“Sempre me coloquei numas rela��es meio abusivas e, quando eu tinha 14 pra 15 anos, conheci uma pessoa. Eu tinha medo dele. Ele era autorit�rio comigo, falava de forma autorit�ria. N�o sei, eu era diferente quando era adolescente, n�o era do jeito que sou hoje em dia. Ele estava muito nervoso, muito estressado, e eu estava com bastante medo das rea��es dele quando ele estava estressado. Acabei perguntando se ele queria ir pra um lugar s� n�s dois. Rapidamente o estresse dele parou e ele perguntou se eu tinha certeza. Falei que sim. Mas hoje tenho plena certeza que eu falei sim porque eu estava morrendo de medo do estresse dele.”
Esse relato da cantora e empres�ria Anitta no document�rio “Anitta Made in Hon�rio”, lan�ado na Netflix em dezembro, revela estupro que ela sofreu aos 14 anos. A recorda��o de Anitta � um exemplo de como a cultura da viol�ncia contra as mulheres se revelam desde cedo.
A pedofilia � uma doen�a classificada pela Organiza��o Mundial de Sa�de (OMS) desde os anos 1960. Segundo o C�digo Penal brasileiro, � crime abusar sexualmente de menores de 14 anos e consumir e distribuir pornografia infantil. Abusar sexualmente de uma crian�a � abomin�vel, um crime indefens�vel. Mas ser� que a pedofilia � algo t�o inaceit�vel assim pela sociedade? Nesta terceira reportagem da s�rie Viol�ncias do canal #PRAENTENDER, do Estado de Minas, consultamos especialistas para entender como a cultura da pedofilia est� muito presente em nosso cotidiano.
O Disque 100, servi�o do Governo Federal que recebe den�ncias contra viola��o dos direitos humanos, recebeu em 2019 mais de 17 mil notifica��es de viol�ncia contra crian�as e adolescentes. Entre as den�ncias, 82% das v�timas eram do sexo feminino e 87% dos abusadores eram homens. A maioria dos casos (52%) ocorreu dentro de casa. Mas, assim como ocorre com outros crimes, muitos nem chegam a ser denunciados.
"Enxergo a pedofilia como a raiz da explora��o feminina. Ent�o n�s temos que proteger as crian�as para proteger as mulheres. Se voc� n�o protege as crian�as, as mulheres do futuro n�o ser�o protegidas"
Ruana Castro, integrante do coletivo antipedofilia Sangra Coletiva
O que diz a lei
A pedofilia em si n�o � crime, pois � um quadro de psicopatologia, com crit�rios diagn�sticos, e o indiv�duo pode nunca chegar a cometer nenhum crime por controlar seus impulsos sexuais. Por crimes ou viol�ncias sexuais contra crian�as e adolescentes compreende-se o abuso sexual, estupro, explora��o sexual, explora��o sexual no turismo, ass�dio sexual pela internet e pornografia infantil.
“Enxergo a pedofilia como a raiz da explora��o feminina. Ent�o n�s temos que proteger as crian�as para proteger as mulheres. Se voc� n�o protege as crian�as, as mulheres do futuro n�o ser�o protegidas. As crian�as, principalmente as meninas que s�o as maiores v�timas de explora��o sexual, sofrem uma s�rie de abusos que v�o lev�-las a normatizar as viol�ncias, das f�sicas �s sexuais. Elas s�o socializadas nessas viol�ncias. Aprendem por meio da educa��o”, diz a integrante do coletivo feminista antipedofilia Sangra Coletiva, Ruana Castro. Ou seja, a cultura da peodiflia � a aceita��o e at� exalta��o do abuso e da erotiza��o de crian�as.
“A gente cresce com a ideia de que o ped�filo � um doente que se esconde em um terreno baldio e que ataca crian�as. Mas, as estat�sticas sobre estupro e viol�ncia dizem o contr�rio: os abusos ocorrem em casa. Ser� que s�o tantos homens doentes que se escondem em um terreno baldio ou ser� que � algo permitido e exaltado socialmente?”, questiona a comunic�loga Clara Fagundes.
Inf�ncia negada pela imagem
“As meninas amadurecem mais r�pido”. Ser� que amadurecem mesmo? Ou elas s�o expostas ao suposto amadurecimento? � cada vez mais comum se deparar com crian�as se portando precocemente como adolescentes. Esse � o processo que os especialistas nomeiam como “adultiza��o” da crian�a. A atriz Millie Bobby Brown, conhecida pelo papel de Eleven na s�rie Stranger Things, da Netflix, exemplifica esse processo.

