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Estado de Minas FOME NA PANDEMIA

Fome e pandemia nas favelas: 'Meus netos comem menos para eu almo�ar'

Da periferia de Recife a Parais�polis, em SP, passando pelas ruas da cracol�ndia: o retrato da fome que contamina moradores de �reas pobres no Brasil enquanto a pandemia bate recordes


01/04/2021 10:15 - atualizado 01/04/2021 15:02

Netos de Josinete comeram menos para que sobrasse comida para ela no domingo(foto: Arquivo pessoal)
Netos de Josinete comeram menos para que sobrasse comida para ela no domingo (foto: Arquivo pessoal)

No �ltimo domingo, a empregada dom�stica Josinete Ant�nia da Silva, de 64 anos, abriu os arm�rios da casa onde mora na periferia de Recife, em Pernambuco. Destampou os potes de mantimentos e n�o encontrou nada. N�o havia nada nas panelas tamb�m. A filha, ao saber que a m�e n�o tinha o que almo�ar, pediu para que os filhos dela comessem menos para que sobrasse para a av�.


"Ela falou: hoje, cada um de voc�s come um pouquinho menos para ter comida para a v� tamb�m. E me mandou carne mo�da, feij�o e arroz. Se n�o fosse ela, n�o sei o que eu teria feito", contou Josinete em entrevista por telefone � BBC News Brasil.

De acordo com ONGs, l�deres comunit�rios e empresas especializadas em doa��es ouvidas pela reportagem, o n�mero de contribui��es caiu drasticamente ao longo da pandemia e hoje, no auge da crise sanit�ria, muitas fam�lias que moram em comunidades n�o t�m o que comer.

Nas �ltimas 24 horas, o Brasil registrou 3.869 mortes por covid-19, superando o recorde registrado na v�spera, 3.780 vidas perdidas.

Josinete recebe uma pens�o no valor de um sal�rio m�nimo (R$ 1.100) e mora com as tr�s filhas, que perderam o emprego na pandemia. Uma delas tem quatro filhos e est� gr�vida. A outra tem dois.

Ela conta que o dinheiro da pens�o � insuficiente para comprar comida para o m�s. O �nico que trabalha na fam�lia � o filho dela, que mora de aluguel no mesmo bairro e faz trabalhos informais como pedreiro.

"Ele me ajuda como pode. Est� tudo muito caro. Vou ao mercado comprar feij�o, arroz, uns pedacinhos de galinha, macarr�o e salsicha e n�o gasto menos de R$ 100. O que pesa � a carne, o arroz e o leite, ainda mais morando com uma crian�a de 3 anos e outra de 9 meses. Tem dia que d� para comprar p�o, outros n�o", conta Josinete.

Al�m dela, na mesma casa moram tr�s filhas e cinco netos. Ao todo, Josinete tem nove filhos (sete desempregados), 33 netos e sete bisnetos.

No in�cio da pandemia, em 2020, ela recebeu cestas b�sicas e dinheiro para fazer a feira, mas no fim do ano essa ajuda diminuiu gradativamente at� parar, conta ela.

O Instituto Casa Amarela Social foi um dos que ajudaram a fam�lia de Josinete na pandemia. O grupo faz diversas campanhas para arrecadar doa��es.

"Eu tenho vergonha de pedir para outras pessoas, mas n�o (quando �) para meus filhos. Eu s� pe�o miseric�rdia para quem tem um pouco mais (de dinheiro) se unir com os outros e ajudar quem n�o tem condi��es de sair dessa sozinho. O governo poderia ter mantido o aux�lio emergencial em R$ 600, mas a gente n�o tem escolha", afirmou.

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O Congresso aprovou a Proposta de Emenda � Constitui��o (PEC) que permite o financiamento do novo aux�lio, que ter� valor m�dio em R$ 250, mas as cotas devem variar entre R$ 150 e R$ 375.

