
Reportagem atualizada no dia 16 de setembro de 2021.
Foi em um campo de 10 km² em uma regi�o quase inabitada na Zona Sul de S�o Paulo que Lourival Clemente da Silva enxergou uma oportunidade de construir uma nova vida.
Ele havia rec�m chegado de Alagoas, em 1964, e n�o tinha onde morar. Lourival decidiu construir naquele loteamento de alto padr�o abandonado, onde at� ent�o s� havia mato, planta��es, p�ntanos e colinas, uma das primeiras casas de madeira, para viver com a mulher e os filhos.
Algum tempo depois, ele fez outra casa para a sogra. E mais outra para os pais. E mais algumas para alugar e revender. Ali, Lourival virou o Louro, e aquele campo onde ele fixou resid�ncia, Parais�polis, que hoje � a segunda maior favela da cidade e acaba de completar 100 anos de exist�ncia, em 16 de setembro.
Vivem ali atualmente cerca de 100 mil pessoas — e Parais�polis continua a crescer, mesmo com graves problemas de saneamento, mobilidade e seguran�a. Muitos dos seus moradores s�o da terceira, quarta ou at� da quinta gera��o das fam�lias dos primeiros moradores.O filho de Louro, Gilson, de 49 anos, j� nasceu em Parais�polis e viu ela se transformar. Ele diz estar acostumado com os congestionamentos nas vias estreitas, onde carros disputam o espa�o com motos, ciclistas e pedestres que n�o cabem nas cal�adas apertadas. Mas lembra que tudo era bem diferente quando era crian�a.
"Parais�polis era uma enorme fazenda. As ruas eram todas de terra. Tinha s� seis carros. Para ir at� a casa da minha v�, a duas quadras de dist�ncia, atravessava um bananal e um cafezal. Havia um grande p�ntano onde hoje � um supermercado. E o cemit�rio do Morumbi ficava num matagal", diz Gilson.
Do outro lado do rio

Parais�polis fica em uma regi�o que ainda era uma zona rural de S�o Paulo no in�cio do s�culo passado. "Era uma viagem chegar no Morumbi. Ficava longe, no meio do mato, em uma zona de fronteira de S�o Paulo, do outro lado do rio Pinheiros, quando ainda n�o tinham sido constru�das as pontes que hoje ligam uma margem � outra", diz o arquiteto urbanista Valter Caldana, professor da da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
O terreno da Fazenda do Morumbi foi ent�o dividido em 1921 em 2,2 mil lotes pela Uni�o M�tua Companhia Construtora e Cr�dito Popular S.A. Joildo Santos, diretor da Ag�ncia Parais�polis, que mant�m um dos principais acervos da mem�ria da comunidade, conta que propagandas de jornal da �poca anunciavam as vendas do "Loteamento Paraiz�polis".
O nome do local ainda era escrito com um "z" no lugar do "s", e as fotos dos an�ncios mostravam casas de alto padr�o de estilo europeu com quintal na frente. Santos afirma que os lotes at� foram vendidos, mas os donos nunca os ocuparam, e a regi�o permaneceu deserta, salvo por algumas outras fazendas.
Um dos motivos foi a caracter�stica geogr�fica da regi�o, explica Ang�lica Benatti Alvim, diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Mackenzie. "O loteamento apresentou problemas j� de cara, porque � uma regi�o muito �ngreme, cortada por alguns c�rregos importantes, o que fez com que algumas �reas fossem imposs�veis de ocupar e urbanizar."
Em terrenos com grandes declives, � mais complexo implantar um sistema vi�rio ou redes de �gua e esgoto. Somou-se � falta de infraestrutura o fato de a constru��o de uma casa em locais assim ser mais cara. A �rea s� come�aria a ser ocupada a partir dos anos 1950, de maneira informal. S�o Paulo se industrializava e recebia muitos imigrantes pobres do interior do Estado, de Minas Gerais e do Nordeste.
Santos diz que a maior parte desses imigrantes se mudou para ali em busca de empregos na constru��o civil e em grandes projetos como os do hospital Albert Einstein e do est�dio do Morumbi. "As pessoas vinham trabalhar e traziam parentes. A regi�o come�ou a ser povoada, e esse processo ganhou for�a nas duas d�cadas seguintes, quando come�ou a ter a cara que tem hoje", diz.

