Daniel Camargos (texto)
Alexandre Guzanshe (fotos)
Enviados Especiais

Santar�m (PA) – A met�fora que a t�cnica em enfermagem Jos�lia Maia Barros encontra para definir como se sente voando em pequenos avi�es pela regi�o amaz�nica � a de estar dentro de uma caixa de f�sforos: “Pega uma caixinha e balan�a. � essa a sensa��o”. Jos�lia trabalhou por seis anos, entre 2004 e 2010, para a Secretaria Especial de Sa�de Ind�gena (Sesai), �rg�o vinculado ao Minist�rio da Sa�de, atendendo a popula��o da terra ind�gena Nhamund� Mapuera, que abriga 11 etnias, com predomin�ncia dos Wai-Wai, na divisa do Par� com Roraima. Como ela, um verdadeiro ex�rcito de profissionais da �rea de sa�de corta os c�us da Amaz�nia em pequenas aeronaves para levar o m�nimo de assist�ncia � popula��o ribeirinha e para tribos isoladas. Jos�lia era amiga de Rayline Sabrina Brito Campos, a t�cnica de enfermagem morta h� exatamente um ano em acidente a�reo que deixou mais quatro v�timas.
Depois de passar por v�rios sustos nas viagens de avi�o entre Oriximin� e Cachoeira Porteira, Jos�lia desistiu de viajar nos avi�es. A alternativa escolhida foi subir o Rio Trombetas em pequenas embarca��es guiadas pelos �ndios. A viagem que durava menos de duas horas de avi�o poderia chegar at� a tr�s dias, parando em aldeias �s margens do rio para dormir. “O que eu envelhecia viajando 1h45m de avi�o eu n�o envelhecia passando tr�s dias subindo o rio de barco”, compara.
Jos�lia recorda a ocasi�o em que estava num avi�o monomotor de cinco lugares a caminho da reserva Nhamund� Mapuera e quase aumentou a estat�stica de acidentes. “Foi um temporal muito forte e o avi�o come�ou a 'jogar' bastante. Subiu, subiu, subiu e de uma hora para outra come�ou a descer”, descreve a t�cnica em enfermagem. “S� n�o morremos porque teve a m�o de Deus”, acredita. Al�m da interven��o divina, ela atribui a sobreviv�ncia ao piloto, que, com habilidade, conseguiu evitar a trag�dia. “Quando encontro ele na rua, nos abra�amos como se f�ssemos da mesma fam�lia”, conta.
O emprego atual de Jos�lia na Casa de Sa�de Ind�gena (Casai), em Santar�m, cidade com 300 mil habitantes no Oeste do Par�, � o mesmo a que Rayline se candidatou tr�s dias antes da trag�dia, quando estava voando de Itaiatuba para Jacareacanga a caminho da tribo mundurucu Sai Cinza, onde atenderia os ind�genas. Foi o chefe da Casai, o bi�logo Joaquim Martins da Silva, que recebeu o pedido de emprego. Joaquim disse que faria tudo para ajud�-la, mas foi surpreendido pela trag�dia.

O medo de que perderia a vida em um acidente foi um dos motivos que levou Jos�lia a deixar de atender os �ndios na aldeia. Ela conta que adorava o emprego e chegou, inclusive, a aprender a l�ngua nativa waiwai, mas os temores da locomo��o e tamb�m o fato de ter uma filha que exige cuidados de sa�de a levaram a trocar de fun��o. “O sal�rio n�o paga o esfor�o, mas a recompensa � ver a assist�ncia que prestamos a pessoas que necessitam na sociedade”, avalia a t�cnica em enfermagem. Al�m do sal�rio pouco motivador (R$ 2.006 por m�s), a falta de estrutura tamb�m � um problema enfrentado. “Uma �ndia precisava ser levada para um hospital, pois estava com problemas para fazer o parto. N�o pod�amos chamar a aeronave, pois havia um problema no conv�nio entre a empresa e o governo”, recorda Jos�lia. O atraso deixou a crian�a com sequelas.
