
Com todos que a reportagem do Estado de Minas conversou, seja em Santar�m ou em Fordl�ndia, a lembran�a imediata de Rayline era como a mo�a, que morreu aos 26 anos, era boa de bola. Eleonai, de 31 anos, vendedora de cosm�ticos que atua na lateral esquerda, recorda: “Foi a primeira vez que ela jogou com a gente. Ela estava passando uns dias aqui em Santar�m, tentava tirar a carteira de motorista antes de ir para a aldeia trabalhar”.

A vila natal de Rayline come�ou a surgir em 1927, quando o norte-americano Henry Ford - um dos pais do autom�vel, idealizador de um dos pilares do capitalismo moderno: o fordismo - quis fugir dos altos pre�os da borracha no mercado mundial e decidiu produzir o l�tex no Sudoeste do Par�. Come�ou a derrubar a floresta em 1929, plantou seringueiras e construiu uma cidade com estilo arquitet�nico semelhante �s que existiam no gelado estado de Michigan, nos EUA.

Rayline nasceu em 16 de junho de 1987, �poca em que a vila adquiria os ares de cidade-fantasma que ainda conserva nos dias hoje, com casas e galp�es abandonados. Quando crian�a, uma das divers�es da menina - al�m de jogar futebol, � claro - era ir pescar com o pai, Raimundo, no Rio Tapaj�s. Indiferente aos constantes e assustadores relatos de jacar�s, jiboias e piranhas, a garota avan�ava nas �guas e, segundo atestam os membros da fam�lia, tinha sucesso nas pescarias.
fam�lia
“Ela era apegada demais � fam�lia, uma crian�a dentro de casa: abra�ava e beijava a gente o tempo todo. Uma alegria s�”, lembra a m�e, com a voz embargada e os olhos cheios d'�gua. O nome da t�cnica de enfermagem nasceu de uma jun��o dos nomes da fam�lia. “Coloquei em um caderno, misturei, acrescentei um y e inventei: Rayline”, explica a m�e, Rosalina Duarte Brito. O pai, Raimundo de Brito, de 59 e a irm�, Rosaline Brito Campos, de 32, contribu�ram para a combina��o de s�labas.

O chefe da Casa de Sa�de Ind�gena (Casai) de Santar�m, Joaquim Martins da Silva, lembra que na sexta-feira anterior � trag�dia, Rayline o procurou para saber se havia alguma oportunidade de trabalho na Casai. O plano dela era morar em Santar�m, sem ter de viajar todo m�s para a aldeia. “Eu disse a ela que est� prevista a amplia��o da Casai, para atender tamb�m procedimentos de m�dia e alta complexidade, e que a previs�o � que comece a funcionar em julho. Falei que faria o que pudesse para ajud�-la”, lembra Joaquim. “Na ter�a-feira fui surpreendido pela not�cia do acidente.”

Rayline tinha planos mais ambiciosos do que brilhar nas partidas dos campos de terra batida e areia do Oeste do Par�.
Al�m de batalhar pelo documento que lhe permitiria dirigir carros e motos, ela pagava a amplia��o e reforma da pequena casa da fam�lia em Fordl�ndia. O sal�rio que recebia para trabalhar na aldeia munduruku era considerado muito bom pelos parentes. Ela ganhava R$ 2.006, mais uma ajuda de custo de R$ 20 por di�ria fora de casa, o que ampliava o rendimento em R$ 400. Fazia dois anos que estava no trabalho. Antes, foi t�cnica em enfermagem no posto de sa�de de Fordl�ndia
Nos dois anos em que trabalhou na aldeia, Rayline teve mal�ria uma vez e chegou a ser internada no hospital de Santar�m. Mesmo com as dificuldades, ela adorava o emprego, segundo relato da m�e: "Os �ndios gostavam muito dela e ela era apaixonada com eles. Foi chamada at� para ser madrinha"

