(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas (IN)JUSTI�A

O homem que ficou 4 anos preso e s� foi inocentado ap�s enviar carta ao STF

O jovem de 23 anos foi detido e acusado de participar de um assalto na periferia de S�o Paulo. Reconhecido por uma foto do WhatsApp, acabou condenado e passou 4 anos na cadeia. S� foi solto quando enviou uma carta ao STF contando o caso %u2014 a corte o inocentou por falta de provas.


28/07/2022 06:42 - atualizado 28/07/2022 07:49


João lendo carta
(foto: Fernando Otto)

Come�a assim a carta que libertou Jo�o (nome fict�cio) da cadeia depois de quatro anos em regime fechado: "Aos excelent�ssimos senhores ministros, declaro para os devidos fins que sou pessoa humilde, n�o podendo pagar um advogado particular. Pedindo ent�o o aux�lio de um defensor p�blico".

O assunto do texto: "Pedido de Revis�o Criminal". O destinat�rio era o Supremo Tribunal Federal (STF).

Jo�o, um homem negro de 23 anos, pedreiro, foi condenado a oito anos e dez meses de reclus�o por um assalto ocorrido em 2018 em um bairro da periferia de S�o Paulo. Na carta, ele conta n�o ter nada a ver com o crime, e que sua pris�o e senten�a foram ilegais.

A correspond�ncia, escrita na cela de um pres�dio no interior de S�o Paulo, chegou a Bras�lia e foi encaminhada � Defensoria P�blica da Uni�o (DPU), que assumiu o caso e entrou com um recurso no STF.

Para tr�s dos cinco ministros da 2ª turma do Supremo, a deten��o n�o seguiu a lei e o jovem fora condenado sem provas. Ele foi inocentado em fevereiro.

Hoje livre, Jo�o agora tenta lidar com as consequ�ncias dos anos encarcerados. "A pris�o acabou com a minha vida. Parei no tempo", diz, na casa de sua m�e, com uma c�pia da carta nas m�os — ele escreveu outras quatro, mas s� uma foi anexada ao processo.

N�o s� ele parou no tempo, toda a fam�lia parou. Sua m�e por quatro anos sofreu com a aus�ncia do filho, sentimento de impot�ncia e falta de dinheiro para bancar um advogado particular.

"Qualquer um cobrava R$ 5 mil s� para analisar o processo. A gente economizava, pedia emprestado pra parentes e amigos, mas n�o dava para manter", diz ela.

O dinheiro da fam�lia era t�o curto que n�o sobrava nem para visitar Jo�o no interior.

"Sempre mudavam ele de cidade, a 300 quil�metros ou mais. A gente n�o tinha como pagar carro, gasolina, estadia... Estava tentando sobreviver aqui, fiquei quatro anos sem dormir direito, s� pensando nele, naquela cadeia", conta.

'Nada de il�cito'

O caso de Jo�o come�ou em uma noite chuvosa no final de 2018, quando tr�s pessoas foram assaltadas em frente a uma casa na periferia paulistana.

Eram tr�s os ladr�es, um deles armado. O trio levou um rel�gio, um celular e R$ 100. A Pol�cia Militar foi chamada, e passou a circular pelas ruas.

Uma hora depois, em uma ciclovia que liga v�rios bairros da regi�o, os policiais "avistaram um indiv�duo correndo em desabalada carreira", segundo o boletim de ocorr�ncia.

Era Jo�o. "Eu estava voltando de uma balada, n�o sabia de roubo nenhum. Estava correndo porque chovia forte, e eu queria chegar r�pido em casa. Quando passava embaixo de um viaduto, apareceram uns policiais atr�s da pilastra", conta.

Os agentes relataram que n�o foi encontrado "nada de il�cito" com o jovem — o paradeiro da arma usada no crime � desconhecido. "Indagado acerca do roubo, este negou peremptoriamente a conduta", os PMs disseram ao delegado, mais tarde.

Os policiais ent�o tiraram uma foto do jovem e a enviaram pelo WhatsApp para colegas que estavam com as tr�s v�timas. Elas disseram ter reconhecido Jo�o pela imagem no celular. Ele foi preso em flagrante — ningu�m mais foi detido.

Mais tarde, na delegacia, as tr�s v�timas o reconheceram pessoalmente.

O problema � que todo o processo criminal que se seguiu, calhama�o que por anos mobilizou promotores, defensores, desembargadores e at� ministros do STF, foi baseado nesse reconhecimento produzido de uma maneira considerada ilegal pela pr�pria Justi�a.

