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Estado de Minas FOGO NO BARRACO

Favelas em bairros caros sofrem at� 3 vezes mais com inc�ndios, mostra estudo em S�o Paulo

Levantamento analisou dados de mais de 500 inc�ndios em favelas de S�o Paulo entre 2011 e 2016 e o valor da terra nesses locais.


23/11/2022 05:19 - atualizado 23/11/2022 12:30


Incêndio na favela de Paraisópolis, na capital paulista, em 2017
Levantamento do Insper analisou dados de mais de 500 inc�ndios em favelas de S�o Paulo entre 2011 e 2016 e o valor da terra nesses locais (foto: Rovena Rosa/Ag�ncia Brasil)

"A gente estava dormindo, com as crian�as. Come�amos a acordar no meio do fogo e foi aquele desespero. Eu tirando minha filha que tem sete meses, � uma bebezinha. N�s come�amos a gritar, n�o deu tempo de tirar nossas coisas. Perdi o botij�o de g�s, roupa da minha filha, fralda."

O relato � de Vitoria, ent�o moradora da Favela do Cimento, localizada na Mooca, zona leste de S�o Paulo. Foi colhido pelo portal Brasil de Fato em mar�o de 2019.

"Foram l�, aproveitaram que est�vamos dormindo e tocaram fogo no barraco da gente."

Em dezembro daquele mesmo ano, outra reportagem, do jornal Agora, relatava o destino do terreno: "Pra�as com jardins, canteiros e um pequeno parquinho ocupam o lugar que antes era a favela do Cimento, na Mooca (zona leste), que pegou fogo em mar�o, um dia antes da reintegra��o de posse, e onde moravam ao menos 50 fam�lias."

O caso da Favela do Cimento n�o � isolado. Frequentemente, ap�s inc�ndios em favelas nos grandes centros urbanos brasileiros, moradores levantam suspeitas de que o fogo teria sido provocado de forma criminosa, para for�ar a remo��o das fam�lias pobres do local.

Uma Comiss�o Parlamentar de Inqu�rito (CPI) instalada na C�mara dos Vereadores de S�o Paulo em 2012 chegou a investigar o tema, mas foi encerrada sem consenso, apontando em seu relat�rio final fatores como "baixa umidade, falta de chuva, sobrecarga de energia em instala��es prec�rias, uso de botij�es de g�s e de madeira nas constru��es" como causadores dos inc�ndios recorrentes.

Diante desse cen�rio, o economista Rafael Pucci decidiu investigar em seu doutorado no Insper se h� fundamentos econ�micos para a hip�tese de que parte dos inc�ndios em favelas pode estar relacionada � press�o da especula��o imobili�ria em �reas valorizadas.

Usando mapas detalhados das favelas da Prefeitura de S�o Paulo, dados de inc�ndios do Corpo de Bombeiros e estimando o valor da terra a partir da base de c�lculo do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) do munic�pio, o economista encontra que os inc�ndios s�o at� tr�s vezes mais frequentes em favelas localizadas em bairros com propriedades de maior valor.

Ainda segundo o estudo, os inc�ndios afetam mais favelas em terrenos privados do que em �reas p�blicas. E os inc�ndios em �reas valorizadas tendem a ser muito mais destrutivos do que nas demais regi�es.

Mesmo controlando para fatores estruturais, como densidade populacional, acesso a eletrodom�sticos e condi��es de infraestrutura — que poderiam justificar uma maior incid�ncia de inc�ndios acidentais —, os resultados se mostram consistentes, destaca o pesquisador.

"A import�ncia do estudo � apontar para o fato de que esses inc�ndios est�o atingindo muito mais algumas favelas do que outras. E que isso pode ter uma rela��o com direitos de propriedade e com disputa pela terra", afirma Pucci, em entrevista � BBC News Brasil.

"Dado que isso gera tantos problemas para quem vive nessas favelas, o poder p�blico precisa tomar uma iniciativa e ser mais ativo em tentar entender o que est� acontecendo de verdade, e propor solu��es que busquem evitar que isso aconte�a mais vezes."

Procurada, a Prefeitura de S�o Paulo n�o comentou os resultados do estudo, mas destacou suas pol�ticas para habita��o e atendimento a fam�lias que vivem em �reas de risco. Segundo a prefeitura, existem atualmente 1.744 favelas mapeadas na capital paulista e s�o estimados 399 mil domic�lios nesses locais.