A constru��o de pr�dios no Morumbi criou mais postos de trabalho e tornou a �rea ainda mais atraente. A presen�a de muitas fam�lias de classe m�dia e m�dia alta fez surgir uma s�rie de empregos dom�sticos e de presta��o de servi�os.
"� um momento de crescimento muito intenso de S�o Paulo, quando a cidade come�a a ganhar ares de metr�pole, explica diz Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de S�o Paulo (USP). "Mas com um modelo de desenvolvimento que n�o deu oportunidade para os rec�m-chegados se instalarem formalmente na cidade", explica.
"Parais�polis come�a como uma ocupa��o, mas depois surge um mercado paralelo de compra e venda de terrenos em Parais�polis e outras regi�es para atender essa demanda oferecendo um produto de quinta, irregular, para quem tinha pouca ou nenhuma renda."
Clima buc�lico

Com o tempo, Paraiz�polis virou Parais�polis — e tamb�m mudou a vista da janela da casa de Louro, conforme mais pessoas chegaram para morar na comunidade nos �ltimos 60 anos. "Antes, dava para ver o matagal em volta. A gente at� conseguia ver os meninos jogando bola no campo. Mas foram erguendo as casas, e hoje minha m�e n�o v� mais nada", afirma Gilson.
Gilberto, um dos quatro filhos de Louro, conta que seu pai viajou para S�o Paulo num pau de arara com a mulher gr�vida para trabalhar como pedreiro, mas s� ficou neste trabalho por seis meses, porque n�o tinha pr�tica.
"Quando ele foi demitido, comprou uma carro�a e passou a vender porco salgado nas ruas. No ano seguinte, ele comprou uma venda de um senhor portugu�s que foi morto por um cliente e a chamou de Mercado do Louro", diz Gilberto, que hoje cuida com a fam�lia do neg�cio criado por seu pai, que faleceu h� sete anos, ap�s um infarto.

Os filhos de Louro lembram que quase ningu�m queria morar em Parais�polis por conta da dificuldade de acesso e a estrutura prec�ria. Os grandes morros eram uma barreira at� para os caminh�es que faziam entregas na regi�o.
Em dias de chuva, era necess�rio amarrar correntes nas rodas dos carros ou esvaziar os pneus para conseguir andar na lama que se formava, enquanto as crian�as e trabalhadores envolviam os p�s em sacolas de pl�stico para n�o sujar os sapatos.
Gilson conta que, em sua inf�ncia, o clima era buc�lico. "T�nhamos c�rregos limpos e, em um deles, havia uma cria��o de carpas. A gente fazia pequenos barcos para passear e, na �poca da chuva, via um belo arco-�ris no rio Pinheiros, por cima das copas das �rvores. Foi um tempo que poucos viram", relembra ele, com saudade.

Naquela �poca, Louro come�ou a construir um barraco de madeira para a sogra morar. Mas, antes de o aviso chegar a Alagoas, ele vendeu o im�vel para outra fam�lia. Percebeu ent�o que poderia ganhar dinheiro vendendo e alugando barracos.
Gilberto diz que seu pai tamb�m notou que a maior parte das fam�lias era muito pobre e doou mais de 40 barracos na comunidade. Hoje, h� um projeto na C�mara Municipal de S�o Paulo para batizar um parque em homenagem a Lourival Clemente da Silva.
Urbaniza��o
Joildo Santos diz que, a partir do final da d�cada de 1970, come�ou a haver uma press�o, por meio de uma s�rie de processos na Justi�a, para que as fam�lias fossem expulsas da �rea. Ele estima que 40 mil pessoas j� morassem em Parais�polis na �poca.
Alvim afirma que foi elaborado na �poca um plano de ocupa��o da regi�o com resid�ncias unifamiliares, como j� havia ocorrido no Morumbi, e que previa a desapropria��o de quem j� vivia ali.
"A Prefeitura tinha cinco anos para executar, mas nunca fez. Nada nunca foi pra frente ali em Parais�polis. Ao ignorar o problema em vez de lidar com ele, o efeito foi o contr�rio, e a ocupa��o se intensificou", diz a arquiteta.
A comunidade cresceu de forma desordenada. As casas eram constru�das sem acabamento e ampliadas aos poucos, com o tempo.

O diretor da Ag�ncia Parais�polis diz que o in�cio da urbaniza��o da favela, com a constru��o de postos de sa�de e escolas, dificultou a remo��o das fam�lias do local. Parais�polis nunca chegaria a ter grandes �reas desapropriadas, como ocorreu com outras favelas da regi�o central de S�o Paulo, com exce��o de alguns trechos que deram lugar a avenidas.
A partir dos anos 1980, houve uma mudan�a na postura do poder p�blico em rela��o �s favelas, que, em vez de serem eliminadas, passaram a ser urbanizadas. "Come�aram a levar uma infraestrutura parcial de �gua, esgoto e energia, mas acho que n�o atendia a 20% da �rea. A popula��o ali, com o mercado imobili�rio pujante no entorno, foi crescendo e se adensando cada vez mais", afirma Alvim.
Parais�polis posteriormente tamb�m foi asfaltada e ganhou ilumina��o p�blica. A partir do fim dos anos 1990, come�ou a trocar os barracos de madeira por casas de concreto. Mas, at� hoje, n�o h� ali nenhum parque, sala de cinema ou biblioteca p�blicos.
Explos�o habitacional e viol�ncia
O n�mero de moradores cresceu mais intensamente nos anos 1990, quando outras favelas da cidade foram eliminadas e quem vivia nelas foi viver em Parais�polis.
Mas, rodeada por pr�dios, casas e condom�nios de alto padr�o, a favela n�o podia mais se expandir para os lados. Para acomodar quem chegava e as fam�lias que se multiplicavam, a sa�da foi crescer para cima.
"As pessoas passaram a criar um segundo, terceiro ou quarto andar, n�o s� para ser uma op��o de moradia para parentes e filhos que constituem um novo n�cleo familiar, mas tamb�m para alugar, como uma fonte de renda. � um fen�meno generalizado no Brasil", diz Rolnik.
Em meio a este processo, Parais�polis tornou-se um exemplo incomum entre as favelas de S�o Paulo.