O artigo 226 do C�digo de Processo Penal determina que o reconhecimento de suspeitos tem de seguir algumas regras.


Homem caminhando
Jo�o ficou quatro anos preso at� ser absolvido pelo STF (foto: Fernando Otto)

Pessoas parecidas fisicamente devem ser colocadas lado a lado, e a v�tima vai apontar quem ela acredita ser o autor do crime. Ou seja, n�o � permitido colocar uma pessoa baixa, branca e loira ao lado de um homem negro, alto e corpulento.

Com Jo�o essas regras nunca foram seguidas. Na delegacia, as v�timas o reconheceram novamente, mas ele foi a �nica pessoa apresentada pelo delegado. Em audi�ncia no f�rum, aconteceu da mesma forma.

O argumento da defesa sempre versou sobre esse ponto: Jo�o foi reconhecido de maneira ilegal, e n�o havia outras provas contra ele.

"O reconhecimento fotogr�fico pode gerar identifica��es equivocadas, como j� aconteceu in�meras vezes. Hoje o entendimento � de que ele n�o pode servir como �nica prova. Quando h� outras, � considerado como um ponto a mais para justificar a condena��o", diz Gustavo de Almeida Ribeiro, defensor p�blico federal que representou Jo�o no STF.

"N�o quer dizer que a v�tima aja de m�-f� para prender um inocente, mas ela est� em um momento de tens�o, nervosismo, medo... � comum se confundir vendo uma foto isolada, fora de contexto", diz.

"Mas, no caso dele, n�o havia mais nada. A foto foi feita � noite, no escuro. Na delegacia, as v�timas dificilmente iriam mudar de opini�o porque elas j� tinham reconhecido pela imagem, e ele foi a �nica pessoa mostrada", diz.

O Minist�rio P�blico de S�o Paulo (MP-SP) denunciou Jo�o, alegando que as provas "eram robustas e maci�as". Citou como exemplo o reconhecimento e o testemunho dos policiais sobre o flagrante — esses, no entanto, n�o estavam no momento do crime.

Quando a Defensoria P�blica de S�o Paulo pediu a revis�o da senten�a, o procurador Jos� Antonio Franco da Silva respondeu que, na an�lise de roubo, "a palavra da v�tima assume peso fundamental no contexto probat�rio para apontar a autoria, sendo certo que, em muitos casos, apresenta-se como �nica fonte."

Para ele "a utiliza��o da fotografia do acusado n�o significou fundamento para a condena��o, que est� alicer�ada no reconhecimento pessoal, realizado em duas oportunidades, afastando por completo eventual d�vida acerca da autoria."

Relator do caso no Tribunal de Justi�a de S�o Paulo, o desembargador Antonio Carlos Machado de Andrade concordou com a tese do MP e manteve a condena��o.

Mais tarde, tr�s ministros do STF discordaram desse argumento e absolveram o jovem (leia mais abaixo).

J� na carta ao STF, o pedreiro contou toda a hist�ria sobre como foi reconhecido pelo WhatsApp. E explicou: "Em mat�ria criminal, tudo deve ser preciso e certo para que n�o haja possibilidade de desencontros na aprecia��o das provas."

'Julgaram pelo passado'

Jo�o conta que procurou o C�digo Penal na biblioteca da cadeia para entender seu caso e fundamentar as cartas enviadas � Justi�a.

"Comecei a ler at� entender a lei. Vi que reconhecimento por foto n�o era correto. Falei com funcion�rios do pres�dio, e todo mundo me falava que isso n�o existe, que eu tinha de recorrer. Algu�m me orientou a escrever para Bras�lia."

Na correspond�ncia, ele credita sua pris�o ao preconceito por causa de uma condena��o anterior — ele estava cumprindo regime semiaberto por um roubo. "Os policiais pegaram o primeiro que apareceu na frente, viram que eu tinha passagem e me prenderam", diz.

Sua m�e vai na mesma linha. "Julgaram meu filho pelo passado. Ele estava se recuperando, fazendo cursos, tinha arrumado um emprego. Ele me contou da primeira vez que ele errou. Mas dessa vez ele me disse: 'dessa vez eu n�o fiz, m�e'", conta.


João segurando a carta
O pedreiro foi reconhecido por meio de uma fotografia enviada pelo Whatsapp (foto: Fernando Otto)

Para ela, a abordagem policial e a condena��o foram influenciadas pelo racismo. Ela acredita que a hist�ria teria sido outra se seu filho fosse branco.

