
Ao argumentar que foi um "erro" a criminaliza��o do nazismo pela Alemanha ap�s a Segunda Guerra Mundial, o deputado federal Kim Kataguiri (Podemos - SP) tocou em um dos maiores desafios para as democracias liberais contempor�neas: qual a linha que separa a liberdade de express�o e a apologia ao crime? Quando a garantia � liberdade de express�o de um grupo representa dar-lhes os instrumentos democr�ticos para destruir a pr�pria democracia? Por que, afinal, a Alemanha, um dos pa�ses mais democr�ticos do mundo, criminaliza at� hoje o discurso nazista?
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"O que eu defendo, e acredito que o Monark tamb�m defenda, � que por mais absurdo, idiota, antidemocr�tico, bizarro, tosco o que o sujeito defenda, isso n�o deve ser crime porque a melhor maneira de voc� reprimir uma ideia antidemocr�tica, tosca, bizarra, discriminat�ria � voc� dando luz �quela ideia, pra que aquela ideia seja recha�ada socialmente", disse Kataguiri no podcast.
No mesmo programa, Monark afirmou que "deveria existir um partido nazista legalizado no Brasil" e que "se o cara for anti-judeu ele tem direito de ser anti-judeu".
O 'falso' paradoxo da liberdade
Nesta ter�a (8/1), o apresentador disse que estava "muito b�bado" durante o podcast e se desculpou pelas palavras. Afirmou que foi "insens�vel" e que pareceu defender "coisas abomin�veis" quando na verdade queria argumentar a favor da liberdade de express�o. O podcast Flow anunciou que Monark havia sido retirado da apresenta��o da atra��o e deixado a sociedade que gerencia o produto.
Alguns anunciantes do programa, que tem quase 4 milh�es de inscritos no Youtube, divulgaram que romperiam seus contratos com o Flow. A Confedera��o Israelita do Brasil (Conib) condenou, em nota, "a defesa da exist�ncia de um partido nazista" e at� a Embaixada da Alemanha no Brasil soltou nota em que afirmou que "defender o nazismo n�o � liberdade de express�o".
Um dia ap�s o epis�dio, a Procuradoria Geral da Rep�blica abriu investiga��o contra Kataguiri e Monark por eventual crime de apologia ao nazismo. No Brasil, divulgar o nazismo pode resultar em pena de 2 a 5 anos de cadeia e pagamento de multa.
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O deputado federal foi �s redes sociais argumentar que sua defesa era da liberdade de express�o e n�o do nazismo. Em nota, afirmou que vai "colaborar com as investiga��es pois meu discurso foi absolutamente anti-nazista, n�o h� nada de criminoso em defender que o nazismo seja repudiado com veem�ncia no campo ideol�gico para que as atrocidades que conhecemos nunca sejam cometidas novamente".
Especialistas em democracia e fascismo ouvidos pela BBC News Brasil, no entanto, veem no argumento pr�-liberdade de express�o absoluta de Kataguiri e Monark um falso - e perigoso - paradoxo.
"Uma ideia que tem circulado cada vez mais � a de que numa democracia as pessoas devem ter o direito a expressar e fazer coisas que destruam a pr�pria democracia", afirma o historiador Federico Finchelstein, especialista em fascismo da New School, em Nova York.
Finchelstein apela para uma met�fora futebol�stica para explicar por que a l�gica de Kataguiri e Monark � incorreta.
"Imagine que a democracia � um jogo de futebol, com todas as regras do jogo, como s� jogar com os p�s. Todos podem jogar, desde que sigam as regras. Ao defender que alguns t�m o direito de expressar e aplicar ideias que destroem a democracia, essas pessoas est�o dizendo que parte dos jogadores vai jogar futebol com a m�o, o que destr�i o jogo. � algo perigoso e t�pico do fascismo, uma manipula��o para causar confus�o com a no��o de liberdade, como se a liberdade na democracia inclu�sse ser livre para contaminar os outros, para eliminar grupos sociais, para cassar vozes alheias", diz Finchelstein.

O suposto paradoxo da democracia - de garantir liberdades que podem destruir a pr�pria democracia - n�o � uma ideia nova na filosofia e na pol�tica. Em 1945, o fil�sofo liberal Karl Popper publicava o seu "A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos", escrito ainda durante a Segunda Guerra Mundial. Na obra, ele afirma que "a toler�ncia ilimitada leva ao desaparecimento da toler�ncia. Se estendermos a toler�ncia ilimitada mesmo aos intolerantes, e se n�o estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intoler�ncia, ent�o, os tolerantes ser�o destru�dos e a toler�ncia com eles".
'Democracia militante': a experi�ncia alem�
Para Johannes von Moltke, especialista em movimentos de direita e sua atua��o nas m�dias, da Universidade de Michigan, foi essa li��o que a Alemanha falhou em entender h� quase 90 anos e que a levou a ter um governo nazista no comando.