Uma pesquisa feita pelo Data Favela, uma parceria entre Instituto Locomotiva e a Central �nica das Favelas (Cufa), em fevereiro, apontou que, entre os 16 milh�es de brasileiros que moram em favelas, 67% tiveram de cortar itens b�sicos do or�amento com o fim do aux�lio emergencial, como comida e material de limpeza.

Outros 68% afirmaram que, nos 15 dias anteriores � pesquisa, em ao menos um faltou dinheiro para comprar comida. Oito em cada 10 fam�lias disseram que n�o teriam condi��es de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza ou pagar as contas b�sicas durante os meses de pandemia se n�o tivessem recebido doa��es.

Um presidente por rua

O presidente da Uni�o dos Moradores e do Com�rcio de Parais�polis, Gilson Rodrigues, disse que a escassez de doa��es ocorre em favelas por todo o Brasil. Em Parais�polis, a maior de S�o Paulo, um homem chegou a desmaiar na fila enquanto aguardava um prato de comida na �ltima semana.

"Vejo um agravamento da situa��o em que o Brasil fala de um novo normal, com fome e desemprego. A fila de moradores por um marmitex come�a �s 9h, mas a gente s� come�a a entregar meio-dia. Eles fazem isso porque sentem medo de perder a �nica refei��o do dia", afirmou.


Mulheres fazem protesto para denunciar a fome na favela de Paraisópolis em SP(foto: Daniel Eduardo)
Mulheres fazem protesto para denunciar a fome na favela de Parais�polis em SP (foto: Daniel Eduardo)

Gilson conta que, no in�cio da pandemia e auge das doa��es, eles conseguiam entregar 10 mil marmitas por dia. Hoje, s�o 700.

O G10 Favelas, grupo que re�ne as 10 maiores comunidades do pa�s, criou uma central de arrecada��o para ajudar fam�lias de baixa renda de todo o pa�s. H� um endere�o espec�fico para colaborar com moradores de Parais�polis e outras favelas.

O l�der comunit�rio afirmou que, na falta de poder p�blico, a pr�pria favela elegeu presidentes de rua. Cada um cuida de 50 fam�lias. Isso � importante para descentralizar os pedidos, j� que ele conta que chegou a receber 7 mil mensagens de ajuda num �nico dia.

Ele disse que fazer os vizinhos cuidarem uns dos outros gera resultados mais contundentes que muitas pol�ticas p�blicas. Gilson explica o valor da proximidade e humaniza��o com que eles enxergam os problemas de quem mora ao lado.

"Na falta de um presidente para o pa�s, temos um a cada 50 casas. Organizamos a sociedade para que ela tenha um papel real de transforma��o. Cada um desses presidentes acompanha de perto a situa��o dessas pessoas, as defici�ncias na sa�de, alimenta��o. Damos protagonismo �s pessoas e reaproximamos vizinhos", afirmou o l�der comunit�rio de Parais�polis.

Gilson explica que dessa forma as doa��es s�o distribu�das de maneira mais justa e os presidentes de rua fazem o m�ximo para ver quem mora perto dele numa situa��o melhor.

"Fizemos isso em 300 favelas de 14 Estados. Nossa inten��o � salvar vidas. Produzimos mais de 1,4 milh�o de m�scaras, contratamos ambul�ncias. Tudo gra�as ao protagonismo dos pr�prios moradores. O vizinho dos Jardins (�rea nobre de SP) tamb�m deve fazer isso. Conhecer quem mora na mans�o do lado, estender as m�os para um irm�o", afirmou.

Ele explicou que a favela sempre teve a cultura do apoio e que agora o Brasil precisa ativar esse movimento em todos os bairros e inst�ncias. O G10 Favelas criou um site para explicar como levar o projeto de presidente de rua para a sua regi�o.

Marmitex na cracol�ndia

H� um m�s, a universit�ria Alessandra Monteiro pensou em como poderia fazer a��es sociais maiores e mais organizadas do que as doa��es que ela j� costumava fazer.


