“Eles se apresentaram sem advogado, pois acreditavam que essa seria mais uma intima��o para discutir a libera��o de can��es censuradas, fato j� ocorrido anteriormente”, assinala o relat�rio. O texto da CNV afirma que Raul foi liberado 30 minutos ap�s o depoimento, mas que Paulo Coelho ficou tr�s horas em uma cela do Dops. “O policial encarregado do interrogat�rio questionou o conte�do do gibi encartado no LP, de autoria do escritor, com desenhos de sua ent�o namorada, Adalgisa Eliana Rios de Magalh�es, 28 anos, estudante de arquitetura. Tratava-se de uma hist�ria em quadrinhos com quatro p�ginas inspirada nas aventuras de Tarzan, personagem criado por Edgar Rice Burroughs.”
O interrogat�rio foi interrompido e um cambur�o, com quatro policiais armados, foi prender Adalgisa. Na madrugada de 28 de agosto, o casal foi fichado. “No documento, o item ‘Motivo da pris�o’ permaneceu em branco. Sem nenhuma ordem, mandado de pris�o ou mesmo uma acusa��o formal, os dois tiveram seus pertences recolhidos e foram obrigados a vestir o uniforme da deten��o. No interrogat�rio foram questionados sobre o conte�do do gibi e a cria��o da Sociedade Alternativa, marcadamente influenciada pela contracultura”, descreve o relat�rio.
Segundo os documentos pesquisados pelos integrantes da CNV, os interrogat�rios foram individuais e duraram v�rias horas. Os dois n�o foram torturados nas depend�ncias do Dops. Os policiais queriam informa��es sobre brasileiros exilados no Chile. O advogado contratado pela fam�lia de Paulo Coelho foi informado no Dops que o escritor seria liberado ainda no 28 de agosto. �s 22h, o casal assinou o alvar� de soltura.
Quando iam embora, por�m, quatro autom�veis fecharam o t�xi em que estavam e homens sem identifica��o for�aram o casal a sair do carro. “Os dois foram algemados, encapuzados e for�ados a entrar separadamente nos carros. A partir desse momento, eles n�o eram mais considerados oficialmente presos sob a responsabilidade do Estado”, informa o relat�rio da CNV. Ao procurar not�cias do filho no Dops, o pai de Paulo Coelho escutou: “Solto ele foi. Se seu filho n�o chegou em casa, vai ver que entrou na clandestinidade”. Segundo o relat�rio da CNV, Paulo e Adalgisa foram sequestrados por um comando do DOI-Codi.
SEM BARBA E BIGODE Os pesquisadores da CNV tiveram acesso a documentos do �rg�o de seguran�a que comprovam que o casal foi conduzido ao 1º Batalh�o de Pol�cia do Ex�rcito, na Rua Bar�o de Mesquita, no Bairro Tijuca, no Rio de Janeiro. “O compositor foi interrogado entre 23h de 14 de junho e 4h do dia seguinte. Ao contr�rio da ficha do Dops, quando fotografado com bigode e cavanhaque, Paulo Coelho � identificado como tendo barba e bigode ‘aparados’. Ou seja, a data do inqu�rito do compositor e de sua namorada no DOI-Codi (14 e 15 de junho) n�o corresponde ao dia em que foram presos e sequestrados (27 e 28 de maio)”, detalha o relat�rio da CNV.
Os documentos do Ex�rcito n�o especificam quanto tempo o casal ficou preso no quartel. Na biografia de Paulo Coelho escrita por Fernando Morais (O Mago – A extraordin�ria hist�ria de Paulo Coelho), � citado um di�rio em que ele atesta estar em casa no dia 31 de maio.
No depoimento de cinco horas que prestou no Ex�rcito, Paulo Coelho detalhou sua parceria com Raul Seixas e tentou explicar sobre a Sociedade Alternativa: “Que o depoente e Raul Seixas resolveram fundar a Sociedade Alternativa, a qual foi registrada em cart�rio para evitar falsas interpreta��es; que o depoente e Raul Seixas estiveram em Bras�lia e expuseram os preceitos da Sociedade Alternativa aos chefes da Pol�cia Federal e da censura, que colocaram que a inten��o n�o era ir contra o governo, mas, inclusive, interessar a juventude num outro tipo de atividade”.