Desde os 14 anos, a jovem passou a usar cabelos compridos, maquiagem carregada, al�m de alguns looks com salto alto. A discuss�o, que j� existia, foi intensificada quando a revista W Magazine colocou na capa o nome da atriz abaixo da chamada: “Por que a TV est� mais sexy que nunca”. Isso n�o � culpa da atriz. Inclusive, isso � algo que ocorre com mais frequ�ncia do que reparamos. Foi assim com Britney Spears, Emma Watson e com Larissa Manoela.
Garotas est�o expostas ao padr�o de beleza desde muito novas. Pesquisa feita pela organiza��o australiana Pretty Foundation revelou que 38% das meninas de 4 anos n�o est�o satisfeitas com seus corpos. E 34% de garotas de 5 anos pretendem fazer dieta. Os concursos de beleza j� levantam diversas problem�ticas ao avaliar o corpo como seu maior requisito para as mulheres, mas a quest�o se torna ainda mais preocupante quando envolve crian�as. Os concursos de beleza infantis tiveram in�cio na d�cada de 1960 nos Estados Unidos. Mas, at� o ano passado, havia concursos infantis ocorrendo no Brasil.
E essa adultiza��o n�o vem apenas na forma de se portar. Mas, na forma em que desde cedo as crian�as enxergam como as mulheres s�o representadas pela ind�stria dos brinquedos. A Bratz � uma boneca muito famosa no mundo e exemplifica bem a boneca “sexy”. Ela se veste com roupas curtas, meia arrast�o e maquiagem carregada.
Em protesto contra a sexualiza��o excessiva que alguns brinquedos prop�em, a artista australiana Sonia Singh decidiu remover toda a maquiagem presente em bonecas Bratz de segunda m�o e mostrou a fei��o natural que elas t�m. O projeto, chamado Tree Change Dolls, troca a apar�ncia “sexy beleza padr�o” que essas bonecas buscam ter por algo mais realista, que fa�a parte do dia a dia da crian�a.
Diferen�a entre g�neros
A l�gica com as mulheres adultas ocorre ao contr�rio. Quando o assunto � idade, h� formas comuns e sutis de for�ar uma jovialidade feminina e, consequentemente, penalizar o envelhecimento, que � algo natural. A ind�stria vende que ser bela � ser uma mulher sem pelos, bochechas rosadas, pele lisa como a de um beb�. “A cultura da peodifilia propaga o terror do envelhecimento feminino.

A mulher mais velha � uma bruxa, ela tem que ser voltada para rejuvenescimento”, diz a comunic�loga Clara Faguntes. Os exemplos v�o desde a bruxa de Encantada at� a da Branca de Neve, que fica com inveja da mulher mais jovem e mais bonita.
“A est�tica hoje � uma est�tica ped�fila. O corpo das mulheres tem que ser um corpo infantil, sem pelos, um corpo que vai ser maquiado como corpo infantil. Ir�o ter um comportamento infantilizado, com roupas curtas, apertadas, justas. E as crian�as ser�o v�timas dessa pedofilia justamente porque toda a sexualidade masculina � voltada para gostar de crian�as e mulheres infantilizadas. N�o � gostar de uma mulher adulta”, diz Ruana Castro, da Sangra Coletiva.
Ou seja, a mulher considerada “sexy” � a uma mulher inofensiva, jovem e at� infantil. Muitas vezes essa mulher aparece usando roupas infantis como, por exemplo, roupas de colegial. Juliana Caetano tem 22 anos, vocalista do Bonde do Forr�, chama a aten��o nas redes sociais devido a hipersexualiza��o e os trajes infantis. E, mais uma vez, a culpa n�o � da mulher. Mas, da forma em que a sociedade enxerga a figura feminina.
Romantiza��o dentro da cultura pop
“Ele n�o � o pedofilo que se esconde no terreno baldio, mas acha extremamente normal um homem de 40 anos com uma menina de 17”, questiona Clara Fagundes. Essa � uma representa��o muito comum dos filmes mais famosos de Hollywood �s novelas brasileiras. E todos esses homens, apesar de mais velhos, s�o representados como gal�. “E, na grande parte das vezes, para n�o ficar t�o descarado, � a mulher que se interessa. � a mulher que seduz e o homem n�o consegue se controlar”, analisa Clara.

Os animes e mang�s s�o os grandes representantes da cultura pop japonesa no Brasil. � muito comum que mulheres em cenas de a��o permane�am focadas na est�tica, com salto alto, roupas justas e decotadas, cabelos bem arrumados, acess�rios e maquiagem. Ver uma crian�a adultizada ou uma mulher exageradamente “sensual”, ou seja, objetificada, pode mudar o jeito de enxergar a mulher em sociedade.
N�o por acaso “teen” e “hentai” s�o algumas das buscas mais procuradas nos sites de pornografia. “Essas s�o as grandes pesquisas no mundo. Mas tamb�m temos busca de ninfeta, novinha, quase ilegal, chave de cadeia. S�o v�rias pesquisas que demonstram esse desejo pela mulher que n�o � mulher ainda”, afirma Clara.
"A gente cresce com a ideia de que o ped�filo � um doente que se esconde em um terreno baldio e que ataca crian�as. Mas as estat�sticas dizem o contr�rio: os abusos ocorrem em casa"
Clara Fagundes, comunic�loga
Da fic��o para a realidade, no Jap�o esse desejo pode ser explorado em “Maid Cafes”, onde as funcion�rias vestem-se com uniformes de empregada, muitas vezes vestidas de colegial, e tratam seus clientes como “mestres” de uma mans�o. Foi apenas em 2014 que o governo do Jap�o decretou uma lei que pro�be e penaliza a posse de fotos e v�deos abusivos de menores.
Para denunciar
Ligue 100 - em casos de viol�ncia contra crian�as, adolescentes ou vulner�veis.
Ligue 180 - para os demais casos
Ligue 190 - para urg�ncia