A BBC News Brasil tamb�m procurou Ricardo Teixeira, vereador licenciado e atualmente secret�rio Municipal de Mobilidade e Tr�nsito de S�o Paulo, que presidiu a CPI dos Inc�ndios em Favelas na C�mara Municipal em 2012.

"De acordo com os depoimentos ouvidos pelos vereadores, na �poca em 2012, in�meros fatores foram respons�veis pelos inc�ndios em favelas. Podemos destacar os problemas clim�ticos e el�tricos como os principais. Em rela��o a inc�ndios criminosos por conta de uma poss�vel especula��o imobili�ria, n�o tivemos nenhuma comprova��o de que isso possa ter acontecido", disse Teixeira, em nota.

"Em 2012, pelo pouco tempo transcorrido, os vereadores membros da CPI n�o tiveram tempo de aprofundar o relat�rio e eu deixei claro ao final dos trabalhos que na legislatura seguinte fosse aprofundado o assunto, como fez o estudo do Insper", completou o vereador licenciado.

Favela Praia do Pinto, 1969

As suspeitas de motiva��o econ�mica para os inc�ndios em favela no Brasil s�o t�o antigas quanto os pr�prios inc�ndios.

Segundo Pucci, o primeiro inc�ndio em favela de que se tem registro no pa�s aconteceu em 1969, na favela Praia do Pinto, localizada no bairro nobre do Leblon, no Rio de Janeiro.


Reprodução da edição de 12 de maio de 1969 do Jornal do Brasil com imagem do incêndio na favela Praia do Pinto
Edi��o de 12 de maio de 1969 do Jornal do Brasil trouxe na capa foto e reportagem sobre o inc�ndio na favela Praia do Pinto, localizada no bairro nobre do Leblon, no Rio de Janeiro (foto: Reprodu��o/Jornal do Brasil)

"Seu despejo foi inclu�do num grande programa federal que removeu cerca de 175 mil pessoas de 62 favelas da cidade � �poca. O governo pretendia destinar a �rea para novas avenidas e habita��es de classe m�dia e alta, mas o processo de despejo come�ou de forma vagarosa em mar�o de 1969, enfrentando resist�ncia dos moradores das favelas", lembra Pucci, no estudo.

"Em maio, milhares de pessoas ainda aguardavam ser realocadas para projetos habitacionais rec�m-constru�dos em outras regi�es do Rio de Janeiro, quando um inc�ndio irrompeu durante a noite, destruindo 1 mil moradias e deixando 5 mil pessoas na rua."

A resposta do governo foi acelerar os despejos e a realoca��o dos favelados. Os moradores alegavam � �poca que o inc�ndio havia sido intencional, servindo convenientemente ao prop�sito da opera��o de despejo, relata o pesquisador.

Jornais da �poca, no entanto, relatam que o fogo teria come�ado a partir de fagulhas provenientes da queima de t�buas atr�s do campo do Flamengo, clube vizinho ao local da favela.

Mais de meio s�culo depois desse caso emblem�tico, os inc�ndios em favelas continuam sendo frequentes. Conforme o estudo do Insper, cerca de 800 inc�ndios destru�ram mais de 5 mil moradias em favelas entre 2010 e 2017 na cidade de S�o Paulo.

Al�m de tirar a vida de moradores de favela e deix�-los sem suas casas e posses, esses inc�ndios geram custos ao poder p�blico com moradia tempor�ria e ajuda financeira �s fam�lias atingidas, observa o economista.

Ao desalojar pessoas vulner�veis, sem alternativa de lugar para ir, os inc�ndios tamb�m acabam resultando no surgimento de novas favelas, ainda mais prec�rias.

Conflito pela terra nas cidades

Rafael Pucci conta que iniciou sua pesquisa em 2016, ano em que, somente at� julho, a cidade de S�o Paulo contabilizou 100 inc�ndios em favelas. Quatro anos antes, em 2012, uma CPI na C�mara dos Vereadores, com objetivo de apurar as causas e responsabilidades pela recorr�ncia dos inc�ndios em favelas, tamb�m havia colocado o tema em evid�ncia.


Manifestantes em frente à Câmara Municipal de São Paulo
Manifesta��o em frente � C�mara Municipal de S�o Paulo contra a s�rie de inc�ndios ocorridos em favelas em 2012 e com objetivo de pressionar os vereadores da CPI dos Inc�ndios a investigar as ocorr�ncias (foto: Ag�ncia Brasil)

"Por conta desse contexto, havia essa hip�tese de que os inc�ndios poderiam ser criminosos, para remover as favelas. Uma parte do meu trabalho ent�o foi tentar entender, do ponto de vista te�rico, se isso fazia sentido", diz o economista.

