
Lisboa — A artista pl�stica Lenne Russo, 51 anos, est� a caminho de realizar um sonho: obter a cidadania portuguesa. Mais do que ter o desejado passaporte da Uni�o Europeia, que permite tr�nsito livre por mais de 120 pa�ses mundo afora, ela quer reconquistar o sobrenome origin�rio da fam�lia, que se perdeu na burocracia do servi�o p�blico brasileiro no in�cio do s�culo passado. Entre 1907 e 1908, o av� dela, Eduardo dos Santos Russo, ent�o com tr�s anos de idade, desembarcou no porto de Santos com a fam�lia, que buscava em terras brasileiras condi��es melhores de vida.
Enfileirados, cada um dos portugueses que aportavam no promissor Brasil era registrado para controle federal. Mas a pressa e o descaso dos servidores da �poca acabavam por resultar em erros grosseiros nas anota��es. Sobrenomes eram alterados sem que houvesse contesta��o dos imigrantes, muitos deles analfabetos. No caso do av� de Lenne, o Russo despareceu do registro. Ficou apenas Eduardo dos Santos. "Tanto que, oficialmente, me chamo Edilene Aparecida Mora dos Santos", conta. Restou-lhe usar o sobrenome Russo quando assumiu a carreira art�stica.
Uma mudan�a promovida na legisla��o pelo governo de Portugal em 2018, no entanto, trouxe um sopro de esperan�a para Lenne. Para atrair descendentes de portugueses que deixaram o pa�s — muitos para fugir da pobreza —, abriu-se a possibilidade de netos desses cidad�os pedirem diretamente a nacionalidade origin�ria. At� ent�o, netos de portugueses nascido no exterior s� podiam requerer a cidadania derivada. Ou seja, recebiam o direito de seus pais, mas n�o podiam passar o benef�cio adiante. Com a altera��o na lei, a nacionalidade portuguesa passou a ser um direito de heran�a, e eles poder�o transmiti-la para as gera��es seguintes.
Mas que fique claro, avisa o advogado Renato Martins, CEO do escrit�rio Martins Castro, com sede em Lisboa: "Se os netos de portugueses n�o pedirem a cidadania, seus descendentes n�o poder�o requer�-la. � como se a corda se rompesse". Por isso, � importante dar entrada nos pedidos de nacionalidade enquanto aqueles que t�m direito est�o vivos. � o caso de Lenne. "N�o tenho filhos, mas minha irm�, Elaine Aparecida, tem tr�s. Ent�o, eu e ela estamos requerendo a cidadania portuguesa para que meus sobrinhos e os filhos deles possam se beneficiar", ressalta. "Melhor: todos os documentos emitidos pelo governo portugu�s trar�o Russo como nosso sobrenome", comemora.
Intelig�ncia artificial
N�o h� estimativas atualizadas sobre quantos descendentes de portugueses nascidos no Brasil t�m direito � cidadania do pa�s europeu. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE), de meados dos anos 2000, apontavam que 21 milh�es de brasileiros tinham origem portuguesa. Boa parte desses cidad�os est� espalhada por Rio de Janeiro, S�o Paulo, Rio Grande do Sul, Par� e Goi�s. Nem todos, por�m, t�m condi��es de comprovar a liga��o com os antepassados, at� por desconhecimento. "Sendo assim, � necess�rio um acompanhamento profissional, s�rio", recomenda a advogada Joana Nunes, do escrit�rio Garcia, Silva, Nunes e Associados.
A maior dificuldade, acrescenta Renato Martins, � colher toda a documenta��o exigida pelo governo de Portugal. Ele lembra que, at� 1911, n�o havia registro civil no pa�s. Os nascimentos eram catalogados nas igrejas. E muita coisa se perdeu no meio do caminho. Assim, � preciso uma busca minuciosa. "H� pessoas que est�o nesse processo h� mais de 10 anos, sem sucesso", afirma ele, que montou, com os s�cios da Martins Castro, um programa de intelig�ncia artificial capaz de identificar informa��es num tempo mais curto.
"Temos, hoje, mais de 1 milh�o de metadados, dentro de um banco geneal�gico, que podem ser lidos e buscados", explica do advogado. O processo implica localizar informa��es em igrejas e conservat�rias (cart�rios), em Portugal, e em portos, munic�pios, pois muitos portugueses foram trabalhar em atividades agr�colas, e mesmo em hospedarias, no Brasil. Com essas informa��es, cruzamos os dados e podemos chegar ao que buscamos", destaca Martins. Ele ressalta que nem tudo est� digitalizado, mas a digitaliza��o em si tamb�m n�o � garantia de sucesso na empreitada de quem est� pleiteando a nacionalidade portuguesa.
� preciso, segundo o advogado, transformar cada informa��o — nome, sexo, nome dos pais, localidade e data de nascimento — em um dado busc�vel. "Chamamos isso de metadados. A partir da�, a intelig�ncia artificial faz a parte dela, pois consegue ler os documentos", detalha. Ele acrescenta que o tempo necess�rio para que todo o processo de obten��o da cidadania seja conclu�do depende da qualidade das informa��es. Quando elas est�o dispon�veis mais facilmente, em cinco dias �teis � poss�vel localizar os documentos necess�rios. O processo todo, entretanto, pode levar cerca de dois anos e meio. Detalhe importante: nenhum candidato � cidadania portuguesa pode ter sido condenado a tr�s anos ou mais de pris�o.
