
"A gente estava dormindo, com as crian�as. Come�amos a acordar no meio do fogo e foi aquele desespero. Eu tirando minha filha que tem sete meses, � uma bebezinha. N�s come�amos a gritar, n�o deu tempo de tirar nossas coisas. Perdi o botij�o de g�s, roupa da minha filha, fralda."
O relato � de Vitoria, ent�o moradora da Favela do Cimento, localizada na Mooca, zona leste de S�o Paulo. Foi colhido pelo portal Brasil de Fato em mar�o de 2019.
"Foram l�, aproveitaram que est�vamos dormindo e tocaram fogo no barraco da gente."
Em dezembro daquele mesmo ano, outra reportagem, do jornal Agora, relatava o destino do terreno: "Pra�as com jardins, canteiros e um pequeno parquinho ocupam o lugar que antes era a favela do Cimento, na Mooca (zona leste), que pegou fogo em mar�o, um dia antes da reintegra��o de posse, e onde moravam ao menos 50 fam�lias."
O caso da Favela do Cimento n�o � isolado. Frequentemente, ap�s inc�ndios em favelas nos grandes centros urbanos brasileiros, moradores levantam suspeitas de que o fogo teria sido provocado de forma criminosa, para for�ar a remo��o das fam�lias pobres do local.Uma Comiss�o Parlamentar de Inqu�rito (CPI) instalada na C�mara dos Vereadores de S�o Paulo em 2012 chegou a investigar o tema, mas foi encerrada sem consenso, apontando em seu relat�rio final fatores como "baixa umidade, falta de chuva, sobrecarga de energia em instala��es prec�rias, uso de botij�es de g�s e de madeira nas constru��es" como causadores dos inc�ndios recorrentes.
Diante desse cen�rio, o economista Rafael Pucci decidiu investigar em seu doutorado no Insper se h� fundamentos econ�micos para a hip�tese de que parte dos inc�ndios em favelas pode estar relacionada � press�o da especula��o imobili�ria em �reas valorizadas.
Usando mapas detalhados das favelas da Prefeitura de S�o Paulo, dados de inc�ndios do Corpo de Bombeiros e estimando o valor da terra a partir da base de c�lculo do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) do munic�pio, o economista encontra que os inc�ndios s�o at� tr�s vezes mais frequentes em favelas localizadas em bairros com propriedades de maior valor.
Ainda segundo o estudo, os inc�ndios afetam mais favelas em terrenos privados do que em �reas p�blicas. E os inc�ndios em �reas valorizadas tendem a ser muito mais destrutivos do que nas demais regi�es.
Mesmo controlando para fatores estruturais, como densidade populacional, acesso a eletrodom�sticos e condi��es de infraestrutura — que poderiam justificar uma maior incid�ncia de inc�ndios acidentais —, os resultados se mostram consistentes, destaca o pesquisador.
"A import�ncia do estudo � apontar para o fato de que esses inc�ndios est�o atingindo muito mais algumas favelas do que outras. E que isso pode ter uma rela��o com direitos de propriedade e com disputa pela terra", afirma Pucci, em entrevista � BBC News Brasil.
"Dado que isso gera tantos problemas para quem vive nessas favelas, o poder p�blico precisa tomar uma iniciativa e ser mais ativo em tentar entender o que est� acontecendo de verdade, e propor solu��es que busquem evitar que isso aconte�a mais vezes."
Procurada, a Prefeitura de S�o Paulo n�o comentou os resultados do estudo, mas destacou suas pol�ticas para habita��o e atendimento a fam�lias que vivem em �reas de risco. Segundo a prefeitura, existem atualmente 1.744 favelas mapeadas na capital paulista e s�o estimados 399 mil domic�lios nesses locais.
A BBC News Brasil tamb�m procurou Ricardo Teixeira, vereador licenciado e atualmente secret�rio Municipal de Mobilidade e Tr�nsito de S�o Paulo, que presidiu a CPI dos Inc�ndios em Favelas na C�mara Municipal em 2012.
"De acordo com os depoimentos ouvidos pelos vereadores, na �poca em 2012, in�meros fatores foram respons�veis pelos inc�ndios em favelas. Podemos destacar os problemas clim�ticos e el�tricos como os principais. Em rela��o a inc�ndios criminosos por conta de uma poss�vel especula��o imobili�ria, n�o tivemos nenhuma comprova��o de que isso possa ter acontecido", disse Teixeira, em nota.
"Em 2012, pelo pouco tempo transcorrido, os vereadores membros da CPI n�o tiveram tempo de aprofundar o relat�rio e eu deixei claro ao final dos trabalhos que na legislatura seguinte fosse aprofundado o assunto, como fez o estudo do Insper", completou o vereador licenciado.
Favela Praia do Pinto, 1969
As suspeitas de motiva��o econ�mica para os inc�ndios em favela no Brasil s�o t�o antigas quanto os pr�prios inc�ndios.
Segundo Pucci, o primeiro inc�ndio em favela de que se tem registro no pa�s aconteceu em 1969, na favela Praia do Pinto, localizada no bairro nobre do Leblon, no Rio de Janeiro.