Pucci explica porque relaciona a quest�o dos inc�ndios em favela com os conflitos pela terra no campo.

"No campo, vemos conflitos violentos que ocorrem por conta de disputa da terra e isso est� relacionado com problemas de direito de propriedade — a terra nem sempre tem um dono muito claro, ou �s vezes tem, mas tem a quest�o do usucapi�o. Ent�o existe isso no campo e, nas cidades, em princ�pio, a quest�o das favelas tem os mesmos elementos", afirma.

Segundo dados do Corpo de Bombeiros da Pol�cia Militar do Estado de S�o Paulo, cerca de 30% dos 198 inc�ndios em favelas registrados em S�o Paulo entre 2001 e 2003 teriam origem em a��o humana intencional, conforme estudo de 2010 da pesquisadora Ana Paula Bruno (FEA-USP), citado pelo pesquisador do Insper.


Tabela mostra causas de incêndios em favelas em São Paulo
Estudo de 2010 compilou causas de 198 inc�ndios em favelas registrados em S�o Paulo entre 2001 e 2003, a partir de dados do Corpo de Bombeiros (foto: Ana Paula Bruno)

No entanto, dados do Tribunal de Justi�a de S�o Paulo (TJSP) levantados pelo economista sugerem que menos de 7% dos casos de inc�ndios ocorridos em favelas entre 2011 e 2017 chegaram a julgamento.

"H� uma dificuldade de achar a causa dos inc�ndios porque, quando as favelas pegam fogo, o fogo costuma se alastrar muito r�pido", diz Pucci, lembrando que as favelas s�o compostas de muitos materiais combust�veis, por serem muitas vezes constru�das com madeira.

"Esses inc�ndios costumam tomar grandes propor��es, o que torna mais dif�cil entender exatamente onde come�ou. Por consequ�ncia, isso dificulta o trabalho de per�cia e de identificar potenciais culpados", afirma o pesquisador, para quem esses s�o alguns dos fatores por tr�s do baixo n�mero de casos levados a julgamento.

Como o estudo foi feito

Em seu estudo, Pucci opta por analisar especificamente os inc�ndios na cidade de S�o Paulo.

Isso por uma quest�o de disponibilidade de dados e pelo padr�o de distribui��o das favelas no munic�pio, heterog�neo entre vizinhan�as com valor da terra distintos e diferentes n�veis de gentrifica��o — express�o usada para o processo de transforma��o urbana que "expulsa" moradores de baixa renda das vizinhan�as, para transform�-las em �reas mais valorizadas.

Com base em dados da prefeitura, o economista mapeia 1.727 favelas de S�o Paulo, observadas entre 2006 e 2018.


Mapa mostra a localização das 1.727 favelas de São Paulo, observadas entre 2006 e 2018, a partir de dados da prefeitura
Mapa mostra a localiza��o das 1.727 favelas de S�o Paulo, observadas entre 2006 e 2018, a partir de dados da prefeitura (foto: Rafael Pucci)

O pesquisador cruza esses dados com informa��es de todos os inc�ndios registrados em S�o Paulo pelo Corpo de Bombeiros do Estado entre 2011 e 2016, e com reportagens publicadas na imprensa sobre inc�ndios em favelas na capital paulista.

Assim, Pucci consegue mapear os inc�ndios ocorridos em favelas (551 no total neste per�odo) e tamb�m aqueles registrados em outros locais (1.231), que servem como grupo de controle.


Mapa mostra incêndios ocorridos em favelas e fora delas no município de São Paulo entre 2011 e 2016, a partir de dados do Corpo de Bombeiros
Mapa mostra inc�ndios ocorridos em favelas e fora delas no munic�pio de S�o Paulo entre 2011 e 2016, a partir de dados do Corpo de Bombeiros (foto: Rafael Pucci)

Por fim, o pesquisador combina esses dados com o valor da terra, calculado a partir dos valores estimados das propriedades formais do munic�pio na base do IPTU, cobrado pela Prefeitura.

O que ele encontra � uma concentra��o desproporcional de inc�ndios nas favelas localizadas em vizinhan�as com valor estimado da terra mais alto.