Sobre Adalgisa, o relat�rio da CNV revela que ela foi submetida a dois interrogat�rios e que foi identificada como militante do PCdoB e da A��o Popular (AP) e que esteve presente em reuni�es, grupos de estudo sobre marxismo, assembleias, congressos e eventos como a Passeata dos 100 mil, em protesto pela morte do estudante Edson Lu�s, a invas�o da Faculdade de Medicina na Urca e a invas�o do restaurante da Faculdade de Arquitetura.
GRITO DE TARZAN Sobre o gibi anexado ao �lbum Krig-H�, Bandolo! e a funda��o da Sociedade Alternativa, Adalgisa disse, segundo transcri��o do depoimento: “Que foi criada a Sociedade Alternativa, onde a ideia era n�o ser contra ou a favor de nada, e, sim, propor uma outra solu��o, alternativa, neutra, que chamasse a aten��o; que o nome do folheto (o mesmo da capa do disco) surgiu num momento de euforia de Paulo Coelho que, lendo a revista Tarzan, subiu numa mesa imitando-o e proferiu “Krig-H�, Bandolo!”, nome imediatamente aceito pelos demais presentes”.
O namoro dos dois, entretanto, terminou ap�s o epis�dio. “Paulo Coelho foi torturado na ‘geladeira’, cela mantida em baixa temperatura em que o preso permanecia nu. O medo de sofrer novas torturas f�sicas fez com que o compositor n�o respondesse ao pedido de ajuda da namorada. O ato de covardia na carceragem foi o motivo pelo qual Adalgisa Rios rompeu o relacionamento com Paulo Coelho”, destaca o relat�rio da CNV.
Filosofia
O lema “Faz o que tu queres, h� de ser tudo da lei” deriva da filosofia do brit�nico Aleister Crowley, cuja obra influenciou Raul Seixas e Paulo Coelho. As primeiras manifesta��es surgiram durante a turn� do disco Krig-H�, Bandolo, em que os shows eram uma ode � Sociedade Alternativa. Raul chegou a conseguir um terreno, em Minas Gerais, para construir o que seria a Cidade das Estrelas. O auge da filosofia foi no disco Gita, de 1974, quando a m�sica Sociedade alternativa fez parte do �lbum.
MEM�RIA
De exilado a patrim�nio nacional

Eu fui expulso para Nova York. Fiquei um ano exilado do Brasil, sem poder voltar. Eu fui pego na pista do Aterro (do Flamengo, no Rio) quando eu voltava de um show. Um carro do Dops barrou o meu t�xi e eu fiquei nu com uma carapu�a preta na cabe�a. Fui para um lugar, se n�o me engano, Realengo. Eu sinto que foi por ali, Realengo. Um lugar subterr�neo, que tinha limo. Eu tateava as paredes e tinha limo.
E vinham cinco caras me interrogar. Tinha um bonzinho, um outro bruto que me dava murro, um que dava choque el�trico em lugares particulares e tudo. Eu fiquei tr�s dias l�. Sabe, cada um tinha uma personalidade. Era uma tortura de personalidade. Eu n�o sabia quem vinha. S� sentia pelos passos. Eu pensava, era o cara que batia. Era o cara que tem o...
Ap�s tr�s dias, eu estava no aeroporto. J� tinha deixado o LP Gita gravado e n�o sabia que ia fazer sucesso sozinho. N�o sabia que ia estourar. E ele estourou. Acho que tocou umas seis faixas. Uma por uma. Gita, Sociedade Alternativa, Medo da chuva... Foi um disco que foi muito explorado. Ent�o, eu estava l� nos Estados Unidos. J� tinha encontrado com John Lennon, j� tinha corrido o pa�s, era casado com uma americana na �poca. E tinha cantado com Jerry Lee Lewis em Memphis, Tennessee. Ele me acompanhou de piano.
Tinha transado (feito muitas coisas) um bocado nos EUA quando veio o Consulado brasileiro no meu apartamento. Era quase em dezembro de 1974. Bateu na porta do meu apartamento dizendo que eu j� podia voltar. Que o Brasil j� me chamava, que eu era patrim�nio nacional e que estava vendendo disco. Cinicamente, o cara falou assim.
�, eu voltei. Tava com muita saudade. Voltei para o Brasil e vi o disco Gita estourado aqui. E foi mais ou menos assim aquele ano de 1974. Mas tudo bem. Eu me refiz, gra�as a Deus, n�o fiquei com trauma psicol�gico nenhum e acho que as coisas se processam dessa maneira.”