
At� o fim de 2022, pelo menos 2.297 multas ambientais podem prescrever e o Estado brasileiro deixar de arrecadar cerca de R$ 298 milh�es, segundo estimativa interna do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renov�veis (Ibama), feita em junho e obtida pela BBC News Brasil por meio da Lei de Acesso � Informa��o (LAI).
Esse n�mero mostra apenas uma parte do problema, pois o �rg�o admite que mais de 90 mil multas ainda est�o na fila para serem processadas e seus prazos de prescri��o s�o desconhecidos.
As cifras tamb�m podem variar de acordo com o tipo de an�lise, j� que h� v�rios tipos de prescri��o previstos em lei, que variam entre tr�s a cinco anos. A reportagem considerou dados enviados pelo pr�prio Ibama, que cita como base lei de 1999 que estabelece prazo de prescri��o da a��o punitiva do Estado.
A BBC News Brasil conversou com mais de 20 ex-funcion�rios e especialistas do Ibama para esta reportagem. Tamb�m analisou documentos internos do �rg�o e dados oficiais.A realidade que se desenha � que infratores n�o temem as puni��es pois contam com a prescri��o para livrar-se dos malfeitos.
Consequentemente, v�m mantendo pr�ticas ilegais por anos, contribuindo para aumentar o desmatamento e a grilagem de terras, enquanto mant�m neg�cios com a venda e exporta��o de produtos, como carne e madeira.
Quatro etapas s�o necess�rias para que a infra��o ambiental seja punida: identificar o il�cito ambiental, autuar, julgar e cobrar a multa. Se o Estado demorar cinco anos ou mais para realizar qualquer uma dessas etapas ou ficar tr�s anos sem "mover" o processo, a multa prescreve e nenhum dinheiro pode ser recolhido, embora a empresa ainda possa ter de restaurar a �rea degradada, se assim determinado pela Justi�a. Tamb�m h� poss�vel puni��o na esfera criminal.
Mais de 10 mil multas ambientais s�o aplicadas anualmente no Brasil. Mas, segundo diagn�stico do pr�prio Ibama, a atual equipe que analisa e julga n�o consegue dar conta desse volume de trabalho, ent�o a papelada se acumula e � repassada para o ano seguinte, situa��o que se repete at� o vencimento das multas. Uma estimativa interna do instituto diz que quase 40 mil multas podem prescrever at� 2024.
Falta de pessoal e mudan�as frequentes na legisla��o s�o os motivos do problema, segundo avalia��o interna do Ibama e as fontes ouvidas.
"As pessoas t�m a impress�o de que o Estado � incapaz de punir", diz Felipe Nunes, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e um dos autores de um estudo que mostra que menos multas ambientais est�o sendo aplicadas e julgadas por atual administra��o do Ibama.
Especialistas apontam que uma das raz�es que ajudaram a aumentar o risco de prescri��es � a chamada audi�ncia de concilia��o, uma nova etapa antes do julgamento da multa em que o Ibama oferece ao infrator a possibilidade de chegar a um acordo com a empresa em vez de caminhar por um julgamento.
Criado em 2019, o procedimento acabou retardando o processamento de multas nos primeiros meses. Dados da ag�ncia ambiental apontam que houve o menor n�mero de julgamentos de infra��es ambientais ao menos desde 2013 no �rg�o.
O Ibama reconheceu essas audi�ncias como um desafio em uma avalia��o interna, mencionando-as em seu memorando interno em uma se��o sobre "amea�as ao processo sancionat�rio".
"A audi�ncia de concilia��o foi uma pol�tica que veio de cima pra baixo, sem ouvir os servidores. Gastou-se muita energia. Se tivessem priorizado o trabalho para melhorar julgamento e instru��o das multas, n�o ter�amos tantas prescri��es de multas de valores alt�ssimos", diz o ge�grafo e analista ambiental Govinda Terra, um dos diretores da Associa��o dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente e do Plano Especial de Cargos do MMA (Minist�rio do Meio Ambiente) e do Ibama (Asibama-DF).
O pr�prio presidente Jair Bolsonaro (PL) j� se mostrou cr�tico �s multas ambientais por diversas vezes. Ele pr�prio foi multado por pescar em �rea protegida em janeiro de 2012 e vem dizendo, desde que foi eleito, que quer acabar com a "ind�stria da multa" no Brasil. Sua pr�pria multa prescreveu em 2019 e o agente que a escreveu foi removido de seu cargo no mesmo ano.
