
"A covid-19 �, sem sombra de d�vidas, a doen�a mais preocupante do s�culo no impacto e preju�zo das fun��es neuropsicol�gicas", diz a neuropsic�loga L�via Valentin, professora e pesquisadora da Universidade de S�o Paulo (USP).
Essa pesquisa se soma a mais de 200 outros estudos ao redor do mundo que tratam do impacto neurol�gico direto ou indireto da covid-19, os poss�veis caminhos que o v�rus percorre no corpo humano at� chegar ao c�rebro e os sintomas que podem afetar as pessoas por meses ap�s a infec��o.
Entre eles, dor de cabe�a, perda de olfato, tontura, problemas de mem�ria, dificuldade de aten��o, dores musculares, ansiedade e depress�o.
E n�o est� claro se alguns deles ser�o permanentes.
Essa d�vida preocupa a banc�ria Evelize Vasconcelos, de 40 anos, que foi internada em unidade de terapia intensiva (UTI) em Salvador ap�s contrair coronav�rus e tem "sensa��o de estar sempre balan�ando" desde que recebeu alta. "� como se eu estivesse em alto mar."
Seu relato � BBC News Brasil � feito de forma pausada por dois motivos: ainda falta ar aos pulm�es em recupera��o e as palavras somem com frequ�ncia enquanto seu racioc�nio vai e vem. Ela n�o sabe quanto tempo vai levar at� recuperar a agilidade de antes, j� que agora mal consegue fazer contas simples de matem�tica.
Os exames ainda n�o conseguiram explicar o que est� acontecendo, e a forma exata com que o coronav�rus afetou as fun��es neurol�gicas dela est� ligada a uma das quatro grandes linhas de pesquisa dessa �rea desde o in�cio da pandemia, quando ficou claro que a covid-19 n�o era uma simples doen�a respirat�ria.

Afinal, como o v�rus invade o sistema neurol�gico, como esse ataque est� ligado aos sintomas, quais s�o os poss�veis tratamentos e quantas pessoas s�o afetadas de forma tempor�ria ou permanente?
Em linhas gerais, esses sintomas est�o ligados a tr�s partes importantes do corpo humano:
- Sistema nervoso central, respons�vel por receber informa��es dos sentidos e distribuir a��es: dores de cabe�a, tontura, confus�o, doen�a cerebrovascular aguda, ataxia (que afeta coordena��o, fala e equil�brio) e convuls�es;
- Sistema nervoso perif�rico, respons�vel por conectar o sistema nervoso central a outras partes do corpo: comprometimento de olfato e paladar, problemas de vis�o, audi��o e tato);
- Sistema musculoesquel�tico, respons�vel pela estabilidade e movimenta��o do esqueleto: dores (mialgias) e les�es musculares.
Para grande parte dos pacientes, os danos cerebrais se tornam sequelas da chamada covid-19 longa, condi��o de sa�de na qual o impacto da doen�a persiste por semanas ou meses.
"A etiologia (origens e causas) dos sintomas neuropsiqui�tricos em pacientes de covid-19 � complexa e multifatorial. Pode estar ligada ao efeito direto da infec��o, a doen�as cerebrovasculares (incluindo hipercoagula��o), a um comprometimento fisiol�gico (hipoxia), a efeitos colaterais de medicamentos e a aspectos sociais de ter uma doen�a potencialmente fatal", afirmam pesquisadores de universidades dos EUA, do M�xico e da Su�cia que analisaram dezenas de estudos, envolvendo 48 mil pacientes.
Os sintomas mais relatados por pacientes s�o dor de cabe�a (44%), dificuldade de aten��o (27%), anosmia (perda do olfato, em 21%), al�m de outros dois menos comuns, por�m mais incapacitantes, como neuropatias e confus�o mental ("brain fog", em ingl�s, ou "n�voa cerebral", em tradu��o literal).
Ainda n�o h� dados precisos sobre o perfil dos pacientes mais afetados, mas em geral os estudos apontam que a maioria � formada por pessoas acima de 40 anos.

Como o coronav�rus invade o sistema nervoso central?
Pesquisadores da cidade chinesa de Wuhan, considerada o primeiro epicentro da pandemia, analisaram 214 pacientes infectados entre janeiro e fevereiro de 2020. Do total, 37% apresentavam impactos neurol�gicos da doen�a e 59% deles eram mulheres.
Esse estudo jogou luz sobre o fato de que pacientes com infec��es graves do novo coronav�rus apresentavam les�es neurol�gicas frequentes. N�o se sabia naquele momento se essas manifesta��es ocorriam por a��o direta ou indireta do v�rus Sars-Cov-2, e at� hoje isso n�o est� claro.
