
O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, voltou a defender, na manh� desta ter�a-feira (13/10), a tese do "boi bombeiro": a ideia de que as queimadas que t�m consumido o Pantanal seriam menos intensas caso houvesse mais cria��o de gado no bioma.
Ao comer capim seco e inflam�vel, segundo a tese, o boi acabaria prevenindo o avan�o do fogo.
Salles n�o � o �nico a defender a ideia do "boi bombeiro".
O presidente da Rep�blica, Jair Bolsonaro, e a titular da Agricultura, Tereza Cristina, j� defenderam que uma suposta "persegui��o" � cria��o de gado solto na regi�o seria uma das raz�es para a piora das queimadas na regi�o, al�m das restri��es ao manejo do fogo em pastagens e em reservas ambientais.
O argumento � que proibi��es �s queimadas preventivas em fazendas e em reservas ambientais provocaram o ac�mulo de mat�ria org�nica (mato, galhos e folhas secas), que depois serviu de combust�vel para os inc�ndios.
Essas teorias, por�m, n�o procedem. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que a cria��o de gado aumentou no Pantanal nos �ltimos anos, ao inv�s de diminuir — o que contradiz a ideia de que o boi pantaneiro seria fundamental para impedir inc�ndios.
Al�m disso, a queima preventiva n�o foi proibida totalmente nos �ltimos dois anos — s� foi restrita pelos governos estaduais durante a esta��o seca, seguindo orienta��es do pr�prio Minist�rio do Meio Ambiente. E �rea coberta por unidades de conserva��o na regi�o � �nfima, de menos de 5% do bioma.
Na verdade, um dos principais motivos para os inc�ndios � o clima: o Pantanal vive a pior seca dos �ltimos 60 anos, segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden).
As queimadas no Pantanal neste ano s�o consideradas as piores em d�cadas. Cerca de 26% da �rea do bioma j� foi consumida pelo fogo at� agora. A labaredas j� destru�ram uma �rea de 33 mil quil�metros quadrados no bioma — o equivalente a quase seis vezes a �rea do Distrito Federal.

Argumentos do governo
"O que aconteceu com o Pantanal? Eles est�o h� dois anos sem fazer o 'fogo frio' (queima controlada), que (�) esse fogo preventivo, o manejo preventivo do fogo. Por quest�es ideol�gicas, quest�es administrativas", disse Salles no dia 13 de agosto, em entrevista ao canal do YouTube deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
"Segundo aspecto que tamb�m foi chamada a nossa aten��o l�: cada vez mais vem se perseguindo a cria��o de gado solto no Pantanal. S� que � o gado solto que come o capim. Ent�o, diminui tamb�m essa massa org�nica (inflam�vel). E voc� n�o deixar de criar gado de maneira extensiva l� tamb�m propiciou um aumento substancial desse material org�nico", disse o ministro do Meio Ambiente — sem, no entanto, mostrar evid�ncias de que a cria��o de gado na regi�o tenha diminu�do.
O mesmo discurso � adotado pelo presidente da Rep�blica. "Se o gado n�o come capim em determinadas �reas, acumula capim seco e graveto sem vida e, quando vem o fogo (...), vai embora", disse Bolsonaro em uma live no fim de agosto.
Na verdade, tanto Bolsonaro quanto o ministro ecoam uma tese defendida pelo agr�nomo e pesquisador da Embrapa Evaristo de Miranda, atual chefe da Embrapa Territorial.
Em entrevista � r�dio Jovem Pan no fim de agosto, Miranda culpou o decl�nio da pecu�ria no Pantanal e a cria��o de reservas ambientais na regi�o pelo fogo. "Quando a pecu�ria declina, por raz�es econ�micas, de competitividade etc., quando se retira o boi, como se retirou de grandes reservas que se criaram na regi�o, reservas ecol�gicas, a RPPN (Reserva Particular do Patrim�nio Natural) do Sesc Pantanal, o que acontece nesses lugares, tirando o gado e cercando? O capim cresce muito e acumula muita massa vegetal. Na hora em que pega fogo, � um fogo muito intenso", disse ele.
