
O m�dico afirma que n�o faz mais abortos h� cerca de oito anos, por ter assumido um cargo de gest�o. De acordo com Morais Filho, os procedimentos s�o feitos pelos plantonistas (fun��o que ele desempenhou entre 1996 e 2002) e que ele responde pela unidade de sa�de para preservar os m�dicos.
Como � para o senhor fazer esse tipo de procedimento?
Tecnicamente, n�o � nada dif�cil. Pessoalmente, sigo a lei do Brasil (abortos s�o permitidos, pela lei, em casos de estupro, como ocorreu com a crian�a capixaba, e de risco � vida da gr�vida. pela jurisprud�ncia, tamb�m � permitida a interrup��o da gravidez de anenc�falos) e os preceitos da medicina. O errado � n�o atender a popula��o em um caso de sofrimento extremo. Uma mulher que � violentada e o Estado obriga ela a manter a gesta��o contra a vontade � uma tortura. Isso n�o � aceito como possibilidade. N�o h� nenhum lugar laico e democr�tico no mundo que a gente admira, como os pa�ses desenvolvidos, que aceite isso. A n�o ser em estados que n�o s�o democracias, mas teocracias cru�is. Nada contra religi�o. Mas h� alguns pa�ses que a gente n�o concorda com a forma como tratam as mulheres. S�o as ditaduras religiosas.
O senhor foi recebido ao Cisam neste domingo, 16, aos gritos de religiosos, chamando-o de criminoso. Como lida com essa press�o social causada em torno do tema?
Fui na maternidade porque, como � um caso diferente, que veio direto do aeroporto, tive de ir l� para dar apoio, para conversar com as pessoas. E eu n�o sabia que tinha gente l� na maternidade. Quando fui entrar, vi aquela confus�o e fui impedido de entrar na maternidade. Fecharam a maternidade, prejudicando a entrada das gestantes que iam l� para parir. Foi muito constrangedor e ainda colocaram a sa�de das pessoas em risco, fizeram aglomera��o em um servi�o de emerg�ncia, prejudicando o funcionamento e causando risco para as pessoas. Ainda bem que parou, n�? Porque as pessoas precisam ter respeito por quem est� l� na maternidade, gente que foi operada, est� amamentando, est�o internadas.
H� algo que o senhor considera importante dizer para aqueles que o condenam?
Acredito que uma pessoa religiosa, que v� aquilo como pecado, deve levar isso para ela. Mas n�o pode interferir no movimento dos outros. A religi�o � coisa �ntima, n�o que voc� obriga as pessoas a seguir seus preceitos e suas verdades. Tenho muito medo dessas posturas. Fico imaginando se, em uma suposi��o - n�o tenho nada contra a nenhuma religi�o -, Testemunhas de Jeov� (a quem tenho o maior respeito) que n�o aceitam fazer transfus�o sangu�nea, fossem a maior parte dos brasileiros e quisessem uma lei que proibisse a transfus�o sangu�nea no Pa�s. Isso acarretaria muitas mortes por um preceito religioso, de pessoas que querem salvar vidas e n�o querem morrer de hemorragia. N�o podemos confundir religi�o com Estado laico, porque isso causa muitos preju�zos. Tem religi�o que � contra m�todos contraceptivos e a contracep��o evita mortes. E os tratamentos que temos, por exemplo, transplantes. Uma pessoa religiosa pode ser contra, mas transplantes salvam vidas. A minha fam�lia � religiosa, mas � uma religi�o que promove a compaix�o, a toler�ncia, o amor, n�o o �dio.
Em um dos v�deos que circulam na internet, uma religiosa que participou das manifesta��es em frente ao Cisam afirma que o senhor teria dito que 'o Recife � a capital do aborto'. O senhor disse isso?
Claro que n�o. O aborto n�o � algo s� de Pernambuco. Tamb�m � feito em outras capitais, em S�o Paulo. A lei no Brasil � igual. Realmente existem algumas dificuldades, por circunst�ncias t�cnicas ou de experi�ncia, mas n�o quer dizer que o Esp�rito Santo seja melhor ou pior do que Pernambuco. Entendo que o que aconteceu l�. Alegar obje��o de consci�ncia � um direito do m�dico (o superintendente do hospital em que o aborto foi feito disse que o procedimento n�o foi feito por quest�es t�cnicas, porque a gravidez j� estava avan�ada). � um direito que cada um tem em sua individualidade. A Secretaria de Sa�de do Esp�rito Santo entrou em contato com a gente e disponibilizei a maternidade para atender a crian�a, porque temos o know how nesse tipo de atendimento e, para a gente, n�o � complicado. Porque, em alguns lugares, pode ser mais complicado.
O que � a obje��o de consci�ncia? E como funciona?