"Seu despejo foi inclu�do num grande programa federal que removeu cerca de 175 mil pessoas de 62 favelas da cidade � �poca. O governo pretendia destinar a �rea para novas avenidas e habita��es de classe m�dia e alta, mas o processo de despejo come�ou de forma vagarosa em mar�o de 1969, enfrentando resist�ncia dos moradores das favelas", lembra Pucci, no estudo.
"Em maio, milhares de pessoas ainda aguardavam ser realocadas para projetos habitacionais rec�m-constru�dos em outras regi�es do Rio de Janeiro, quando um inc�ndio irrompeu durante a noite, destruindo 1 mil moradias e deixando 5 mil pessoas na rua."
A resposta do governo foi acelerar os despejos e a realoca��o dos favelados. Os moradores alegavam � �poca que o inc�ndio havia sido intencional, servindo convenientemente ao prop�sito da opera��o de despejo, relata o pesquisador.
Jornais da �poca, no entanto, relatam que o fogo teria come�ado a partir de fagulhas provenientes da queima de t�buas atr�s do campo do Flamengo, clube vizinho ao local da favela.
Mais de meio s�culo depois desse caso emblem�tico, os inc�ndios em favelas continuam sendo frequentes. Conforme o estudo do Insper, cerca de 800 inc�ndios destru�ram mais de 5 mil moradias em favelas entre 2010 e 2017 na cidade de S�o Paulo.
Al�m de tirar a vida de moradores de favela e deix�-los sem suas casas e posses, esses inc�ndios geram custos ao poder p�blico com moradia tempor�ria e ajuda financeira �s fam�lias atingidas, observa o economista.
Ao desalojar pessoas vulner�veis, sem alternativa de lugar para ir, os inc�ndios tamb�m acabam resultando no surgimento de novas favelas, ainda mais prec�rias.
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Conflito pela terra nas cidades
Rafael Pucci conta que iniciou sua pesquisa em 2016, ano em que, somente at� julho, a cidade de S�o Paulo contabilizou 100 inc�ndios em favelas. Quatro anos antes, em 2012, uma CPI na C�mara dos Vereadores, com objetivo de apurar as causas e responsabilidades pela recorr�ncia dos inc�ndios em favelas, tamb�m havia colocado o tema em evid�ncia.

"Por conta desse contexto, havia essa hip�tese de que os inc�ndios poderiam ser criminosos, para remover as favelas. Uma parte do meu trabalho ent�o foi tentar entender, do ponto de vista te�rico, se isso fazia sentido", diz o economista.
Pucci explica porque relaciona a quest�o dos inc�ndios em favela com os conflitos pela terra no campo.
"No campo, vemos conflitos violentos que ocorrem por conta de disputa da terra e isso est� relacionado com problemas de direito de propriedade — a terra nem sempre tem um dono muito claro, ou �s vezes tem, mas tem a quest�o do usucapi�o. Ent�o existe isso no campo e, nas cidades, em princ�pio, a quest�o das favelas tem os mesmos elementos", afirma.
Segundo dados do Corpo de Bombeiros da Pol�cia Militar do Estado de S�o Paulo, cerca de 30% dos 198 inc�ndios em favelas registrados em S�o Paulo entre 2001 e 2003 teriam origem em a��o humana intencional, conforme estudo de 2010 da pesquisadora Ana Paula Bruno (FEA-USP), citado pelo pesquisador do Insper.

No entanto, dados do Tribunal de Justi�a de S�o Paulo (TJSP) levantados pelo economista sugerem que menos de 7% dos casos de inc�ndios ocorridos em favelas entre 2011 e 2017 chegaram a julgamento.
"H� uma dificuldade de achar a causa dos inc�ndios porque, quando as favelas pegam fogo, o fogo costuma se alastrar muito r�pido", diz Pucci, lembrando que as favelas s�o compostas de muitos materiais combust�veis, por serem muitas vezes constru�das com madeira.
"Esses inc�ndios costumam tomar grandes propor��es, o que torna mais dif�cil entender exatamente onde come�ou. Por consequ�ncia, isso dificulta o trabalho de per�cia e de identificar potenciais culpados", afirma o pesquisador, para quem esses s�o alguns dos fatores por tr�s do baixo n�mero de casos levados a julgamento.
Como o estudo foi feito
Em seu estudo, Pucci opta por analisar especificamente os inc�ndios na cidade de S�o Paulo.
Isso por uma quest�o de disponibilidade de dados e pelo padr�o de distribui��o das favelas no munic�pio, heterog�neo entre vizinhan�as com valor da terra distintos e diferentes n�veis de gentrifica��o — express�o usada para o processo de transforma��o urbana que "expulsa" moradores de baixa renda das vizinhan�as, para transform�-las em �reas mais valorizadas.
Com base em dados da prefeitura, o economista mapeia 1.727 favelas de S�o Paulo, observadas entre 2006 e 2018.