Alessandra, que entregou 50 marmitex há 15 dias quer ampliar para 200 refeições(foto: Arquivo pessoal)
Alessandra, que entregou 50 marmitex h� 15 dias quer ampliar para 200 refei��es (foto: Arquivo pessoal)

"Eu disse isso para a minha amiga Viviane porque pensei que estava na hora de sair da minha zona de conforto. Eu tenho uma vida muito boa e precisava fazer alguma coisa para algu�m", afirmou.

Ela ent�o mandou mensagem para uma professora que vende marmitas para as colegas e perguntou quanto ela cobrava para fazer 50 refei��es. No dia seguinte, ela avisou aos amigos que faria uma a��o e pediu uma colabora��o de quem pudesse ajudar.

"Comprei as 50 e fiz as primeiras entregas no dia 19 de mar�o na regi�o da cracol�ndia, no centro de S�o Paulo. No mesmo dia, um rapaz pediu uma lona para se cobrir com a mulher dele e o cachorro porque eles estavam dormindo embaixo de um peda�o de madeira. Consegui a doa��o de uma barraca de quatro lugares para ele e vou agora comprar ra��o para o cachorro", afirmou.


Moradores de rua recebem barraca doada em grupo de amigos(foto: Arquivo pessoal)
Moradores de rua recebem barraca doada em grupo de amigos (foto: Arquivo pessoal)

O sucesso da primeira entrega foi t�o grande que os amigos criaram um grupo no WhatsApp com o nome "Fa�a o bem porque o mundo est� mal". Na quinta-feira (1º/04) eles v�o doar 100 marmitas e 100 garrafas d'�gua. Alessandra j� planeja dobrar esse n�mero.

"Daqui 15 dias, quero entregar 200. N�s somos pessoas comuns. N�o somos ricos, mas damos um pouco do que temos para quem n�o tem nada", disse � reportagem.

"Eu n�o tinha o que comer"

J� em meio � pandemia, em 2020, a sogra da comerciante Luciene Alves da Silva, de 60 anos, morreu e deixou dois filhos com defici�ncia intelectual, com 54 e 50 anos de idade.


Após a morte da sogra, Luciene passou a cuidar dos cunhados que têm deficiência intelectual, com a ajuda do marido (camiseta listrada)(foto: Arquivo pessoal)
Ap�s a morte da sogra, Luciene passou a cuidar dos cunhados que t�m defici�ncia intelectual, com a ajuda do marido (camiseta listrada) (foto: Arquivo pessoal)

Imediatamente, Luciene se mudou para a casa da sogra para cuidar dos cunhados, no Itaim Paulista, no extremo leste de S�o Paulo. O marido dela parou de trabalhar para ajudar nos cuidados, pois um dos irm�os dele sofre ataques epil�pticos e precisa ser socorrido constantemente.

A renda da fam�lia chegou a praticamente zero e junto vieram o desespero e a fome.

"Tem horas que eu penso o que eu vou fazer da minha vida. Eles comem muito e eu n�o tenho dinheiro nenhum. A geladeira s� vive vazia. Eu estou num processo para que eles recebam pens�o, mas hoje minha �nica renda � um Bolsa Fam�lia de R$ 89", contou, chorando, em entrevista � BBC News Brasil.

No momento de maior desespero nas �ltimas semanas, Luciene foi acolhida por uma igreja pr�xima da casa dela.

"Eu n�o tinha o que comer. Faltou tudo mesmo. Fui na casa de uma irm� minha da igreja e contei tudo. Ela falou para eu n�o me preocupar e ir para casa. Logo em seguida o pastor Radson Cavalcante trouxe duas cestas b�sicas para mim. S� de contar eu choro. S� vindo aqui para saber minha situa��o de desespero", disse Luciene por telefone.

O pastor Radson Cavalcante disse que as pessoas que quiserem fazer doa��es podem entrar em contato com ele pelo telefone (11) 95118-7773.