Dois meses depois, outro grupo de pesquisadores da China sugeriram duas hip�teses para a invas�o do sistema nervoso pelo v�rus: por vasos sangu�neos ap�s passagem pelos pulm�es ou pelo nariz, via mucosa olfat�ria, que � ligada ao sistema nervoso central.
Daniel Martins-de-Souza, professor do departamento de bioqu�mica da Universidade de Campinas (Unicamp), explica em entrevista � BBC News Brasil que mais de um ano depois a pergunta como o coronav�rus chega no c�rebro "foi respondida parcialmente".
Os estudos t�m mostrado que o fato de o v�rus n�o chegar ao c�rebro de todos os infectados aponta que o caminho mais prov�vel � aquele que passa pelo nervo olfat�rio, que conduz impulsos el�tricos associados ao sentido do olfato.
Segundo estudo liderado por pesquisadores de universidades de Berlim (Alemanha), amostras de 33 pessoas que morreram de covid grave apontam que o v�rus pode entrar na mucosa olfat�ria, cruzar a interface neural-mucosa e entrar no sistema nervoso. A mucosa olfat�ria reveste algumas regi�es das cavidades nasais e tem em sua composi��o c�lulas sensoriais que derivam do sistema neurol�gico central.
No estudo, publicado em novembro de 2020, eles dizem ter encontrado nessa regi�o part�culas intactas de coronav�rus. Segundo os pesquisadores, a invas�o de c�lulas nervosas da mucosa olfat�ria pelo v�rus poderia explicar sintomas neurol�gicos mais diretos em pacientes com covid-19, como a perda de olfato e de paladar. Al�m disso, a presen�a do coronav�rus em �reas do c�rebro com fun��es vitais pode ter outro impacto mais grave: agravar a dificuldade de respira��o.

O que o coronav�rus faz no c�rebro?
Ao chegar ao c�rebro, o v�rus mira dois pilares do sistema nervoso: os neur�nios e os astr�citos. Em resumo, os primeiros s�o respons�veis por transmitir impulsos nervosos e os segundos, por abastec�-los de energia.
N�o est� claro o que leva o coronav�rus ao c�rebro, mas pesquisadores t�m avan�ado no entendimento dos poss�veis mecanismos do que acontece quando ele est� ali.
Martins-de-Souza, da Unicamp, explica que o corpo humano conta com uma barreira hematoencef�lica, que � uma esp�cie de guardi� que permite que elementos presentes no sangue cheguem ao c�rebro, mas evita a passagem de pat�genos como v�rus e bact�rias.
S� que alguns invasores conseguem ultrapassar essa barreira. Uma das portas de entrada seria a prote�na ACE2 (ou ECA2, em portugu�s), que funciona como uma esp�cie de "fechadura" de c�lulas humanas abertas pela "chave" do coronav�rus (a tal prote�na spike, aqueles "espinhos" presentes em torno do v�rus que formam uma "coroa" e d�o nome ao coronav�rus).
Mas, em um estudo produzido em outubro de 2020, Martins-de-Souza e outros 79 colegas analisaram tecidos cerebrais de pacientes que morreram de covid-19 e em c�lulas cultivadas em laborat�rio e identificaram a presen�a do coronav�rus nos astr�citos, que n�o contam com a ACE2.
Ent�o, por onde o Sars-Cov-2 entrou? Aparentemente, a porta de entrada aqui � a neuropilina (NRP1), uma prote�na numerosa tamb�m em vasos sangu�neos e neur�nios.
"O NRP1 � expresso at� mesmo em neur�nios olfat�rios, dando � Sars-CoV-2 um caminho direto para entrar nessas c�lulas e interromper o olfato", explicam seis pesquisadores de hospitais da Fl�rida (EUA) em outro estudo sobre esse ponto. Segundo eles, essa invas�o pode aumentar a capacidade do coronav�rus de se espalhar e infectar.
"Quando o v�rus est� dentro dos astr�citos, ele muda a maneira com a qual os astr�citos produzem energia. C�lulas vivem para produzir energia, para poder desempenhar as fun��es dela. Ent�o o v�rus, de alguma forma, muda a maneira com a qual o astr�cito produz energia, porque ele precisa de energia tamb�m para se replicar", explica Martins-de-Souza.
Isso pode levar � morte do neur�nio por "falta da energia" que recebia dos astr�citos ou por causa do ambiente t�xico que surge no c�rebro quando os astr�citos passam a produzir uma subst�ncia prejudicial aos neur�nios.