Multas prescritas n�o s�o um problema novo e atualmente h� at� mais mecanismos para evit�-las do que h� alguns anos, como a digitaliza��o de documentos nos �rg�os p�blicos, que ajuda na tramita��o da papelada e evita a perda de arquivos.
Mas a perda de arrecada��o com as prescri��es est� aumentando. Registros obtidos por meio da LAI mostram que pelo menos 649 multas ambientais prescreveram no ano passado, a maior perda financeira reconhecida da ag�ncia desde 2017, ap�s corre��o pela infla��o, de R$ 144 milh�es.
Uma das preocupa��es mais graves dos servidores � com multas milion�rias, cujo trabalho de autua��o pode levar meses de prepara��o, mas que t�m se perdido com prescri��es.
"As grandes empresas preferem gastar com advogado e estender o processo administrativo ao m�ximo — muitas enrolam mesmo — e, quando n�o d� certo, v�o brigar na Justi�a", diz a ex-presidente do Ibama, Suely Ara�jo, que ocupou o cargo no governo Temer e hoje trabalha como especialista s�nior em pol�ticas p�blicas do Observat�rio do Clima. O Ibama publicou em julho uma portaria que tenta "organizar" essa fila do passivo, priorizando aqueles com valores mais altos.
Registros internos mostram que o Ibama reconhece o problema oficialmente. "Defici�ncias administrativas comprometem a apura��o e mobiliza��o das fiscaliza��es, n�o gerando o efeito dissuas�rio que a multa deveria ter", diz um documento produzido no ano passado.

Quando uma multa prescreve, o instituto precisa abrir uma apura��o para identificar o respons�vel. Mas nem sempre isso � poss�vel. Em alguns casos, o instituto n�o consegue nem sequer encontrar o agente respons�vel pelo julgamento da empresa. Por causa da demora, h� servidores envolvidos nos processos que at� j� se aposentaram.
Autoridades do Ibama disseram, em um plano interno, que o �rg�o precisa contratar 300 pessoas para preencher cargos administrativos e iniciar uma "for�a-tarefa" para evitar mais prescri��es.
Raoni Raj�o, professor de Gest�o Ambiental e Estudos Sociais da Ci�ncia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), diz que as mudan�as promovidas pelo governo Bolsonaro agravam a falta de pessoal no Ibama e geram um obst�culo artificial � fiscaliza��o. "O processo n�o anda e, com isso, mais multas ser�o vencidas".
"Seria muito importante que o tratamento das multas fosse feito de maneira estrat�gica. Isso garantiria que grandes e reincidentes infratores fossem objeto de sistemas de intelig�ncia compartilhados, por meio de uma governan�a entre �rg�os administrativos e penais, de modo que fossem investigados de maneira apropriada e priorit�ria", disse Andreia Bonzo Araujo Azevedo, que � Diretora Adjunta do Programa de Clima e Seguran�a do Instituto Igarap�.
O Ibama n�o respondeu aos pedidos de entrevista ap�s duas semanas.

"� um preju�zo imposs�vel de mensurar. � como se zerasse o efeito de tudo que foi feito", diz o servidor.
A alta no valor prescrito em 2021 foi puxada por um caso emblem�tico. Em 2009, o Estado brasileiro multou uma empresa agr�cola por impedir a regenera��o florestal em uma �rea de mais de 6 mil hectares, no Estado do Par�.
Em vez de permitir que a floresta voltasse a crescer em uma �rea que tinha sido desmatada, a empresa Agropecu�ria Santa B�rbara do Xinguara criou gado. Por causa do tamanho da fazenda, a multa estabelecida atingiu o teto previsto em lei, de R$ 50 milh�es.
A opera��o, que envolveu diversas fazendas da empresa, fazia parte de um trabalho do Ibama em diversas regi�es do Par� para comprovar a situa��o do desmatamento em �reas de atividade agropecu�ria na Amaz�nia. Os fiscais afirmaram que a empresa vinha comprando �reas j� desmatadas para criar gado. Segundo a pr�pria agropecu�ria, havia 20 mil cabe�as no local da autua��o.
Servidores da Superintend�ncia do Ibama no Par� que acompanharam a opera��o em 2009 disseram � reportagem que esta autua��o tinha um peso hist�rico.
"Era a primeira multa dessa empresa, na �poca a maior agropecu�ria do Brasil", disse um servidor, que pediu anonimato por n�o ter autoriza��o para dar entrevistas. "Descobrimos que estavam usando normalmente �reas que j� tinham sido desmatadas e estavam embargadas (ou seja, que n�o tinham autoriza��o para nenhum tipo de atividade produtiva, como a cria��o de gado)."