De R$ 58 milh�es para R$ 800 mil

A diretora-presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), Paula Fabiani, explica que houve cen�rios diferentes de doa��o em cada momento da pandemia.

"Primeiro, tivemos uma perspectiva que n�o duraria muito tempo. Se envolver em campanhas de doa��o foi algo que deu esperan�a � sociedade. Agora, temos um retrato diferente porque n�o sabemos quando vai acabar e isso gera cautela por parte das empresas. Elas, que foram o grande motor das doa��es, est�o focadas hoje em proteger a sua pr�pria sa�de financeira e seus funcion�rios", afirmou Paula.

Como exemplo, ela cita o movimento Unidos pela Vacina, que junta v�rias empresas para buscar uma maneira de vacinar seus pr�prios funcion�rios. Elas est�o se engajando para doar m�o de obra, n�o recursos, pois n�o conseguem comprometer parte do or�amento com doa��es enquanto n�o souberem quanto vai sobrar de dinheiro e at� quando a pandemia vai durar.


Volume de doações para projetos sociais despencou no Brasil(foto: ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL)
Volume de doa��es para projetos sociais despencou no Brasil (foto: ROVENA ROSA/AG�NCIA BRASIL)

Paula conta que o auge das doa��es ocorreu nos meses de abril, maio e junho de 2020. Segundo o monitor das doa��es de covid-19, balan�o feito pela Associa��o Brasileira de Captadores de Recursos, no per�odo as empresas chegaram a doar em m�dia R$ 58 milh�es por dia.

Esse valor caiu para R$ 6 milh�es de julho a setembro e para R$ 2 milh�es de outubro a dezembro. A m�dia de janeiro a mar�o de 2021 � de cerca de R$ 800 mil.

Segundo Paula, as pessoas tamb�m est�o num processo de cansa�o, depois de um ano com restri��es de circula��o e numa situa��o constante de doa��es. Ainda assim, ela diz que as empresas precisam se esfor�ar para incluir nas suas pr�ticas a��es filantr�picas.

Uma pesquisa do Idis apontou que 86% dos brasileiros dizem que as empresas devem apoiar as comunidades e 71% afirmam ser mais propensos a comprar um produto de uma empresa que se engaje em causas sociais.

"L� atr�s, o governo demorou para agir e quem agiu foram as ONGs. A gente fez um fundo de arrecada��o e mandou para empresas. Criamos um mecanismo para ajud�-las a apoiarem essas ONGs. Mas hoje as empresas est�o tentando organizar suas pr�prias a��es, na tentativa de ajudar o governo", afirmou a diretora-presidente do Idis.

"Vivo sem saber meu destino"

Luciene Silva, que cuida dos cunhados com defici�ncia, vendia cachorro quente antes do in�cio da pandemia. Ela e o marido tinham uma independ�ncia financeira. Hoje, o casal est� com duas contas de �gua vencidas e depende da ajuda principalmente de vizinhos para sobreviver.


Luciene vendia cachorro quente antes da pandemia, mas hoje o carrinho dela está parado(foto: Arquivo pessoal)
Luciene vendia cachorro quente antes da pandemia, mas hoje o carrinho dela est� parado (foto: Arquivo pessoal)

"Eu passo o dia cuidando dos meus cunhados. Um deles faz xixi na cama e at� colocamos um pl�stico no colch�o porque no posto de sa�de n�o tem fralda. Eu estou tomando antidepressivos. Calmante forte mesmo porque eu n�o durmo � noite pensando o que ser� o pr�ximo dia. Hoje eu n�o tenho um real no bolso", contou � reportagem.

Luciene tamb�m conta com a ajuda dos filhos, mas um deles ficou desempregado recentemente por conta da crise na pandemia.

"� muito dif�cil acordar e n�o ter mistura na geladeira. Hoje mesmo eu achei um pacote de flocos de milho no arm�rio e fiz um cuscuz para a gente. Quando vou � feira, ganho uns tomates e cebola. Outro traz um pacote de arroz. E assim eu vivo sem saber meu destino".


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