O pesquisador cruza esses dados com informa��es de todos os inc�ndios registrados em S�o Paulo pelo Corpo de Bombeiros do Estado entre 2011 e 2016, e com reportagens publicadas na imprensa sobre inc�ndios em favelas na capital paulista.
Assim, Pucci consegue mapear os inc�ndios ocorridos em favelas (551 no total neste per�odo) e tamb�m aqueles registrados em outros locais (1.231), que servem como grupo de controle.

Por fim, o pesquisador combina esses dados com o valor da terra, calculado a partir dos valores estimados das propriedades formais do munic�pio na base do IPTU, cobrado pela Prefeitura.
O que ele encontra � uma concentra��o desproporcional de inc�ndios nas favelas localizadas em vizinhan�as com valor estimado da terra mais alto.

"O principal resultado � que, de fato, favelas que t�m pre�o inferido mais alto do terreno parecem ter um n�mero de inc�ndios maior do que aquele que seria explicado por fatores estruturais. Ou seja, tem um n�mero ali que est� acima do que se esperaria se fosse s� acidente", diz Pucci.
"� importante deixar claro que, com esse estudo, eu n�o consigo afirmar nada em termos de intencionalidade. N�o � um estudo de criminal�stica. Mas ele mostra um aspecto peculiar na distribui��o desses inc�ndios."
No estudo, o pesquisador do Insper busca controlar a causa dos inc�ndios para outras hip�teses, como a de que eles poderiam estar relacionados a uma maior densidade populacional dessas favelas localizadas em terrenos mais valorizados; maior acesso a eletrodom�sticos, que poderiam sofrer falhas, provocando inc�ndios; ou � estrutura mais prec�ria dessas comunidades.
Usando dados do Censo de 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de geografia e Estat�stica), Pucci mapeia o acesso a infraestrutura e a densidade habitacional nas favelas. Ele observa, no entanto, que a distribui��o desses fatores � bem mais uniforme entre as diferentes faixas de valor da terra, do que a distribui��o dos inc�ndios.
"Isso sugere que a frequ�ncia anormal de inc�ndios em favelas nos maiores decis de valor das propriedades n�o s�o simplesmente uma consequ�ncia mec�nica de maior acesso � eletricidade, pior infraestrutura e maior densidade", escreve o pesquisador.
Para al�m de endere�ar a quest�o do direito de propriedade em favelas, Pucci avalia, a partir do resultado de seu estudo, que o poder p�blico deve agir de forma a evitar nova ocupa��es irregulares.
"� preciso tornar o acesso � moradia formal mais f�cil para as pessoas que acabam morando em favela. Diminuir o custo da moradia formal e tomar outras medidas que fa�am com que as pessoas n�o tenham que ocupar essas �reas e se expor a esses riscos", afirma.
"� necess�rio tornar mais acess�vel a moradia em grandes cidades como S�o Paulo."
O que diz a Prefeitura de S�o Paulo
A BBC News Brasil questionou a Prefeitura de S�o Paulo sobre como ela avalia os resultados do estudo do Insper, que sugerem que os inc�ndios em favelas podem estar relacionados ao processo de especula��o imobili�ria no munic�pio.
A prefeitura n�o respondeu a esse questionamento.
A gest�o municipal, no entanto, informou que "de 2017 at� o momento, mais de 33 mil fam�lias que viviam em �reas de risco foram beneficiadas com obras de urbaniza��o com a implanta��o de redes de �gua e de coleta de esgoto, conten��o e estabiliza��o de encostas, cria��o de �reas de lazer, pavimenta��o e abertura de ruas e vielas, entre outras interven��es".
Outras 6 mil fam�lias recebem aux�lio aluguel at� o atendimento habitacional definitivo. Ainda segundo a prefeitura, 19,5 mil moradias foram entregues entre 2017 e 2022 em parceria com os governos estadual e federal, e outras 13 mil est�o em obras.
A gest�o de Ricardo Nunes (DEM) diz ainda que recentemente publicou edital para compra de 45 mil unidades habitacionais, com investimento de R$ 8 bilh�es, com objetivo de zerar o banco de fam�lias que recebem atualmente aux�lio-aluguel.
Tamb�m citou a cria��o do programa habitacional Pode Entrar, com previs�o para produzir 14 mil moradias at� 2024 em parceria com 71 entidades.
A prefeitura n�o respondeu sobre suas pol�ticas para preven��o de inc�ndios em favelas, mas sobre o atendimento �s fam�lias atingidas informou que "as equipes da Coordena��o de Pronto Atendimento Social (CPAS) realizam atendimentos a emerg�ncias em toda a cidade mediante acionamento da Defesa Civil do Munic�pio".
"As equipes ofertam encaminhamentos para os servi�os de acolhimento da rede socioassistencial da prefeitura, distribuem itens de primeira necessidade e realizam os cadastros das pessoas atingidas, que s�o repassados aos Centros de Refer�ncia de Assist�ncia Social (Cras) da regi�o da ocorr�ncia, para que possam acompanh�-los e se poss�vel inclu�-los em benef�cios sociais."
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63721729