Judeus sefarditas
A analista de com�rcio exterior Maria L�gia de Melo, 35, procura os registros de seus ascendentes portugueses desde 2019. O caso dela, contudo, � mais complicado. Ela alega ter liga��es com os judeus sefarditas, que foram expulsos de Portugal pela Inquisi��o no s�culo XV. Parcela significativa desses judeus se deslocou para Recife, com seus nomes trocados para que pudessem viver em paz. O benef�cio da nacionalidade origin�ria dos sefarditas foi criado em 2015, mas, neste ano, houve uma altera��o da Lei de Nacionalidade Portuguesa, para dificultar aqueles que pretendem obter a cidadania desta forma.
Al�m dos registros de descend�ncia, ser� necess�rio demonstrar um v�nculo real e duradouro com Portugal por meio de desloca��es regulares pelo pa�s ou ter o documento da titularidade de direitos reais sobre im�veis, em caso de heran�a. Maria L�gia est� em territ�rio luso h� tr�s anos, onde trabalha e estuda. Apesar das dificuldades, ela n�o desiste. "Minha fam�lia � do interior de Pernambuco, que � muito ruim de documenta��o. Por isso, ainda n�o consegui localizar os dados de que necessito. Mas, se Deus quiser, terei minha cidadania portuguesa por ser de origem sefardita", diz
Lenne Russo at� pensou em desistir da cidadania portuguesa quando os pais morreram, em 2014. No ano passado, no entanto, uma amiga a convenceu a retomar o sonho de requerer a nacionalidade, recuperar o sobrenome e viver na Europa. E foi � luta. Depois de muito procurar, encontrou registros da chegada de seu bisav�, Augusto Cesar Russo, com seu av�, no Arquivo Nacional. "Estava tudo l�, o nome completo dele a da mulher", conta. "Assim que minha cidadania sair, quero visitar os locais de origem da minha fam�lia, em Tr�s-os-montes", refor�a ela, que pagar� R$ 11.200 pelo processo de nacionaliza��o dela e da irm�.
Casamento e filhos
A advogada Joana Nunes afirma que brasileiros casados ou em uni�o est�vel com portugueses tamb�m podem pedir a cidadania em Portugal. A rela��o, por�m, n�o pode ser inferior a tr�s anos. Todos os documentos devem ser autenticados e apostilados por Haia, o que garante reconhecimento internacional. Filhos de estrangeiros nascidos em Portugal s�o outros que se encaixam entre os que podem transferir cidadania, no caso, para os pais, desde que eles vivam em terras lusitanas por mais de cinco anos.
"S�o muitas as vantagens de se ter cidadania portuguesa", diz a advogada. "O documento de identidade de Portugal (cart�o cidad�o) permite livre circula��o e possibilidade de resid�ncia em todos os pa�ses da Uni�o Europeia. Facilita, ainda, o acesso a cr�dito banc�rio (inclusive, para a compra da casa pr�pria)", acrescenta. Ela refor�a, contudo, que o processo de naturaliza��o n�o � f�cil, sobretudo por causa da burocracia e da falta de pessoal em �rg�os p�blicos, como o Servi�o de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). "A demanda por cidadania est� crescendo, mas a infraestrutura do governo n�o consegue acompanhar esse movimento."
Joana faz outro alerta: "Antes de dar entrada no pedido de cidadania � preciso buscar a ajuda de profissionais s�rios, registrados na Ordem dos Advogados de Portugal". O aviso faz sentido. O governo de Portugal est� investigando pelo menos 22 influencers digitais brasileiros que v�m vendendo facilidades para a obten��o de nacionalidade, mas, na verdade, d�o golpes nos desavisados. "Profissionais registrados para prestar esse tipo de servi�o podem ser denunciados � Justi�a caso deem preju�zos a algu�m e respondem por isso. No caso dos falsos consultores, a puni��o � mais dif�cil e as perdas, certas", sentencia.
As estimativas apontam que pelo menos 1 milh�o de brasileiros vivem em Portugal, inclu�dos aqueles que t�m dupla cidadania. Entre os classificados como estrangeiros legais, s�o quase 300 mil, dos quais 47 mil obtiveram autoriza��o para fincar ra�zes no pa�s no primeiro semestre deste ano. Al�m desses grupos, de descendentes de portugueses e de brasileiros que obtiveram autoriza��o de resid�ncia, o governo de Portugal quer atrair m�o de obra para o pa�s e dinamizar a economia. Para isso, criou um visto tempor�rio de 180 dias para que os interessados possam procurar emprego em empresa locais. A nova lei deve entrar em vigor at� o fim de agosto.
Economia e xenofobia
As facilidades criadas para atrair descendentes de portugueses e estrangeiros n�o est� restrita a Portugal, diz o advogado Renato Martins, CEO da Martins Castro. Ele observa que Espanha, Alemanha, Fran�a e Luxemburgo, que recentemente naturalizou 15 mil brasileiros, est�o no mesmo caminho. E isso � resultado do que est� sendo chamado pelas autoridades de "inverno demogr�fico", quando os idosos passam a ser maioria da popula��o e os jovens no mercado de trabalho j� n�o s�o suficientes para garantir o sustento dos regimes de Previd�ncia Social. "Eu, assim como estudiosos da Uni�o Europeia e da Organiza��o das Na��es Unidas (ONU), prefiro chamar essa realidade de suic�dio demogr�fico", diz.
Para ele, os pa�ses que est�o flexibilizando as regras de imigra��o v�m enxergando os problemas oriundos do envelhecimento da popula��o de uma maneira muito concreta, adotando pol�ticas para que possam ser repovoados. "Nenhuma na��o se sustenta quando sua popula��o economicamente ativa encolhe", afirma. Em Portugal, mesmo com a vinda de estrangeiros, o n�mero de habitantes vem caindo ano a ano. S�o pouco mais de 10 milh�es.