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Estado de Minas M�DIUM

Z�lio, o Caboclo das Sete Encruzilhadas: o fundador da umbanda que n�o � bem aceito por umbandistas atuais

Papel do m�dium fluminense Z�lio Fernandino de Moraes (1891-1975) na origem da religi�o � questionado e, por alguns, associado a um processo de 'embranquecimento'.


31/12/2021 08:49 - atualizado 01/01/2022 11:27


Retrato em preto e branco
Z�lio, em foto publicada pelo jornal A Gazeta de S�o Gon�alo, extinto em 1937 (foto: Dom�nio P�blico)

Se a tentativa era criar uma esp�cie de mito da religi�o nacional por excel�ncia, elementos simb�licos n�o faltam na hist�ria de como o m�dium fluminense Z�lio Fernandino de Moraes (1891-1975) teria criado a umbanda.

A come�ar pela data: 15 de novembro de 1908. Sim, um 15 de novembro, anivers�rio da Proclama��o da Rep�blica, data portanto da cria��o do Brasil contempor�neo.

E tamb�m pela hist�ria: no transe vivido por Z�lio, ele teria dialogado com esp�ritos de negros e ind�genas e, por fim, incorporado um padre jesu�ta italiano que havia pregado no Brasil colonial — e acusado de bruxaria.

Mais simb�lico do sincretismo cultural, �tnico e religioso do Brasil, imposs�vel.

Por outro lado, e � esse o ponto que vem sendo revisto e muito criticado por pesquisadores contempor�neos da umbanda, considerar Z�lio o precursor dessa religi�o � tamb�m resultado de um processo de embranquecimento — � negar que a umbanda j� vinha sendo praticada por negros oriundos da �frica e seus descendentes em solo brasileiro, � entregar a primazia da religi�o afrobrasileira a um homem branco.

"N�o � um assunto novo: a hist�ria de Z�lio como fundador da umbanda vem sendo questionada. Eu n�o o considero fundador da umbanda porque a umbanda � muito anterior a isso", crava o soci�logo Lucas de Lucena Fiorotti, autor da p�gina Abrindo a Gira, no Instagram.

"Ele se tornou uma figura importante em fun��o do embranquecimento [da umbanda]. Ele � importante para um tipo de umbanda, que no passado queriam chamar de 'espiritismo de umbanda'. Quem o celebra como fundador da umbanda n�o tem culpa. A culpa � do projeto de pa�s", acrescenta Fiorotti.

Para o historiador Guilherme Watanabe, pai de santo do terreiro Urubat�o da Guia, em S�o Paulo e membro fundador do Coletivo Navalha, Z�lio � "a representa��o de uma grande constru��o hist�rica", do "mito de funda��o que, a partir dos anos 1960, come�a a se fazer no Rio". "Uma grande mentira", sentencia.

O que teria acontecido em 1908

Filho de uma fam�lia tradicional de S�o Gon�alo, na regi�o metropolitana do Rio, Z�lio estava se preparando para seguir carreira militar na Marinha quando foi acometido por uma paralisia. Ele tinha 17 anos. Acamado por alguns dias, teria declarado que "amanh� estarei curado" e, de fato, no dia seguinte levantou-se como se nada houvesse acontecido.

Diante da surpresa dos m�dicos, os familiares decidiram recorrer a padres cat�licos — que tamb�m n�o souberam explicar o que havia sucedido ao jovem.

Para a fam�lia, Z�lio sofria de dist�rbios espirituais. Ent�o, por indica��o de um amigo, levaram-no at� a Federa��o Esp�rita do Estado do Rio de Janeiro, ent�o sediada em Niter�i.

O m�dium presidente da entidade teria organizado uma sess�o esp�rita, com Z�lio � mesa. Na ocasi�o, conforme relatos da �poca, houve a manifesta��o de esp�ritos de ancestrais africanos, os chamados "pretos-velhos", e ind�genas, os "caboclos".

O dirigente da sess�o, ent�o, teria classificado tais esp�ritos como atrasados e solicitado que eles se retirassem. Foi quando Z�lio acabaria incorporando uma entidade, o chamado "Caboclo das Sete Encruzilhadas", em defesa dos pretos-velhos e dos caboclos. E disse que se ali n�o houvesse espa�o para que negros e ind�genas "cumprissem sua miss�o", ele, o tal caboclo, fundaria no dia seguinte um novo culto — na casa de Z�lio.

Seria ent�o 15 de novembro de 1908. E, para muitos, se trata do marco fundador da umbanda, como uma nova religi�o do Brasil.

A partir do epis�dio, Z�lio e o Caboclo das Sete Encruzilhadas seriam identidades indissoci�veis. De acordo com o m�dium, a entidade seria a manifesta��o do padre jesu�ta italiano Gabriel Malagrida (1689-1761), um mission�rio que chegou a andar pelo Brasil catequizando ind�genas e, mais tarde, acusado de bruxaria e heresia, foi morto pela fogueira da Inquisi��o em Lisboa.

"Ele � caboclo mas, dentro do mito, tamb�m � um padre jesu�ta. O que cria uma disforia total, uma loucura promovida pelo processo de embranquecimento [da umbanda]", diz Fiorotti.


Ilustração mostra padre
Ilustra��o antiga e recortada do padre Gabriel Malagrida, morto pela Inquisi��o em Lisboa (foto: Dom�nio P�blico)

Segundo a narrativa de Z�lio, na "�ltima exist�ncia f�sica", Deus teria concedido a Malagrida "o privil�gio de nascer como caboclo brasileiro".

