
Casos como o de Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, morto por asfixia em uma abordagem de agentes da Pol�cia Rodovi�ria Federal (PRF) na semana passada em Sergipe, apontam para problemas estruturais das for�as de seguran�a e da sociedade brasileira, como falta de treinamento, controle e toler�ncia, al�m de est�mulo a abusos e a viol�ncia policial como plataforma eleitoral.
Essa � a opini�o de Ariadne Natal, pesquisadora do Peace Research Institute Frankfurt, da Alemanha, em entrevista � BBC News Brasil.
Um dos problemas citados por ela � a falta de treinamento para lidar com conflitos envolvendo cidad�os comuns, desarmados e sem v�nculos com o crime.
"As pol�cias no Brasil n�o foram treinadas com a ideia de proteger o cidad�o, de trat�-lo com respeito, de saber conversar, de criar v�nculos com a comunidade. A sociedade n�o tem rela��o de proximidade com a pol�cia. A verdade � que a sociedade n�o confia em quem deveria proteg�-la", diz Ariadne, que estuda a atua��o e a viol�ncia das pol�cias no pa�s.
"Os policiais s�o treinados para ver o crime em qualquer lugar, para sempre tentar encontrar um criminoso a qualquer custo, para o confronto armado. O policial � a ponta de um sistema direcionado para executar pessoas", diz a pesquisadora, que j� atuou no N�cleo de Estudos da Viol�ncia (NEV), da USP, e hoje faz p�s-doutorado sobre viol�ncia policial pelo instituto alem�o.A letalidade das for�as de seguran�a no pa�s vem crescendo nos �ltimos anos. Em 2020, o pa�s atingiu o maior n�mero de mortes em decorr�ncia de interven��es policiais desde que o indicador passou a ser monitorado pelo F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica, em 2013.
Mortes crescem 190%
Em 2020, o Brasil registrou 6.416 v�timas fatais de interven��es de policiais civis e militares da ativa, em servi�o ou fora dele. Em m�dia, foram 17,6 mortes por dia. Desde 2013, primeiro ano da s�rie verificada, o crescimento � de cerca de 190%. Essa letalidade corresponde a 13% de todas as mortes violentas intencionais no pa�s - por outro lado, 193 policiais foram assassinados em 2020, alta de 13% em rela��o ao ano anterior.
Em alguns casos registrados por c�meras, as v�timas de interven��es policiais estavam desarmadas e j� sob cust�dia dos agentes. Genivaldo, por exemplo, foi mantido preso na parte de tr�s da viatura policial enquanto o ve�culo estava tomado por spray de pimenta e g�s lacrimog�neo. Ele morreu por asfixia.

"A falta de treinamento pode levar a excessos e imprud�ncia. O uso da for�a precisa ser proporcional ao risco enfrentado pelo policial. No caso Genivaldo, os agentes estavam em maior n�mero, tinham recursos e a v�tima estava controlada. N�o d� nem para chamar de procedimento. Claro, falta de treinamento n�o � a �nica explica��o para o problema: h� viol�ncias deliberadas, tamb�m", diz Ariadne.
Para a especialista, o Estado costuma utilizar o argumento da "ma�� podre" para explicar abusos - ou seja, o excesso � sempre descrito como um ato individual e equivocado de alguns agentes que n�o representam os valores da institui��o, e n�o como um problema estrutural das pol�cias que precisa ser solucionado.
"Esse policial est� sob estresse e press�o psicol�gica, muitas vezes com sal�rio baixo, trabalhando em um contexto de viol�ncia onde ele tamb�m � um alvo", afirma a pesquisadora.
Ela cita v�rias inst�ncias em que a viol�ncia estatal � tolerada e at� estimulada: 1) nas pr�prias pol�cias, por meio de comandantes que "d�o sinais de toler�ncia" com abusos; 2) pol�ticos e autoridades que usam a viol�ncia policial como plataforma eleitoral, argumentando que uma atua��o mais dura � a melhor solu��o contra a criminalidade; 3) parte da sociedade que n�o apenas n�o se mobiliza para cobrar melhorias, como apoia atos violentos; 4) falta de controle e fiscaliza��o por meio de corregedorias e ouvidorias, o que gera impunidade.