Mas o desfecho "hist�rico" n�o favoreceu os cofres p�blicos: a multa nunca foi paga e teve a prescri��o reconhecida pelo Estado no ano passado. Isto significa, na pr�tica, que, por causa da demora em agir, o Ibama perdeu definitivamente o direito de cobrar a agropecu�ria pela infra��o.
"Temos a sensa��o de enxugar gelo. N�o � s� o valor da multa que � perdido. � o trabalho de quem fez a fiscaliza��o, do que se gastou com helic�pteros, com pessoal, com tempo de trabalho. � um preju�zo imposs�vel de mensurar. � como se zerasse o efeito de tudo que foi feito", diz Terra, do Asibama-DF.
A multa foi uma das infra��es mais altas a prescrever nos �ltimos 20 anos, segundo dados obtidos pela reportagem e atualizados em mar�o deste ano. Desde 2000, ao menos R$ 1,3 bilh�o em multas ambientais j� prescreveu.

Al�m do lado administrativo, casos como esse tamb�m podem ser analisados na Justi�a, no �mbito civil e criminal. Em junho de 2018, o juiz federal Heitor Moura Gomes, da subse��o Judici�ria de Marab� do Tribunal Regional Federal da Primeira Regi�o condenou a agropecu�ria a recuperar a �rea desmatada, mas a empresa recorreu e, desde ent�o, aguarda decis�o definitiva da corte.
Na decis�o, o juiz absolveu a empresa do pagamento por danos materiais justamente por causa do alto valor da multa que seria aplicada contra a empresa - e que agora, sabe-se, prescreveu.
Bruno Valente, procurador federal do Par�, diz que � comum casos como esse durarem uma d�cada ou mais na Justi�a. "A consequ�ncia � ruim, pois n�o desencoraja os infratores".
A Agropecu�ria Santa B�rbara Xinguara se apresenta como uma das maiores do setor na Am�rica Latina. Em 2019, o jornal brit�nico The Guardian informou que eles estavam fornecendo � JBS, a maior empresa frigor�fica do mundo, que vende carne bovina para praticamente o mundo todo. O Par�, onde est� localizada a fazenda, � o Estado da Amaz�nia com a maior taxa de desmatamento.
A AgroSB, atual nome da empresa, reconheceu por e-mail que houve dano ambiental na �rea, mas que o desmatamento tinha acontecido antes da compra da fazenda, e que ela estava invadida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no momento da autua��o.
"O melhor para a AgroSB (e Estado) seria o Ibama ter analisado rapidamente este fato e ter declarado no m�rito a nulidade da multa, evitando-se, assim, o arrasto do deslinde do feito por mais de uma d�cada at� ser fulminado pela prescri��o", disse a empresa � reportagem.
O instituto ainda tentava descobrir, em junho deste ano, quem foi o respons�vel por ter deixado a multa prescrever, de acordo com um memorando interno obtido pela reportagem.
Um funcion�rio do Ibama que trabalhou no julgamento administrativo de multas e conhece o caso da AgroSB disse que a estrat�gia da empresa � comum.
"� modus operandi entrar no processo administrativo e esperar o vencimento da multa. Desde o momento em que a empresa foi multada at� agora, ela j� lucrou muito mais. Esse � um caso emblem�tico de falta de puni��o, que gera mais injusti�a."
Multa prescrita no passado, investiga��o no presente
Em mar�o de 2009, o Ibama multou a empresa Tradelink Madeiras em R$ 161 mil (hoje equivalentes a R$ 355 mil, em valores corrigidos pela infla��o) por ter adquirido 4.500 metros c�bicos de madeira serrada de ip� (um dos tipos mais valorizados do Brasil) e outros por meio de uma empresa de fachada, situa��o parecida com a da atual investiga��o.
A madeira comprada � �poca foi apreendida e, segundo o relat�rio do �rg�o, ficou guardada por quase uma d�cada em um galp�o, a ponto de ficar "com aspecto envelhecido, de cor acinzentada", at� que o �rg�o governamental aplicasse a multa, de fato, em 2018. Por conta do lapso temporal, a puni��o prescreveu e a empresa n�o precisou pagar a san��o.
Em uma nota t�cnica enviada � reportagem por meio da LAI, o Ibama justificou a prescri��o por "atrasos na an�lise quanto � lavratura, possivelmente devido � complexidade da opera��o".