O cen�rio descrito pode ser o respons�vel, segundo os cientistas, pelas altera��es neuropatol�gicas e pelos sintomas neuropsiqui�tricos observados em pacientes com covid-19.

Quais s�o os principais sintomas neurol�gicos?
H� diversos sintomas neurol�gicos que v�m sendo associados � covid-19 desde o in�cio da pandemia, como dor de cabe�a, perda de mem�ria, confus�o mental e dificuldade de concentra��o. Al�m disso, h� outras condi��es mais raras, como acidente vascular cerebral, comprometimento da consci�ncia, psicose, del�rio, convuls�es e encefalopatia.
Alguns desses sintomas podem ser sinais de que o sistema imunol�gico est� combatendo a doen�a, mas a grande maioria n�o.
"Acho que n�o estava na conta de ningu�m imaginar que pessoas que n�o foram internadas, que seriam quadros 'leves', pudessem ficar com uma gama de altera��es neurol�gicas incapacitantes, como observamos n�o s� aqui mas no mundo inteiro", explicou Clarissa Lin Yasuda, m�dica e professora do departamento de neurologia da Unicamp, em entrevista recente � BBC News Brasil.
Ela � uma das coautoras do estudo do qual Martins-de-Souza participou, que identificou sinais de danos cerebrais em 25% das pessoas que morreram de covid-19.
"� muita coisa que a gente n�o sabe, muita coisa para ser estudada: o quanto desses quadros neurol�gicos tem um componente inflamat�rio, o quanto � autoimune, o quanto � um ataque direto do v�rus. Ningu�m tem uma resposta, mas acho que � uma combina��o disso tudo."
Segundo o grupo de pesquisadores de universidades dos EUA, do M�xico e da Su�cia que analisou dezenas de estudos sobre o tema, pacientes adultos que tiveram covid-19 t�m o dobro de chance de desenvolver transtornos psiqui�tricos, como ansiedade, ins�nia e dem�ncia. Isso pode estar ligado tamb�m ao impacto negativo da doen�a na qualidade do sono dos pacientes.
Mas crian�as e adolescentes tamb�m correm s�rios riscos. Quarenta e oito m�dicos e pesquisadores dos EUA produziram um estudo, publicado no come�o do m�s no peri�dico Jama Neurology, que aponta que 22% dos pacientes com menos de 21 anos tiveram sintomas neurol�gicos e 12% com dist�rbios neurol�gicos potencialmente fatais, como encefalopatia grave, acidente vascular encef�lico (AVC), infec��o do sistema nervoso central e s�ndrome de Guillain-Barr� (uma fraqueza muscular causada pelo sistema imune que pode ser fatal).

Impacto na mem�ria
Os mecanismos da associa��o direta entre a covid-19 e os problemas de mem�ria de curto e longo prazo ainda n�o est�o muito claros. Mas h� algumas pistas em estudo.
Natalie Tronson, professora da Universidade de Michigan (EUA) e especialista em forma��o da mem�ria, afirma que mudan�as duradouras no c�rebro ap�s problemas graves de sa�de, como infarto e covid-19, s�o associadas ao aumento do risco de decl�nio cognitivo com o avan�o da idade e tamb�m de doen�as como Parkinson.
Essas transforma��es no c�rebro podem afetar a mem�ria tanto por danificar a conex�o entre os neur�nios quanto por mudan�as no funcionamento neuronal, como dito anteriormente em rela��o aos problemas da "transmiss�o de energia" dos astr�citos para os neur�nios.
Outro ponto problem�tico envolve as micr�glias, que s�o um tipo de c�lula imunol�gica do c�rebro.
"Durante doen�as e inflama��es, as c�lulas imunol�gicas especializadas no c�rebro se tornam ativas, disparando uma enorme quantidade de sinais inflamat�rios e modificando como eles se comunicam com os neur�nios. Para um tipo de c�lula, a micr�glia, isso significa mudar sua forma, abandonando bra�os finos e se tornando c�lulas m�veis e inchadas que envelopam poss�veis pat�genos e detritos celulares em seu caminho. Ao fazerem isso, elas tamb�m destroem e devoram conex�es neuronais que s�o muito importantes para o armazenamento da mem�ria."
Outra mudan�a estrutural do c�rebro chamou a aten��o dos cientistas. Martins-de-Souza, da Unicamp, explica que a morte neuronal provocada pelos astr�citos pode levar a uma mudan�a na espessura do c�rtex cerebral, regi�o respons�vel pela fala, mem�ria, compreens�o da linguagem, entre outras tarefas.