Com esse caldo cultural multi�tnico, estava criado o mito da funda��o da umbanda.

'Embranquecimento'

Conforme explica o sacerdote de umbanda David Dias, pesquisador em ci�ncia da religi�o na Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP), a hist�ria de Z�lio pode ser vista sob duas �ticas.

"A primeira traz sua vida contada por meio dos manuais de umbanda e mantida pela sua fam�lia, a qual assegura sua mem�ria at� os dias de hoje. J� a segunda � contada por meio de um mito de cria��o onde cada um que conta aumenta uma ponta, deixando na hist�ria contada uma lenda de exist�ncia question�vel", pondera ele.

Dias lembra que um dos relatos atesta que, entre a consulta m�dica, o conselho dos padres e a famosa sess�o esp�rita, Z�lio teria sido levado a uma benzedeira do Rio. E fora ela, incorporando um preto-velho, que dera a senten�a: �quele jovem seria reservada uma grande miss�o pela frente.

O pesquisador ressalta que h� ainda um fato importante que s� refor�a a ideia de que muitos detalhes n�o tenham passado de fic��o para azeitar uma mitologia da funda��o.

"Na ata de 15 de novembro de 1908 da citada federa��o [esp�rita] n�o h� registros destes fatos, o nome do dirigente da suposta sess�o n�o confere com a hist�ria, nem mesmo o nome de Z�lio se faz presente", afirma Dias.

Por fim, ele lembra ainda que a figura do Caboclo das Sete Encruzilhadas tamb�m apresenta "incongru�ncias".

Segundo especialistas, a hist�ria de Z�lio como fundador da umbanda foi uma constru��o que passou a tomar forma nos anos 1960, quando o m�dium j� era idoso.

Em 1961, a jornalista e umbandista Lilia Ribeiro publicou pela primeira vez essa vers�o no jornal informativo Macaia, ligado � Tenda de Umbanda Luz, Esperan�a e Caridade, da qual ela era dirigente.

Ap�s a morte de Z�lio, essa narrativa se consolidou. Em dezembro de 1978, por exemplo, a Revista Planeta, publica��o da Editora Tr�s que hoje n�o circula mais, trouxe uma grande reportagem intitulada Como surgiu a umbanda em nosso pa�s: 70o. anivers�rio de uma religi�o brasileira, na qual todos os elementos dessa mitologia fundadora estavam presentes.

Fiorotti acredita que ent�o Z�lio se torna "uma figura importante para a umbanda hegem�nica".

Mas que tudo seria um esfor�o sist�mico para apagar as ra�zes realmente africanas — e anteriores ao s�culo 20.

"H� ind�cios de que j� havia pr�ticas de umbanda muito semelhantes tanto em ritual�stica quanto em est�tica ao que acontece hoje muito antes de 1908", diz ele.

"Essa umbanda que tem Z�lio como fundador � uma umbanda muito associada ao espiritismo em si. Mas h� diversos autores que se sentem contemplados por essa narrativa e eles s�o pessoas fortemente associadas ao espiritismo e a algumas ideias esot�ricas, m�sticas. Fogem da viv�ncia do terreiro de fato. A estrutura umbandista j� existia no s�culo 19."

Watanabe lembra que a pr�pria palavra umbanda vem das l�nguas quimbundo e umbundu da �frica Central e "significa algo como arte ou maneira de curar".

"� uma palavra que existe h� muito tempo e, como sendo arte ou maneira de curar, se trata de uma pr�tica medicinal e espiritual feita por um m�dico feiticeiro", contextualiza.

"Algo que j� era praticado por centro-africanos desde muito tempo atr�s e, a partir da di�spora, do tr�fico de escravizados, acaba sendo trazido ao Brasil. Por isso, no Rio de Janeiro do s�culo 19 j� havia diversas casas de feiticeiros africanos."

Para Fiorotti, a mitologia de Z�lio �, na verdade, a tentativa do "embranquecimento da umbanda, dentro da ideia da democracia racial, de que n�o h� racismo no Brasil, de que as rela��es raciais s�o sim�tricas".

"Essa umbanda do Z�lio est� na esteira desse pa�s que come�a a se pensar como mesti�o para disfar�ar os problemas das rela��es sociais", aponta.

Assim, Z�lio teria sido "usado" como "uma hist�ria privilegiada para encarnar a umbanda da democracia racial", enfatiza o pesquisador.

E a consolida��o desse estilo deixou como legado uma s�rie de "descaracteriza��o das divindades, dos orix�s, dos esp�ritos".

"Por exemplo, ao dizer que um caboclo, que � ind�gena, pode ser um branco. Ou dizendo que um preto-velho pode ser uma pessoa branca. S�o absurdos. Mas a partir dessa umbanda [de Z�lio], isso passou a ser poss�vel", exemplifica.

"Z�lio � a hist�ria de um homem branco classe m�dia que se apropria da cultura dos centro-africanos e seus descendentes", resume o historiador Watanabe. "Al�m disso, apaga e invisibiliza a cultura dos centro-africanos ao se dizer fundador de algo que, na verdade, j� existia."

E de onde v�m as sete encruzilhadas? A resposta est� na pr�pria ideia umbandista do que � uma encruzilhada.

"� um conceito: estar na encruzilhada, ao contr�rio do que as pessoas costumam pensar, � desej�vel. Porque tudo � feito de caminhos. Um caminho reto, sem possibilidades, n�o � desej�vel. O desej�vel � estarmos na encruzilhada, onde n�o h� caminho fechado", explica o soci�logo Fiorotti.

"Sete encruzilhadas, assim, � o infinito de possibilidades", conclui ele.

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