DESAFIOS DA FLORESTA O piloto de avi�o Fabricyo Sardinha, de 33 anos, � de Santar�m e trabalha para uma empresa de t�xi a�reo da cidade desde 2001. Para ele, o grande desafio de quem sobrevoa a regi�o � o clima, com muita chuva e temporais constantes. Outro problema, segundo o piloto, � a grande quantidade de pistas que n�o s�o homologadas. A alternativa, ele detalha, � voar pr�ximo �s margens dos rios, onde a possibilidade de resgate � maior. “O problema de voar sobre a floresta s�o os animais caso consiga sobreviver em um pouso for�ado. Al�m disso, tem que dar a sorte de conseguir ser resgatado”, explica.
O ex-garimpeiro Natanael Alves de Souza tamb�m se considera um sobrevivente. No dia 31 de janeiro de 1973 um avi�o em que estava com o filho de 4 anos e a esposa gr�vida caiu na floresta, no Sudoeste do Par�, pr�ximo � divisa com o Amazonas. “O avi�o queimou todo e s� sobrou a biquilha”, recorda. Ele, a fam�lia e o piloto conseguiram escapar antes da explos�o. “Fraturei as costelas e todo mundo levou golpes por causa da queda”, detalha. O dia � lembrado com precis�o por Natanael pois � a mesma data que o cantor Evaldo Braga, o �dolo Negro, morreu em um acidente automobil�stico, em Tr�s Rios, no Rio de Janeiro.
Durante os anos em que viajou pela regi�o, Natanael passou outros apertos. Estava a bordo de um pequeno avi�o quando o trem de pouso n�o funcionou; em outra situa��o, sobreviveu a uma aterrissagem for�ada na �gua. Depois do acidente com a fam�lia, o susto foi grande e Natanael deixou o garimpo – e as viagens temerosas de avi�o -, chegou a ser presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santar�m e h� alguns anos trabalha para o projeto Sa�de e Alegria, uma ONG que atua na regi�o do Rio Tapaj�s e atende a cerca de 30 mil pessoas em 150 localidades.
A arte-educadora Elis Lucien Rodrigues precisa viajar constantemente de barco pelo Rio Tapaj�s para chegar at� as comunidades ribeirinhas atendidas pela ONG. “Tem que saber navegar, pois o rio parece um mar. As mulheres ficam nervosas, sofrem 'passamentos' como n�s dizemos por aqui, mas n�o tem alternativa”, explica. Elis lembra de uma viagem que fez acompanhando uma equipe de televis�o, quando estavam no barco e uma tempestade os surpreendeu no meio rio. “A onda estava assim”, diz acompanhando um gesto mostrando algo enorme. “Fiquei apavorada e p�lida”, descreve. De acordo com a Marinha, somente no Rio Amazonas, o maior do pa�s, aconteceram 86 acidentes no ano passado, sendo 31 pessoas morreram e outras 35 ficaram feridas. O n�mero foi maior do que o de 2013 (25 mortes, 22 feridos).
Os riscos para quem vive no Norte do pa�s est�o em todos os tipos de transporte. Mineira de Belo Horizonte, a indigenista da Funai, Isabel Saraiva vive no Par� desde 2010. Primeiro morou em Itaituba e depois em Santar�m, onde permanece atualmente. Quando morou em Itaituba e precisava ir para Jacareacanga, regi�o com ind�genas da etnia munduruku, fazia o trajeto de �nibus, pois � �poca a Funai, segundo ela, n�o podia fretar aeronaves. Percorria 420 quil�metros na Transamaz�nica. “Quando chovia, o �nibus deslizava demais. Uma vez tive vontade de descer e ficar esperando na estrada”, recorda. Os desafios d�o medo, segundo ela, mas o trabalho a motiva. “� um p�blico com muita vulnerabilidade”, pondera. “Mas ter�amos que ter mais estrutura”, destaca.
Na edi��o dessa ter�a-feira (17), o Estado de Minas reconstituiu em reportagem especial os �ltimos dias de vida de Rayline Campos, t�cnica em enfermagem que morreu em acidente a�reo com mais quatro pessoas em 18 de mar�o de 2014. A hist�ria comoveu o Brasil pelas mensagens desesperadas que a jovem enviou ao tio pelo celular, poucos minutos antes de morrer: "T� em temporal e um motor parou, avisa a m�e que amo muito todos...", escreveu Rayline. Um ano depois da trag�dia, as investiga��es sobre as causas da queda do avi�o ainda n�o foram conclu�das.