Tenho colegas que t�m obje��o de consci�ncia para fazer aborto em casos anencefalia, mas n�o em casos de estupro. Tenho colegas que n�o se sentem bem em fazer abortamento tardio. Cada um com sua opini�o. O que n�o pode � a institui��o se opor. Tenho um plant�o com 4 pessoas, mas posso ter algu�m ali que n�o se sinta bem em realizar o procedimento. Desde que n�o trate mal as pessoas, que as respeite, n�o h� problema em obje��o de consci�ncia. No Cisam, n�o permito que as pessoas fujam do protocolo. At� para encaminhar para outro colega. O que n�o pode � a mulher ficar prejudicada no seu direito, que tire o acesso � sa�de. Eu diria que a obje��o de consci�ncia n�o coloca em risco a vida das pessoas. Em algumas situa��es, as pessoas precisam ser atendidas em outros Estados. O Brasil � um s�, o SUS � um s�. No caso da menina de 10 anos, n�o tinha risco de morte caso fosse transferida. Mas se fosse risco de morte, ela n�o iria morrer, os m�dicos de l� n�o iriam deixar.
O fato de ser hospital p�blico e do SUS ajuda ou dificulta nesse tipo de caso?
O SUS � a �nica sa�da da popula��o que n�o tem conv�nio para atendimento particular. As pessoas que t�m conv�nio t�m outras possibilidades. � uma quest�o de direito � sa�de e sobre respeito e autonomia das leis. Se uma pessoa tem uma gravidez de alto risco, em que a mulher pode morrer, mas n�o quer interromper a gravidez, tem todo o direito de manter. E o m�dico tem a obriga��o de dar todo o apoio e encaminhar a gravidez. O mesmo � com anencefalia, o feto sem c�rebro, a mulher tem o direito de interromper. Mas se a mulher, por motivo religioso, quer manter a gesta��o, ningu�m vai obrigar. Vai fazer o pr�-natal de risco pelo SUS, sabendo que, quando nascer, a crian�a vai nascer morta ou vai morrer no parto. Mas � um direito. A gente respeita as pessoas e a autonomia.
Casos como esse, de outras meninas e mulheres v�timas de estupro, s�o comuns no Cisam?
� comum. Dificilmente passa uma semana em que n�o tem 1 a 2 casos. Mas normalmente � sob sigilo. Muito ruim � o que est� acontecendo com este caso [da menina de 10 anos].
A pol�mica do aborto no Brasil atrapalha a realiza��o de abortos legais?
No Brasil, n�o deveria existir uma pol�mica t�o grande. Mas as pessoas misturam religi�o com ci�ncia, religi�o com assuntos de sa�de, religi�o com Estado laico. E as a��es sanit�rias de sa�de p�blica s�o baseadas em evid�ncias. Ningu�m que trabalha em servi�os de sa�de � a favor do aborto, mas de salvar vidas e minimizar o sofrimento das pessoas. A criminaliza��o do aborto no atendimento n�o diminui o n�mero de abortos. O aborto acontece de uma forma ou de outra e a �nica coisa que acontece, quando voc� n�o d� acesso (ao aborto seguro), � que elas morrem. O abortamento inseguro � uma das principais causas de morte materna, de pessoas que s�o religiosas, da popula��o em geral, m�es. A sociedade termina matando essas pessoas.
Quais os principais entraves para realizar um aborto legal no Brasil? E por que continuam acontecendo?
� um problema sociocultural. H� alguns comportamentos que entendo ser fruto da ignor�ncia. E acho que � atrav�s da educa��o, da informa��o, que a gente combate epis�dios de ignor�ncia. N�o estou dizendo que a pessoa ser leiga ou sem estudos v� fazer dela um preconceituoso. Mas � claro que existem mais chances de voc� ser boa e preconceituosa por falta de estudo, falta de vis�o. Por exemplo: nosso pa�s � racista, todos somos racistas. Mas voc� tem como reconhecer que � e, quando voc� entende o processo, combater aquilo ali. E o preconceito tem motivo social e cultural. N�o � porque uma ra�a � inferior a outra ou porque o homossexual n�o tem car�ter. Pensar assim � falta de acesso � informa��o. N�o fake news, muito prejudicial, mas uma entrevista como essa, s�ria, de forma justa, t�cnica. � a informa��o que leva � redu��o das intoler�ncias.
Na sua opini�o, quais os rumos do aborto e dos direitos reprodutivos no Brasil? Alguma coisa melhorou?
Ao contr�rio. H� alguns projetos tramitando no Congresso, os direitos reprodutivos v�m sendo restringidos. Mas acredito que a gente deva retirar o aborto da esfera criminal para ser um problema de sa�de p�blica. Nos pa�ses desenvolvidos, onde se respeita a ci�ncia, o aborto n�o � crime. E � poss�vel reduzir a quantidade de abortos, trabalhando baseado em evid�ncias e agindo como um problema a ser enfrentado, e n�o escondido.