"A Alemanha do p�s segunda guerra n�o proibiu o nazismo apenas pela experi�ncia do Holocausto. Os alem�es estavam muito preocupados em n�o repetir os erros da era pr�-nazista, da chamada Rep�blica de Weimar (1919-1933), que permitiu que partidos como o nacional-socialista de Hitler se estabelecessem. O que o deputado brasileiro est� defendendo � basicamente a rota de uma democracia n�o liberal para o fascismo, justamente o caminho que a Alemanha tomou no final dos anos 1920, que levou � elei��o do Partido Nazista, respons�vel por cassar todas as salvaguardas democr�ticas na sequ�ncia", explica von Moltke.
Ao tomar o controle da ent�o fr�gil e jovem democracia alem�, Adolf Hitler n�o s� destruiu as institui��es democr�ticas como passou a usar a m�quina do Estado alem�o para perseguir e exterminar minorias: judeus, negros, homossexuais. As a��es de Hitler desaguaram na Segunda Guerra Mundial, da qual ele saiu derrotado e, o pa�s, dividido.
Em 1949, o governo da ent�o Alemanha Ocidental baniu legalmente o uso de s�mbolos, linguagem e propagandas nazistas. Estudioso do desenvolvimento de leis contra o discurso e os crimes de �dio no mundo, o professor da Faculdade Middlebury College, Erik Bleich lembra que at� mesmo a famosa sauda��o "Heil Hitler!" foi oficialmente proibida pelos alem�es.

No entanto, ainda levaria quase duas d�cadas para que os alem�es passassem a olhar de modo cr�tico para a pr�pria hist�ria, resgatassem a mem�ria das atrocidades do per�odo nazista e discutissem nas escolas os crimes cometidos pelos av�s dos estudantes. Ainda nos anos 1960, passou a ser crime "incitar �dio e viol�ncia contra parcelas da popula��o", lei que foi atualizada para criminalizar tamb�m o racismo e expressamente banir racismo e fascismo.
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O escopo legal alem�o � o melhor exemplo do que ficou conhecido como 'democracia militante' ou 'democracia defensiva'.
"� um requisito de uma democracia em funcionamento que as pessoas tolerem ideias com as quais discordam. No entanto, alguns discursos, alguns grupos, alguns partidos podem ser t�o prejudiciais que os pol�ticos e o p�blico concluem que os riscos que eles representam superam os benef�cios de proteg�-los. Os alem�es viram em primeira m�o onde o nazismo pode levar e por isso mesmo a Alemanha est� entre os defensores mais ativos do que � chamado de 'democracia militante' - em outras palavras, a no��o de que a democracia deve ser defendida, mesmo ao custo de restringir algumas liberdades quando essas liberdades est�o sendo exploradas para minar a democracia", afirmou Bleich � BBC News Brasil.
Segundo Bleich, a Alemanha � a democracia mais restritiva enquanto os Estados Unidos, onde � relativamente comum ver manifesta��es da extrema direita com su�sticas e s�mbolos de supremacia branca, t�m menos regula��es.
"Ambos os pa�ses ainda permitem uma variedade muito grande de discursos e a��es, em diversos espectros ideol�gicos. A parte dif�cil dessa hist�ria para as democracias � descobrir como restringir, banir ou punir apenas os discursos, grupos e partidos realmente perigosos, deixando o escopo mais amplo poss�vel do que � permitido. Diferentes pa�ses desenvolveram solu��es diferentes para este enigma", diz Bleich.
No Brasil, durante o governo Bolsonaro, a quest�o entrou na ordem do dia. Por um lado, integrantes do governo foram acusados de promover propaganda fascista. Em janeiro de 2020, o ent�o secret�rio da Cultura, Roberto Alvim foi demitido depois de divulgar um v�deo que fazia refer�ncia � fala de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazista. Ele atribuiu o epis�dio a uma "coincid�ncia ret�rica". Em mar�o de 2021, o assessor para Assuntos Internacionais da Presid�ncia da Rep�blica Filipe Martins foi acusado de fazer gesto supremacista branco durante sess�o no Congresso. Martins negou inten��o racista em seu gesto e acabou absolvido na Justi�a.
De outro lado, integrantes do governo e o pr�prio presidente passaram a acusar a Justi�a de cercear a liberdade de express�o dos brasileiros. Seus apoiadores chegaram a amea�ar invadir o Supremo Tribunal Federal, que deu sucessivas decis�es contra o que considerou serem atos anti-democr�ticos de bolsonaristas. Entre as decis�es judiciais est�o a derrubada de p�ginas de internet e perfis de redes sociais que espalhavam desinforma��o favor�vel ao atual governo.
Segundo Finchelstein, existe uma ressurg�ncia do fascismo em diversos pa�ses e o Brasil n�o escapa desse movimento global, que seria uma busca por respostas para os problemas da vida cotidiana, como a pandemia e suas restri��es, as crises econ�micas, a intensidade das migra��es com a globaliza��o. "H� uma esp�cie de crise da democracia. As pessoas est�o descontentes com o desenvolvimento pol�tico, econ�mico e social. Mas elas parecem esquecer que a solu��o que o fascismo prop�e � ainda pior do que uma democracia problem�tica, diz Finchelstein.
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