"Se voc� � negro, se anda na rua com determinada roupa, de chinelo, j� te veem como maloqueiro, ladr�o. Passei por isso tamb�m, muitas vezes. Em qualquer abordagem tem essa diferen�a. Se meu filho fosse loiro, cabelo liso, teria sido solto, porque ele n�o estava com nada, n�o estava com arma, nada."

Ela conta que, depois de quatro anos, a cadeia mudou seu filho.

"Ele voltou outra pessoa: magro, sem vontade de comer, n�o consegue dormir, n�o sai de casa, n�o tem �nimo para nada. E eu morro de medo de ele sair e ser preso de novo, n�o paro de ligar para saber onde ele est�", diz.

Jo�o cita outro efeito negativo. Quando foi preso, ele esperava um filho com uma garota com quem se relacionou brevemente. "Meu filho nasceu comigo na cadeia. N�o o vi nascer, nunca tive contato com ele. Cresceu sem o pai. Hoje, ele n�o me reconhece", diz.

Acesso � defesa

Jo�o, que parou de estudar no Ensino M�dio, � um exemplo do perfil majorit�rio dos presos do Brasil: negro, jovem, de pouco estudo e baixa renda. Segundo o Anu�rio Brasileiro de Seguran�a P�blica, dois em cada tr�s detentos s�o negros — apenas 51% conclu�ram o Ensino Fundamental. J� 62,3% t�m entre 18 e 34 anos.

Em 2020, o Brasil tinha 919.651 pessoas detidas, alta de 209% em rela��o a 2005 — os dados s�o do Conselho Nacional de Justi�a (CNJ). O n�mero de vagas no sistema, por�m, era de 442 mil.

Embora o C�digo Penal preveja mais de mil crimes, apenas tr�s deles correspondem a 71% de todo o sistema carcer�rio: tr�fico, furto e roubo. J� delitos contra a pessoa, como homic�dio, respondem por 11,3% do total.

"Furto, roubo e tr�fico acontecem nas ruas: a pol�cia prende em flagrante sem investigar, e a Justi�a costuma condenar com provas fr�geis. Quem � preso nessas circunst�ncias? Os pobres que transitam pelo espa�o p�blico", disse Maur�cio Dieter, professor de criminologia da USP, em entrevista recente � BBC News Brasil.

Escrever uma carta ao STF foi a solu��o encontrada por Jo�o para que sua hist�ria fosse analisada com mais cuidado. "Eu sentia que ningu�m prestava aten��o ao processo", diz.

Quem leu sua mensagem foi a defensora p�blica federal Miriam Aparecida de Laet Marsiglia, de Bras�lia. "Para mim ficou muito claro que ele era inocente, e que precis�vamos corrigir a injusti�a. Foi um caso que me tocou muito", diz.

H� quatro anos, o Supremo e o Superior Tribunal de Justi�a (STJ) firmaram um acordo para repassar as correspond�ncias de presos enviadas a Bras�lia para a Defensoria P�blica da Uni�o (DPU).

Apenas Miriam, uma das respons�veis pelo servi�o, recebe cerca de 30 mensagens por semana.

"Normalmente, quando o preso manda carta � porque est� desesperado por uma defesa melhor. Muitas pessoas n�o conseguem manter um advogado particular, porque � muito caro. Ou sentem que o defensor p�blico n�o d� muita aten��o ao caso", diz Miriam.

Um recente estudo da DPU apontou que, embora o n�mero de defensores tenha crescido nos �ltimos anos, o Brasil tem apenas 6.956 desses profissionais em atua��o. Em m�dia, h� um defensor para cada 29,9 mil pessoas com renda de at� tr�s sal�rios m�nimos (cerca de R$ 3,6 mil), parcela considerada economicamente vulner�vel e p�blico-alvo do servi�o.


Fachada do Supremo Tribunal Federal, com destaque para imagem que representa a Justiça vendada
Jo�o foi absolvido pelo STF ap�s quatro anos de pris�o (foto: Dorivan Marinho/SCO/STF)

Mas os dados acima se referem apenas aos defensores estaduais, que atuam na primeira e segunda inst�ncias da Justi�a.

No caso da defensoria federal, que representa r�us em cortes superiores como STJ e STF, a situa��o � ainda mais dram�tica: h� apenas um defensor para cada 291 mil pessoas de baixa renda.