A reportagem da BBC News Brasil procurou o Ibama e o Minist�rio do Meio Ambiente para coment�rios sobre o assunto, mas at� o momento n�o houve resposta.
Rebanho aumentou e pastagens tamb�m
Especialistas ouvidos pela BBC dizem que o gado criado solto ajuda, de fato, a reduzir a quantidade de mat�ria prima dispon�vel para queima — mas n�o � a redu��o na pecu�ria que explica os inc�ndios deste ano.
Os dados da Pesquisa Pecu�ria Municipal do IBGE sobre os rebanhos bovinos de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul nas �ltimas d�cadas e as informa��es do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) sobre os focos de calor no bioma Pantanal n�o indicam que haja correla��o entre uma coisa e outra.
Segundo os t�cnicos, h� pelo menos dois problemas com a teoria do "boi bombeiro".
O primeiro � que o rebanho bovino no Pantanal est� crescendo nos �ltimos anos, ao inv�s de diminuir. Al�m disso, no caso da reserva natural citada por Miranda, o fogo teria come�ado justamente em uma fazenda de cria��o de gado, segundo per�cia — e n�o na �rea de preserva��o.
"Os dados da Pesquisa Pecu�ria Municipal, que engloba 22 munic�pios no MT e MS que fazem parte do Pantanal, apontam um crescimento do rebanho, e n�o uma redu��o. O �ltimo dado � de 2018, mas ele vem crescendo desde os anos 1999. Nos �ltimos 19 anos, est� crescendo. Ent�o, n�o tem nenhuma l�gica dizer que diminuiu a cria��o de boi no Pantanal", diz o engenheiro florestal e coordenador do projeto Mapbiomas, Tasso Azevedo.

Segundo Tasso, o que est� acontecendo de fato no Pantanal � uma substitui��o das pastagens naturais — que fazem parte do bioma — por pastagens plantadas, com esp�cies de capim estranhas ao ecossistema.
"Quando voc� usa a pastagem natural, o gado precisa se mover de um lado para o outro, conforme a �poca do ano. Ent�o, para fazer uma pastagem mais intensiva, voc� faz essa convers�o (das pastagens nativas para plantadas)", diz ele.
"Essas pastagens plantadas (com esp�cies ex�ticas) n�o t�m a mesma din�mica (em rela��o ao fogo) que as pastagens naturais. E a interface delas junto ao fogo � que pode explicar melhor o que est� acontecendo l�", diz Tasso.
"Segundo dados do Mapbiomas, entre 1999 e 2019 a cobertura de vegeta��o nativa no Pantanal caiu 7%, reduzindo de 13,1 milh�es de hectares, para 12,2 milh�es de hectares", detalha Vin�cius Silgueiro, que � coordenador de intelig�ncia territorial do Instituto Centro de Vida (ICV).
"J� a �rea de pastagem ex�tica cresceu 64% sobre �reas naturais, passando de 1,4 milh�es de hectares, para 2,3 milh�es de hectares. Nesse mesmo per�odo, o rebanho de bovinos no Pantanal aumentou 38%, de 6,9 milh�es para 9,58 milh�es de cabe�as", disse Vin�cius � BBC News Brasil, por meio de mensagem de texto.
"Ainda que ele tenha crescido no Pantanal, proporcionalmente, o rebanho bovino aumentou mais em outras regi�es do estado. Mas, por raz�es econ�micas, e n�o por restri��es ambientais espec�ficas do Pantanal. E isso, como mostram os dados, vem se consolidando a mais de 20 anos, e n�o nos �ltimos 2 anos", acrescenta ele, que � engenheiro florestal.