"Quem est� em posi��es de poder d� um direcionamento para a tropa, seja um comandante da PM ou o governador. Quando policiais envolvidos em epis�dios de viol�ncia n�o s�o afastados ou condenados, quando um pol�tico parabeniza um policial por um assassinato e deixa 'as r�deas soltas', isso representa um sinal para a tropa de que existe toler�ncia. Essas mudan�as de gest�o s�o rapidamente entendidas e a viol�ncia chega �s ruas", explica Ariadne.
"J� parte da sociedade brasileira tolera e apoia os abusos, porque entende que eles s�o necess�rios e fazem parte do cotidiano. Mas em um pa�s com recordes de viol�ncia policial, o legado � de melhoria na criminalidade? O Brasil est� menos violento? Tudo isso n�o garantiu uma sociedade menos violenta, pelo contr�rio, est� piorando", diz.
CENAS FORTES.
Estarrecedora a abordagem policial ocorrida ontem, em plena luz do dia, no munic�pio de Umba�ba, que culminou na morte por asfixia de um homem negro de 38 anos, quando o porta-malas de uma viatura da pol�cia rodovi�ria federal foi transformada em c�mara de g�s. pic.twitter.com/KNcq6fRPKf
Ambiguidade
O caso Genivaldo � um exemplo do comportamento "amb�guo" de autoridades em rela��o a abusos. Na quarta-feira (26), a PRF afirmou que a morte foi "uma fatalidade" e n�o tinha rela��o com a "abordagem legal".
"Em raz�o da sua agressividade, foram empregados t�cnicas de imobiliza��o e instrumentos de menor potencial ofensivo para sua conten��o. O abordado veio a passar mal, foi socorrido de imediato ao hospital, onde foi constatado �bito", afirmou a PRF em sua primeira nota sobre o caso.
Tr�s dias depois, no s�bado, a institui��o mudou de posicionamento, e afirmou em um v�deo que "n�o compactua" com a a��o dos agentes e que v� o epis�dio "com indigna��o."
J� o presidente Jair Bolsonaro (PL) disse que "lamenta o ocorrido" e espera que a Justi�a seja feita "sem exageros".
"N�o podemos generalizar tudo que acontece no nosso Brasil. A PRF faz um trabalho excepcional para todos n�s [...] Tenho certeza que ser� feita a Justi�a, todos n�s queremos isso a�. Sem exageros e sem press�o por parte da m�dia que sempre tem lado, o lado da bandidagem", disse ele, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo.
Em outro momento, o presidente citou um caso recente em que policiais rodovi�rios foram mortos - ele tamb�m se referiu a Genivaldo como um "marginal".
"Lamento o ocorrido h� duas semanas, quando dois policiais rodovi�rios federais queriam tirar um elemento da pista, ele conseguiu sacar a arma de um deles e executou os dois. A GloboNews chamou esse bandido de suspeito. E outro policial, de outra esfera, ao abater esse marginal, voc�s foram para uma linha completamente diferente", disse.

Controle e fiscaliza��o
Para Ariadne Natal, sistemas de controle e fiscaliza��o da atividade policial tamb�m encontram problemas para trabalhar. S�o os casos das corregedorias (�rg�os internos de investiga��o), e as ouvidorias de pol�cias - entidades civis respons�veis por mediar conflitos entre o cidad�o e as pol�cias, al�m de cobrar apura��es de casos de abusos.
"Esses �rg�os atuam de maneira bem desigual a depender do Estado. Em alguns locais, at� s�o mais estruturados. Mas, no geral, eles n�o t�m liberdade institucional para investigar. Raramente produzem dados sobre o que est� sendo feito e que possam ser acompanhados pela sociedade", diz.
No segundo caso, por exemplo, o ouvidor de pol�cias � escolhido pelo governador do Estado a partir de uma lista tr�plice indicada por diversas entidades da sociedade civil.
"Mas a escolha sempre cabe ao governador, que � parte interessada. Ent�o, n�o h� liberdade e independ�ncia para atuar", pontua a pesquisadora.
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