorial ou a independ�ncia pol�tica da Ucr�nia”.