"O munic�pio com maior rebanho bovino em todo Mato Grosso, com mais de 1 milh�o de bovinos, segundo dados do IBGE, � justamente C�ceres, um munic�pio pantaneiro. Tamb�m em Pocon�, o efetivo bovino, que tem mais de meio milh�o de cabe�as, � o maior desde 1974 e cresceu 48% nos �ltimos 11 anos", pontua ele.
'O problema n�o � o boi, � o dono', diz agr�nomo
Engenheiro agr�nomo e doutor em geografia pela Universidade de S�o Paulo (USP), Felipe Augusto Dias � taxativo sobre a possibilidade dos inc�ndios estarem ligados � sa�da dos bovinos. "Essa rela��o n�o existe", diz ele.
Dias explica que o fogo � uma das ferramentas de manejo usadas na pecu�ria.
"O que existe � que toda atividade pecu�ria necessita ter um bom manejo. Manejo significa o qu�? � utilizar, dentro de uma �rea de pasto, a capacidade de unidade animal por hectare naquele pasto. Ou seja, cada pasto tem a capacidade de suportar, por hectare, uma quantidade determinada de boi pastando", diz ele. Se a quantidade de bovinos for maior (ou menor) que o necess�rio, a pastagem se torna imprest�vel com o tempo, explica o agr�nomo.

"Ent�o, o problema do boi-bombeiro n�o est� no boi. Est� no dono. Se o dono n�o tem, na sua �rea, o manejo adequado, ele vai depois usar a ferramenta, que � o fogo, para melhorar o seu pasto. Ent�o essa rela��o depende muito da atividade ser bem feita", diz ele.
"Eu n�o sou contra o uso do fogo no manejo da pastagem no Pantanal. Sou contra o uso no momento inadequado. Para fazer esse uso voc� tem que ter um certo n�vel de umidade, a temperatura mais amena, para voc� queimar o pasto num per�odo adequado de modo a evitar grandes inc�ndios", explica.
Clima � o principal componente, diz bi�logo
O bi�logo Andr� Luiz Siqueira diz que o principal determinante para as queimadas na regi�o � o clima — e n�o a cria��o de gado ou as �reas de preserva��o.
"O que existe (da parte das autoridades) � um desconhecimento completo do que se passa no Pantanal. O ciclo hidrol�gico � o que rege o que se passa naquele ambiente. (...) Estamos tendo eventos clim�ticos extremos nos �ltimos dois anos, que t�m agravado a situa��o", diz ele.
"O principal regulador de desmatamento e queimadas no Pantanal (...) sempre foi a �gua. Sempre foi o ciclo hidrol�gico. � a maior zona inund�vel permanente do mundo", diz ele, acrescentando que a regi�o enfrenta a pior estiagem em 60 anos.
"Quando se tem cheias regulares ou boas, milhares de hectares s�o inundados e seguram durante muito tempo o fogo que � feito pelos propriet�rios rurais. Por n�o termos isso, � �bvio que se expandiu o fogo. De uma forma que n�o teve como segurar, porque o Pantanal estava seco", diz Siqueira, que � presidente da Ecoa, uma organiza��o n�o governamental.
"Ent�o esse � o principal ponto. N�s n�o tivemos o per�odo �mido e chuvoso para fazer a queima prescrita (...). E outra: n�o foi feita, tamb�m, por falta de recursos (inclusive do governo federal). Ent�o todo o trabalho de preven��o e controle come�ou em junho de 2020, no auge j� das secas", diz.
O bi�logo conta o caso de uma unidade de conserva��o apoiada pela Ecoa no munic�pio de Lad�rio (MS): a organiza��o pagou para manter equipes de brigadistas atuando na �rea em junho deste ano, no auge da seca, porque o repasse do governo federal para o Prevfogo ainda n�o tinha sido feito. Segundo ele, situa��es de atraso como estas tamb�m aconteceram no ano passado.
"� claro que isso � uma ferramenta (a queima controlada) que � fundamental de ser utilizada. Mas est�o descontextualizando tudo, e fazendo uma an�lise muito simplificada e superficial dessa rela��o", diz ele.
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