Por AFP

Em campanha eleitoral, candidatos � Presid�ncia t�m travado um embate sobre o que ficou conhecido como 'sigilo de cem anos'. De um lado, Luiz In�cio Lula da Silva (PT) afirma que vai 'fazer um decreto' para acabar com a restri��o de acesso a informa��es envolvendo o governo de Jair Bolsonaro (PL), enquanto o presidente o desafiou a apontar um decreto seu que tenha determinado sigilo.
Contudo, h�, sim, mecanismos que permitem a um novo mandat�rio revog�-los.
'E eu vou fazer uma coisa pra voc�, eu vou fazer um decreto acabando seu sigilo de cem anos, pra saber o que tanto voc� quer esconder por cem anos', Lula disse a Bolsonaro em 29 de setembro, no �ltimo debate presidencial antes do primeiro turno das elei��es gerais de 2022.
O presidente rebateu: '[Lula] diz que eu decretei o sigilo da minha fam�lia. Qual decreto? Me d� o n�mero do decreto'.
O discurso tem sido repetido por Lula em atos de campanha, tu�tes e em propaganda eleitoral.
Lei de Acesso � Informa��o
O sigilo de informa��o �, na verdade, uma restri��o de acesso a determinados dados, estabelecida via Lei de Acesso � Informa��o (LAI). Sancionada em 18 de novembro de 2011 pela ent�o presidente Dilma Rousseff (PT), a lei assegura o direito fundamental de acesso � informa��o, com o 'sigilo como exce��o'.H� tr�s formas pelas quais � poss�vel restringir o acesso � informa��o: se ela for considerada pessoal, protegida por outras leis ou classificada nos termos da LAI (quando h� risco � seguran�a da sociedade ou do Estado), resumiram � AFP Luiz Fernando Toledo, cofundador da ag�ncia Fiquem Sabendo e pesquisador no Brown Institute, da Universidade de Columbia, e Renato Toledo, advogado e doutorando em Direito do Estado pela Universidade de S�o Paulo (USP).
A �nica categoria que permite sigilo de at� cem anos � a das informa��es pessoais.
Isso � avaliado em n�vel administrativo, por um servidor, que decide se determinada informa��o se caracteriza ou n�o como pessoal ap�s um pedido de acesso � informa��o, que pode ser feito por qualquer cidad�o a �rg�os do governo.
O prazo centen�rio � reservado na lei para a prote��o de informa��es privadas que constem em documentos p�blicos, explica Carlos Affonso Souza, advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS). Ele comenta:
'Ent�o quando o governo recusa acesso a um documento por cem anos, ele n�o faz isso porque a informa��o � importante para a seguran�a do Estado, mas sim por entender que ela � privada e que n�o existe interesse p�blico nela'.
Casos famosos j� entraram nessa categoria. Um levantamento feito pela Fiquem Sabendo para a AFP de todos os pedidos de informa��o j� negados na Lei de Acesso � Informa��o desde 2015 (a partir de quando os dados ficaram dispon�veis), e que se enquadram nos 'cem anos de sigilo', mostra alguns exemplos: o cart�o de vacina��o do presidente, seus testes de covid-19 e receitu�rio m�dico no tratamento da doen�a, visitas � primeira-dama Michelle Bolsonaro no pal�cio da Alvorada e documentos do processo sobre a participa��o do general Eduardo Pazuello em ato com Bolsonaro.
O artigo 31 da LAI, citado nas respostas a esses pedidos, descreve como deve ser feito o tratamento das informa��es pessoais e sinaliza o prazo m�ximo de um s�culo: 'Ter�o seu acesso restrito, independentemente de classifica��o de sigilo e pelo prazo m�ximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produ��o, a agentes p�blicos legalmente autorizados e � pessoa a que elas se referirem'. O inciso II menciona a possibilidade de divulga��o das informa��es 'diante de previs�o legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem'.
Rafael Zanatta, advogado e diretor de pesquisa da Associa��o Data Privacy Brasil, lembra, contudo, que a lei foi criada para 'proteger cidad�os de abusos do Estado, e n�o para proteger representantes pol�ticos ou os que exercem cargos e fun��es de interesse p�blico'.
Revoga��o de sigilo
As classifica��es de sigilo ou restri��es de acesso � informa��o podem ser revistas por um novo presidente, comentaram Renato Toledo e Rafael Zanatta. Para isso, caso eleito, o l�der do PT precisaria 'rever alguns entendimentos, como o de que se informa��es m�dicas de um presidente (ou servidores em geral em cargos de chefia) s�o p�blicas ou n�o', explicou Luiz Fernando Toledo, da Fiquem Sabendo.Os dois advogados concordam que um decreto poderia ser uma das vias para a mudan�a. 'Um novo decreto feito em 2023 poderia substituir o decreto de 2012', diz o diretor de pesquisa da Data Privacy Brasil, em refer�ncia ao Decreto 7.724/2012, que regulamenta a Lei de Acesso � Informa��o.
Segundo ele, um novo decreto poderia ter, por exemplo, um sistema de escalonamento para que uma informa��o descrita como pessoal tivesse crit�rios de cinco, dez, quinze anos, at� chegar �s situa��es m�ximas de cem anos.
Renato Toledo acrescenta que Lula poderia fazer um decreto descrevendo que determinados atos n�o configuram 'informa��o pessoal', assumindo portanto que s�o p�blicos e que devem ser divulgados.
Mas essa n�o � a �nica maneira poss�vel de revogar sigilos, indica Souza: 'Como n�o se trata — em regra — de um decreto, essa decis�o pode ser revista pela pr�pria autoridade respons�vel [pela aplica��o da LAI] ou mesmo reformada em um novo governo. Basta a autoridade encarregada revisar o posicionamento anterior'.
Renato Toledo concorda, citando o princ�pio da autotutela, que determina que 'a administra��o pode rever atos que j� foram produzidos'. Assim, o governo poderia dar uma nova decis�o em um processo em que o acesso � informa��o tenha sido antes negado, ou formular novas interpreta��es com base em novos pedidos.
H� ainda outros mecanismos segundo os quais sigilos aplicados no mandato de Bolsonaro poderiam ser revogados em um novo governo, de acordo com Renato Toledo: por uma mudan�a na lei, uma resolu��o da Controladoria-Geral da Uni�o (CGU) ou um parecer da Advocacia-Geral da Uni�o (AGU), ou at� uma decis�o do Supremo Tribunal Federal (STF) declarando inconstitucionalidade em algum entendimento de sigilo.
Zanatta lembra, no entanto, os apontamentos de alguns pesquisadores sobre 'a exist�ncia de um sistema legal obsoleto de classifica��o de informa��es e de regras de direito � intimidade, que destoam das discuss�es contempor�neas sobre prote��o de dados pessoais e accountability'.
Nesse sentido, ele afirma, o presidente poderia preparar um novo projeto de lei que reformasse a LAI, 'atacando problemas mais estruturais', como a n�o descri��o de um prazo menor para a aplica��o do sigilo nas informa��es pessoais.