Gráfico de barras mostra número de incêndios em favelas de São Paulo por faixa de valor da vizinhança
Gr�fico mostra que inc�ndios s�o at� tr�s vezes mais frequentes em favelas com valor da terra mais alto (foto: Rafael Pucci)

"O principal resultado � que, de fato, favelas que t�m pre�o inferido mais alto do terreno parecem ter um n�mero de inc�ndios maior do que aquele que seria explicado por fatores estruturais. Ou seja, tem um n�mero ali que est� acima do que se esperaria se fosse s� acidente", diz Pucci.

"� importante deixar claro que, com esse estudo, eu n�o consigo afirmar nada em termos de intencionalidade. N�o � um estudo de criminal�stica. Mas ele mostra um aspecto peculiar na distribui��o desses inc�ndios."

No estudo, o pesquisador do Insper busca controlar a causa dos inc�ndios para outras hip�teses, como a de que eles poderiam estar relacionados a uma maior densidade populacional dessas favelas localizadas em terrenos mais valorizados; maior acesso a eletrodom�sticos, que poderiam sofrer falhas, provocando inc�ndios; ou � estrutura mais prec�ria dessas comunidades.

Usando dados do Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de geografia e Estat�stica), Pucci mapeia o acesso a infraestrutura e a densidade habitacional nas favelas. Ele observa, no entanto, que a distribui��o desses fatores � bem mais uniforme entre as diferentes faixas de valor da terra, do que a distribui��o dos inc�ndios.

"Isso sugere que a frequ�ncia anormal de inc�ndios em favelas nos maiores decis de valor das propriedades n�o s�o simplesmente uma consequ�ncia mec�nica de maior acesso � eletricidade, pior infraestrutura e maior densidade", escreve o pesquisador.

Para al�m de endere�ar a quest�o do direito de propriedade em favelas, Pucci avalia, a partir do resultado de seu estudo, que o poder p�blico deve agir de forma a evitar nova ocupa��es irregulares.

"� preciso tornar o acesso � moradia formal mais f�cil para as pessoas que acabam morando em favela. Diminuir o custo da moradia formal e tomar outras medidas que fa�am com que as pessoas n�o tenham que ocupar essas �reas e se expor a esses riscos", afirma.

"� necess�rio tornar mais acess�vel a moradia em grandes cidades como S�o Paulo."

O que diz a Prefeitura de S�o Paulo

A BBC News Brasil questionou a Prefeitura de S�o Paulo sobre como ela avalia os resultados do estudo do Insper, que sugerem que os inc�ndios em favelas podem estar relacionados ao processo de especula��o imobili�ria no munic�pio.

A prefeitura n�o respondeu a esse questionamento.

A gest�o municipal, no entanto, informou que "de 2017 at� o momento, mais de 33 mil fam�lias que viviam em �reas de risco foram beneficiadas com obras de urbaniza��o com a implanta��o de redes de �gua e de coleta de esgoto, conten��o e estabiliza��o de encostas, cria��o de �reas de lazer, pavimenta��o e abertura de ruas e vielas, entre outras interven��es".

Outras 6 mil fam�lias recebem aux�lio aluguel at� o atendimento habitacional definitivo. Ainda segundo a prefeitura, 19,5 mil moradias foram entregues entre 2017 e 2022 em parceria com os governos estadual e federal, e outras 13 mil est�o em obras.

A gest�o de Ricardo Nunes (DEM) diz ainda que recentemente publicou edital para compra de 45 mil unidades habitacionais, com investimento de R$ 8 bilh�es, com objetivo de zerar o banco de fam�lias que recebem atualmente aux�lio-aluguel.

Tamb�m citou a cria��o do programa habitacional Pode Entrar, com previs�o para produzir 14 mil moradias at� 2024 em parceria com 71 entidades.

A prefeitura n�o respondeu sobre suas pol�ticas para preven��o de inc�ndios em favelas, mas sobre o atendimento �s fam�lias atingidas informou que "as equipes da Coordena��o de Pronto Atendimento Social (CPAS) realizam atendimentos a emerg�ncias em toda a cidade mediante acionamento da Defesa Civil do Munic�pio".

"As equipes ofertam encaminhamentos para os servi�os de acolhimento da rede socioassistencial da prefeitura, distribuem itens de primeira necessidade e realizam os cadastros das pessoas atingidas, que s�o repassados aos Centros de Refer�ncia de Assist�ncia Social (Cras) da regi�o da ocorr�ncia, para que possam acompanh�-los e se poss�vel inclu�-los em benef�cios sociais."

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63721729


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