O estudo do qual ele participou aponta que essa mudan�a estrutural ocorrida no c�rtex durante a covid-19 pode ter impacto na mem�ria. "Os resultados apontam que um c�rtex mais fino est� associado a um pior desempenho em tarefas de mem�ria verbal. Em geral, nossos achados indicam altera��es significativas na estrutura cortical associada a sintomas neuropsiqui�tricos em pacientes com sintomas respirat�rios leves ou mesmo sem sintomas respirat�rios", afirmam os pesquisadores.
� o caso da estudante Geovanna Bessa, 18, moradora de Para�so do Tocantins (TO) que apresentou sintomas leves de covid-19 em janeiro de 2021, mas at� hoje n�o se livrou da grande e constante perda de mem�ria, da sensa��o de estar a�rea e da dificuldade de se concentrar.
Ela chega a se esquecer do que est� falando no meio de uma conversa. "A perda de mem�ria � algo que parece inofensivo, mas que faz toda a diferen�a; �s vezes me esque�o se tranquei a porta ou desliguei o fogo, o que � muito perigoso", conta � BBC News Brasil.

Dura��o dos sintomas e poss�veis tratamentos
"Ainda n�o sabemos se existe a possibilidade de revers�o do quadro cognitivo prejudicado. Assim como algumas pessoas ainda n�o retornaram com seus paladares e olfatos, outras est�o ainda apresentando falhas significativas na mem�ria, fun��o executiva e linguagem mesmo depois de terem se recuperado da covid-19 h� 10 meses", afirma Livia Valentin, da USP, � BBC News Brasil.
Segundo pesquisadores do Hospital Universit�rio de Oslo (Noruega), em estudo com 13 mil participantes, 12% dos infectados por coronav�rus apresentavam problemas de mem�ria oito meses ap�s terem contra�do o v�rus. E esses pacientes continuam a ser acompanhados.
Estudos apontam tamb�m que o surgimento desses sintomas varia bastante de um paciente para outro. Pesquisadores da Northwest Medicine, um operador de sa�de dos EUA, acompanharam 509 pacientes internados com covid-19. Do total, 42% tiveram sintomas neurol�gicos no in�cio da infec��o, 63% durante o per�odo de interna��o e 82% ao longo do per�odo inteiro. Os tr�s principais sintomas eram dores musculares, dor de cabe�a e encefalopatia (termo usado para doen�as difusas cerebrais que alterem sua estrutura ou sua fun��o).
Sem protocolo
At� o momento, n�o existe um protocolo de tratamento estabelecido para os sintomas neurol�gicos ligados � covid-19, uma doen�a nova, sist�mica e multifatorial.
Al�m das vacinas, h� rar�ssimos medicamentos capazes de evitar casos graves e mortes por covid-19. Mas eles s� s�o adotados por m�dicos na avalia��o caso a caso, e n�o como preven��o ou tratamento em larga escala para a popula��o. E a automedica��o tamb�m pode agravar a doen�a.
� o caso da dexametasona, um corticoide que combate uma rea��o desproporcional do sistema imunol�gico de alguns pacientes (tempestade de citocinas) contra a covid que pode acabar tendo o efeito inverso e leva � morte. Essa rea��o imunol�gica desenfreada potencialmente fatal pode afetar diversos �rg�os, e um deles � o c�rebro.
Esse medicamento tamb�m pode ter efeitos positivos contra os sintomas neurol�gicos. Especialistas do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York (EUA), analisaram a fundo 18 pacientes com c�ncer que foram infectados pela covid-19 e que refor�aram a hip�tese de uso de anti-inflamat�rios para lidar com a chamada n�voa cerebral.
Mas o que um paciente deve fazer caso desenvolva outros sintomas neurol�gicos, como confus�o mental, perda de mem�ria, tontura e dor de cabe�a?
Segundo Valentin, da USP, "os tratamentos s�o muito variados, desde os medicamentosos, psicoter�picos, reabilita��o neuropsicol�gica, fisioter�pico". Ela defende que o per�odo p�s-covid-19 "exige um olhar preocupante de sa�de p�blica" e, por isso, deveria envolver diversos profissionais em equipes multidisciplinares tanto no problema quanto no tratamento.
"Caso contr�rio teremos uma popula��o extremamente prejudicada em um futuro muito breve nas esferas laboral, social, acad�mica, familiar e pessoal das pessoas afetadas. Como falamos de milhares, qui�� milh�es de pessoas afetadas, penso que a necessidade de um trabalho emergente e urgente j� se faz tarde."
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