
O resultado mais surpreendente diz respeito ao chamado Povo de Luzia, que habitou a regi�o de Lagoa Santa, pr�ximo a Belo Horizonte, entre 12 mil e 9 mil anos atr�s, e cujo nome do grupo faz refer�ncia � sua personagem mais ilustre, Luzia, uma mulher de 20 e poucos anos, cujo cr�nio foi encontrado por arque�logos na d�cada de 1970 - e quase destru�do no inc�ndio do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, dois meses atr�s.
Contrariando algo que vinha sendo proposto h� mais de duas d�cadas, com base principalmente em an�lises morfol�gicas do cr�nio de Luzia, as novas evid�ncias gen�ticas sugerem "de forma categ�rica", segundo os pesquisadores, que n�o h� qualquer rela��o de parentesco entre o Povo de Luzia e popula��es antigas da �frica ou da Austr�lia.
"Portanto, a hip�tese de que o Povo de Luzia representaria uma leva migrat�ria anterior aos ancestrais dos ind�genas atuais n�o se confirma", afirmam os autores brasileiros do estudo, publicado nesta quinta-feira, 8, na revista Cell. "Pelo contr�rio, o DNA mostra que o Povo de Luzia tem gen�tica totalmente amer�ndia"
Aquela famosa reconstru��o facial do cr�nio de Luzia, concebida na d�cada de 1990, com caracter�sticas notadamente negroides, portanto, est� equivocada, diz o pesquisador Andr� Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de S�o Paulo, que h� anos realiza escava��es arqueol�gicas em Lagoa Santa e � um dos coordenadores do estudo.
Para substitu�-la, os pesquisadores encomendaram uma nova reconstru��o, baseada num outro cr�nio de Lagoa Santa (registrado como Sepultamento 26) e levando em conta as novas evid�ncias gen�ticas. O resultado foi um rosto com uma morfologia muito mais "gen�rica", da qual teriam se originado "in�meras variantes intracontinentais". "� uma esp�cie da t�bula rasa, ou tela branca, que com o passar dos mil�nios foi sendo moldada de diversas formas em diferentes popula��es", afirma Strauss.
As reconstru��es faciais arqueol�gicas s�o baseadas em caracter�sticas morfol�gicas do cr�nio e da mand�bula, mas tamb�m levam em conta as hip�teses de ancestralidade do indiv�duo - que v�o influenciar, por exemplo, caracter�sticas como a grossura dos l�bios e o formato do nariz. Assim, um mesmo cr�nio pode dar origem a rostos completamente diferentes.
A d�vida sobre a origem do Povo de Luzia surgiu na d�cada de 1990, quando o antrop�logo Walter Neves, da Universidade de S�o Paulo, descreveu o cr�nio de Luzia (at� ent�o esquecido nos arquivos do Museu Nacional) como dotado de uma morfologia predominantemente negroide e com 11,5 mil anos de idade - mais antigo do que qualquer outro encontrado nas Am�ricas at� ent�o. Para explicar isso, Neves postulou que Luzia e seu povo eram representantes de uma onda migrat�ria anterior � que deu origem ao amer�ndios modernos. Essa primeira migra��o, segundo ele, teria chegado pela mesma rota do Estreito de Bering - ou seja, tamb�m da �sia -, mas seria composta de indiv�duos que ainda preservavam uma morfologia negroide, em vez das fei��es mongol�ides que predominam nos povos ind�genas atuais. Foi essa hip�tese que norteou a reconstru��o facial de Luzia feita pelo brit�nico Richard Neave, em 1999, conferindo a ela uma apar�ncia mais africana do que asi�tica.
Naquela �poca, ainda n�o havia a possibilidade de se analisar o DNA de f�sseis humanos, como se faz agora com a chamada "arqueogen�tica". As an�lises, portanto, eram baseadas apenas na morfologia dos ossos e nas informa��es arqueol�gicas associadas a eles. Neves foi procurado pela reportagem, mas preferiu n�o se pronunciar.
Segundo Strauss, Neves (que foi seu orientador de mestrado no Instituto de Bioci�ncias da USP) estava certo ao propor que o Povo de Luzia representava uma popula��o diferenciada e que eventualmente desapareceu, substitu�da pelos ancestrais dos amer�ndios modernos. A gen�tica associada ao Povo de Luzia, de fato, desaparece do continente 9 mil anos atr�s. A diferen�a, segundo Strauss, � que a origem dela n�o estava na �frica, mas na Am�rica do Norte.
Outra descoberta surpreendente do trabalho diz respeito ao povo da cultura Cl�vis, que floresceu na regi�o dos Estados Unidos cerca de 13 mil anos atr�s e ficou famosa pela confec��o de pontas de lan�a de pedra lascada. Acreditava-se que essa popula��o tinha ficado restrita � Am�rica do Norte, mas os dados gen�ticos de Lagoa Santa e outros dois s�tios arqueol�gicos (Los Rieles, no Chile; e Mayahak Cab Pek, em Belize) revelam que o povo de Cl�vis migrou tamb�m para as Am�ricas Central e do Sul, a partir de 12 mil anos atr�s, dando origem a novas popula��es - entre elas, o Povo de Luzia.
As pontas de pedra lascada aparentemente ficaram para tr�s, j� que nenhuma at� hoje foi encontrada mais ao sul do que o M�xico, mas a gen�tica Cl�vis seguiu em frente. Essa � a grande vantagem da arqueogen�tica, segundo Strauss: "Ela nos permite enxergar coisas que n�o s�o invis�veis para a arqueologia cl�ssica", diz o pesquisador. "Evid�ncias que s� s�o vis�veis nos genes."
O trabalho na Cell tem mais de 70 autores, de diversos pa�ses, dos quais 17 s�o brasileiros.
Um outro trabalho publicado hoje, na revista Science, tamb�m com autores brasileiros, tamb�m analisou o DNA de esqueletos de Lagoa Santa e outros s�tios arqueol�gicos das Am�ricas. Os resultados, em sua maior parte, concordam com os resultados apresentados na Cell, mostrando que o continente foi povoado por uma �nica onda migrat�ria, e que a dispers�o e diversifica��o dessa popula��o pelo continente ocorreu de forma bastante r�pida. Em menos de 2 mil anos, j� havia gente vivendo desde o norte do Canad� at� o sul do Chile.
Uma diferen�a � que, neste caso, os pesquisadores encontraram um "sinal gen�tico" de origem australiana (negroide) na popula��o de Lagoa Santa, por�m extremamente sutil e em apenas um dos cinco esqueletos analisados. Algo que, segundo eles, n�o tem rela��o com a morfologia do Povo de Luzia.