Nos dois anos em que trabalhou na aldeia, Rayline teve mal�ria uma vez e chegou a ser internada no hospital de Santar�m. Mesmo com as dificuldades, ela adorava o emprego, segundo relato da m�e: “Os �ndios gostavam muito dela e ela era apaixonada com eles. Foi chamada at� para ser madrinha”.
Orgulhosa, Rosalina mostra porta-retratos com foto da filha durante festa realizada na aldeia Sai Cinza. O rosto de Raylne est� pintado com motivos ind�genas. “Aqueles indiozinhos eram tudo para ela”, refor�a a m�e, destacando que eles s� pintavam os corpos dos que eram queridos.
Os mundurukus est�o no Par�, Amazonas e Mato Grosso. A regi�o do Vale do Tapaj�s, onde est� localizada a aldeia Sai Cinza, em que Rayline trabalhava, era conhecida no s�culo 19 como Mundruk�nia. Um aspecto cultural da etnia � uma brincadeira que antecede a pescaria, quando a raiz de timb� � triturada e jogada na �gua; segundo a tradi��o, facilita a captura dos peixes. Rayline gostava de escutar as m�sicas cantadas pelos �ndios munduruku. A principal marca das melodias � o som das flautas parasuy tocadas pelos ind�genas mais velhos.
Na imagem do “santinho” dado de lembran�a aos presentes na missa realizada para marcar o segundo m�s de falecimento de Rayline, a jovem aparece usando um fone de ouvido t�o grande quanto o seu sorriso. Eis as frases de abertura impressas na mensagem: “A morte n�o � o fim. N�s sentimos tua falta, mas sabemos que a morte n�o � o fim, � apenas o cumprimento de uma nova vida em Cristo”. A missa de dois meses foi a primeira realizada, pois o corpo foi encontrado somente 40 dias ap�s o acidente.
Pouco mais de um m�s depois da missa, Rosaline descobriu que estava gr�vida. Ela j� tinha uma filha, Angelina Campos, de 6 anos, o xod� de Rayline. “Ela sa�a com a Angelina na rua e falava para todo mundo que era filha dela. Tem gente em Santar�m que at� hoje acredita. Era o jeito dela”, recorda. “Ela era muito acrian�ada”, completa.
Rosaline n�o planejava engravidar. A tens�o pela procura do avi�o, as viagens at� Jacareacanga para acompanhar de perto os trabalhos de busca, o reconhecimento do corpo da irm� e o luto que envolveu a fam�lia formavam um conjunto de fatores que n�o combinava com a alegria da gravidez.
"A Angelina ficava passando a m�o na minha barriga e dizendo que tinha sonhado que a tia Ray falou que ela ia ganhar uma irm�zinha", lembra Rosaline. "Eu disse: menina, deixe de bobagem! N�o tem nada disso", recorda.
Os dias foram passando e a pequena Angelina insistia na hist�ria. Continuava sonhando com a mensagem da tia e acariciando a barriga da m�e. Rosaline sentiu alguns sintomas diferentes em seu corpo e decidiu fazer um teste de gravidez. O resultado foi positivo. Os sonhos de Angelina estavam corretos. Rosaline contou para o marido, que sugeriu: "Se for menina vai chamar Rayline". Claro que ela concordou.

Com treze dias de vida, Rayline, a beb�, foi de barco para casa, em Fordl�ndia. Menos de um ano antes, o corpo da tia que empresta o nome para a rec�m-nascida fez o mesmo trajeto, no caix�o, para ser enterrada no cemit�rio da cidade. Amanh�, na igreja de Fordl�ndia, ser� realizada a missa de um ano de morte.
O acidente impactou as fam�lias da pequena vila. Andando pelas ruas de terra batida a reportagem encontrou algumas pessoas vestindo camisas com a foto de Rayline. No trapiche - o pequeno porto de madeira que facilita o deslocamento dos passageiros - uma crian�a corre de um lado para o outro com Rayline no peito. Embaixo da foto, a frase: "A fam�lia Barreto lamenta sua perda".
S�o 17h de quinta-feira e o sol segue abrasador em Fordl�ndia. Alguns pescam no rio Tapaj�s usando somente linha e anzol. Um barco pequeno toca em volume alt�ssimo Time after time, antigo sucesso de Cyndi Lauper: If you´re lost you can look and you will find me time after time. A embarca��o chega ao trapiche e os passageiros desembarcam. No dia anterior, na quinta-feira, foi a vez da fam�lia das Raylines chegar � vila. O embarque em Santar�m foi �s 13h na lancha Ana Karolina IV, uma embarca��o que comporta quase 300 passageiros sentados. A passagem at� Fordl�ndia custa R$ 55.
A chuva forte, que assusta os forasteiros, n�o altera o semblante daqueles que conhecem o comportamento do rio. A viagem segue tranquila. O ambiente no interior da lancha � dominado pelo cheiro forte da pipoca de microondas, o item mais vendido pela lanchonete da embarca��o. Nas dez televis�es uma vers�o pirateada do filme Sniper Americano � exibida com as legendas fora de sincronia. Algu�m reclama e antes da metade o DVD � trocado por Thor, adapta��o de 2011 da hist�ria do super-her�i da Marvel. Imposs�vel escutar qualquer di�logo com o barulho alto do motor da lancha.
A chuva para antes de o barco chegar em Aveiros, munic�pio a que pertence a vila de Fordl�ndia. A luz bonita ap�s o temporal trespassa pela janela e ilumina o rosto da pequena Rayline, que segue calma no colo da av�, Rosalina nos minutos finais da viagem. No momento de descer da lancha em Fordl�ndia � a m�e, Rosaline, que segura o beb�, com todo cuidado e enrolado em uma manta.

Com treze dias de vida, Rayline, a beb�, foi de barco para casa, em Fordl�ndia. Menos de um ano antes, o corpo da tia que empresta o nome para a rec�m-nascida fez o mesmo trajeto, no caix�o, para ser enterrada no cemit�rio da cidade.
Amanh�, na igreja de Fordl�ndia, ser� realizada a missa de um ano de morte
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