"Os bairros pobres e favelas costumam se formar nas zonas perif�ricas, onde a terra � mais barata e h� mais espa�os dispon�veis. Isso faz com que haja grandes dist�ncias entre ricos e pobres. Mas Parais�polis � muito vis�vel aos olhos da riqueza", diz Caldana.
Parais�polis tamb�m � excepcional por seu tamanho. "A cidade tem cerca de 1,6 mil favelas. S�o muitas, mas pequenas", diz Rolnik.
Outra exce��o, tanto pela proximidade com �reas consideradas nobres quanto por seu n�mero de habitantes, � a comunidade de Heli�polis, tamb�m na zona sul de S�o Paulo.
Heli�polis tinha, de acordo com o censo de 2010, menos moradores do que Parais�polis, mas os dados hoje est�o defasados, e a Prefeitura de S�o Paulo a considera a maior favela da cidade, pela �rea que ocupa. Parais�polis � a segunda, conforme este crit�rio.
"Hoje, Parais�polis n�o cresce mais atraindo imigrantes, mas com as pr�prias fam�lias que j� est�o na favela", afirma Alvim. A arquiteta aponta que o principal problema de Parais�polis � a falta de continuidade das pol�ticas p�blicas voltadas para a regi�o.
"� claro que existem ali alguns problemas graves, como trechos dominados pelo tr�fico, principalmente as �reas de maior insalubridade e de dif�cil acesso. Mas n�o bastam quatro anos de governo para resolver isso. � preciso um plano cont�nuo", diz Alvim
Boa parte do que seus moradores conseguem, como parquinhos infantis, biblioteca e eventos culturais, � gra�as � atua��o de ONGs, empresas privadas ou pela uni�o da pr�pria comunidade.

Caldana diz que a regi�o vem se transformando nos �ltimos anos gra�as � sua capacidade de organiza��o. "� uma comunidade muito bem estruturada, com associa��es de moradores e trabalhos de institui��es nascidas l� ou que vieram de fora. Parais�polis � hoje um bairro. Precisamos romper com essa vis�o preconceituosa e segregadora com rela��o �s favelas", afirma.
'Amo esse lugar'
Hoje, Parais�polis ainda � alvo de dezenas de processos judiciais, entre a��es de reintegra��o de posse e usucapi�o. Mas j� tem uma parte significativa regularizada, como as �reas em que foram constru�dos um banco, uma loja de uma das maiores empresas brasileiras de varejo e at� mesmo moradores que compraram seus terrenos diretamente do dono anterior.
Gilberto, filho de Louro, reconhece que a regi�o se tornou mais insegura ao longo das d�cadas. "Mas o poder p�blico precisa trabalhar na preven��o, com a��es de intelig�ncia, n�o da forma como fizeram no Baile da 17. N�o se trata ningu�m daquele jeito", afirma ele.

"Baile � que nem feira livre: todo mundo ama, mas ningu�m quer na porta da sua casa todo dia. O ideal seria ter um hor�rio e espa�o adequado para n�o atrapalhar o trabalhador, mas � preciso solucionar o problema sem banaliz�-lo como algo que s� atrapalha", disse.
Ele diz que, em compara��o com o passado, Parais�polis melhorou muito e est� "uma maravilha, excelente". Mas deixa a desejar "quando voc� olha para as outras regi�es" da cidade. "Nossa maior dificuldade talvez seja na �rea de sa�de. J� lutamos muito, mas n�o temos um hospital. Entra e sai governo e ficamos s� na promessa", afirma.
Ao ser questionado sobre o futuro do bairro, ele diz emocionado que � ali onde ele mais se sente bem.
"Estou aqui porque amo esse lugar. Vejo a dificuldade das pessoas, mas, para mim, � o melhor lugar do mundo. Eu me sinto mais seguro aqui dentro do que no Morumbi. Estou ensinando meus filhos a ter respeito e a valorizar essa comunidade. E eles v�o passar isso para os filhos deles."
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