"A demanda � muito grande em rela��o � quantidade de profissionais. A defensoria n�o d� conta de atender �s pessoas. Muitas vezes o defensor tem muito processos para cuidar e n�o se concentra em determinado caso como deveria", diz Gustavo Almeida, da DPU, que atua no STF h� 15 anos.

Outro problema � a falta de defensores em muitas comarcas da Justi�a pelo pa�s — ou seja, nesses pontos h� ju�zes e promotores, mas falta quem defenda os mais pobres. Nesses casos, o Judici�rio indica um advogado para representar o r�u, e ele � remunerado pelo trabalho. Mas nem sempre o sistema funciona como deveria, segundo defensores.

Alessa Veiga, defensora p�blica de Minas Gerais, conta ter enfrentado esse problema quando visitava pres�dios da regi�o de Uberl�ndia.

"Havia detentos de v�rias cidades sem defensoria. Eles tamb�m n�o tinham advogado, e a gente s� ficava sabendo quando o preso escrevia um bilhete contando sua hist�ria", diz.

Uma delas foi revelada pela BBC News Brasil no ano passado. Desempregada, a m�e de uma crian�a de cinco anos ficou 100 dias na cadeia por furto de �gua, delito depois considerado insignificante pelo STF. Alessa, que entrou com um pedido de habeas corpus no Supremo, s� soube do caso por um bilhete escrito pela mulher.

'Mem�rias falhas'

No in�cio do ano, o processo de Jo�o ficou conhecido nos tribunais de Bras�lia como uma mudan�a na jurisprud�ncia sobre reconhecimento de suspeitos. A partir dele, os processos devem seguir as regras do C�digo de Processo Penal — em nota, a Secretaria da Seguran�a P�blica de S�o Paulo afirmou que a norma � seguida nas delegacias do Estado.

Embora a Procuradoria-Geral da Rep�blica (PGR) tenha pedido a confirma��o da senten�a, os ministros do STF Gilmar Mendes, Edson Fachin e Kassio Nunes Marques votaram pela absolvi��o do pedreiro, alegando que n�o havia provas e que o reconhecimento por WhatsApp � ilegal.

Para Mendes, relator do caso, as provas de um crime n�o devem se basear apenas na mem�ria das testemunhas, porque "mem�rias podem falhar ou ser influenciadas por agentes externos".

Em seu voto, ele sustenta que a prova deve ser anulada caso o reconhecimento do suspeito n�o siga as regras do C�digo Penal. Tamb�m ressalva que o reconhecimento fotogr�fico poderia ser aprimorado e regulado, mas ainda assim seriam necess�rias mais provas para justificar uma condena��o.

Sobre o caso de Jo�o, o ministro ainda questionou os motivos que fizeram os policiais escolherem o jovem como um suspeito do roubo: "N�o h�, nos autos, informa��es que expliquem por qual raz�o os policiais fotografaram o recorrente no momento da abordagem, uma vez que, com ele, nada foi encontrado."

J� Ricardo Lewandowski ficou ao lado de Andr� Mendon�a — ambos consideraram as provas suficientes. Lewandowski, por exemplo, afirmou que, embora o procedimento fotogr�fico seja il�cito, Jo�o fora reconhecido outras duas vezes pessoalmente — na delegacia e em audi�ncia.

"Tal mosaico f�tico, acrescido dos depoimentos dos policiais militares, a meu sentir, traduz um quadro seguro quanto � autoria dos il�citos penais", escreveu o ministro.

O placar foi apertado (3 a 2), mas o jovem acabou absolvido. "Eu nem esperava mais sair... Mas um dia me chamaram na cadeia dizendo que eu estava livre, nem sei dizer o que senti, falta a palavra", conta.

Sua m�e s� soube da vit�ria quando o filho chegou em casa. "Ele nem me avisou, n�o ligou. De repente apareceu na minha frente, meu cora��o quase parou", relata.

Na sala do pequeno sobrado da fam�lia, o rapaz recebeu da reportagem uma c�pia da carta que o tirou do pres�dio. "Lembro bem quando escrevi essa. Foi a �nica com tinta era verde...", diz.

A carta termina assim: "Pe�o que meu processo seja revisado porque estou sendo punido por algo que n�o cometi. Para uma poss�vel condena��o tudo deve ser claro como a luz. Condena��o exige certeza, e n�o 'alta probabilidade'. Desde j� agrade�o e aguardo retorno."

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62144663

Sabia que a BBC est� tamb�m no Telegram? Inscreva-se no canal.

J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)