A Tradelink voltou a ser destaque no ano passado depois que uma opera��o da Pol�cia Federal investigar se o ministro Ricardo Salles e o atual presidente do Ibama, Eduardo Bim, faziam parte de um suposto esquema para facilitar o contrabando de madeira para os Estados Unidos.
Destitu�do do cargo por 90 dias, Bim voltou ao trabalho e, no relat�rio anual de 2021 do Ibama, escreveu que o instituto est� "firme no combate ao desmatamento ilegal em terras ind�genas e nos diversos biomas brasileiros."

Procurada, a Tradelink negou irregularidades, diz que n�o houve exporta��o ilegal e que "a documenta��o comprobat�ria da exporta��o desses cont�ineres foi apresentada ao Ibama e � Receita Federal do Brasil, antes do embarque".
Disse ainda que "nunca comprou madeira de empresas que foram fechadas" e que a a��o de mar�o de 2009 "est� sendo apreciada pelo sistema judicial brasileiro".
Tamb�m afirmou que os autos n�o tiveram rela��o com desmatamento, mas com "formalidades administrativas vinculadas com diverg�ncias no preenchimento espec�fico da documenta��o".
Especialistas acreditam que irregularidades ambientais poderiam ser evitadas se o Ibama garantisse as san��es, freando poss�veis reincidentes.
"A prescri��o desses mais de 2 mil autos de infra��o ambientais [da planilha obtida pela reportagem] � uma forma de chancelar as condutas ambientais criminosas. Se muitos infratores ambientais j� viam nas falhas sist�micas uma via para cometer ilegalidades, sabendo da predisposi��o de que, se pegos, suas autua��es acabar�o sendo alcan�adas pela prescri��o, ser�o ainda mais estimulados a continuar a expandir o desmatamento ilegal", disse Daniele Galv�o, analista jur�dica do Center for Climate Crime Analysis (CCCA), uma organiza��o sem fins lucrativos.
"O CCCA tem se deparado em suas an�lises com diversos casos em que o desmatamento associado � extra��o ilegal de madeira, muitas vezes destinada � exporta��o para o mercado europeu ou norte-americano, poderia ser evitado se o Ibama (e tamb�m os �rg�os ambientais estaduais) atuasse de forma mais efetiva em campo".
Petrobras: mesmo com alertas de subordinados, multas de R$ 10 milh�es prescreveram
Uma investiga��o aberta pelo Ibama em 2018, a que a reportagem teve acesso, mostra que um agente do �rg�o teria se "esquecido" de tratar de pelo menos quatro multas emitidas contra a Petrobras, deixando R$ 10 milh�es em infra��es prescreverem entre 2017 e 2018, apesar de ter sido avisado por seus subordinados. O caso contra o servidor foi arquivado por falta de provas, mas as multas foram perdidas.
A Petrobras � a empresa que mais recebeu multas ambientais no pa�s, com mais de 2 mil san��es desde 2009, de acordo com dados do Ibama, que somam mais de R$ 1 bilh�o, mas a maioria ainda n�o resultou em pagamento. A empresa foi constantemente mencionada nas entrevistas para esta reportagem como um exemplo da dificuldade da ag�ncia ambiental em garantir o pagamento de multas.
De acordo com a investiga��o, um coordenador de explora��o de petr�leo do Ibama no Rio de Janeiro "reteve deliberadamente" v�rios autos de infra��o contra a petroleira estatal.
O documento apontou que um agente da unidade do Rio apresentou mensagens remetidas ao coordenador que pediam a ele para trabalhar na multa, o que indicaria "que n�o houve neglig�ncia, mas sim a inten��o de manter a situa��o como est�".
Os servidores que investigaram o caso tamb�m constataram v�rios problemas administrativos naquela unidade do Ibama, como "falta de controle documental do processo" na unidade e falta de controle dos hor�rios dos funcion�rios.
O caso tamb�m foi denunciado ao Minist�rio P�blico Federal, que abriu um inqu�rito. O servidor deixou o cargo comissionado que ocupava na mesma �poca da den�ncia, em 2018, mas segue atuando no Ibama. O caso foi arquivado em 2021, segundo o MPF, por "aus�ncia de ind�cios de falha funcional por parte dos coordenadores."
A Petrobras informou, em nota, que "atua com responsabilidade social e ambiental, al�m de transpar�ncia e respeito a normas e regras vigentes em sua miss�o de transformar recursos brasileiros em riquezas."
A reportagem procurou o Ibama, mas n�o obteve nenhuma resposta ap�s duas semanas.
- Este texto foi publicado originalmente em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62429583
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