
Lilico, hoje conhecido como pastor William, deixou a verde e rosa porque se converteu. Na �poca, o bar S� para Quem Pode, reduto bo�mio do morro, tinha dado lugar a uma igreja batista, e os mangueirenses lamentavam a perda de integrantes para a religi�o.
O caso era o pren�ncio de um fen�meno que se expandiu com os anos. De l� para c�, os evang�licos passaram a representar cerca de um ter�o da popula��o brasileira. Os relatos de uma conviv�ncia conflituosa com festas da cultura popular se tornaram mais e mais comuns, especialmente em manifesta��es ligadas � heran�a africana.
O escritor e pesquisador Luiz Antonio Simas, por exemplo, atribui � expans�o evang�lica uma mudan�a no perfil da ala das baianas de v�rias escolas de samba, que passaram a perder integrantes para denomina��es pentecostais e neopentecostais.
A perda de baianas pode ser um problema para as agremia��es, porque, pelo regulamento dos desfiles, � necess�rio ter um n�mero m�nimo delas na avenida.
"As escolas abriram espa�o para pessoas que desfilavam em outras alas, at� para pessoas de fora da comunidade", afirma Simas. "N�o tinha mais como fazer s� com pessoas da comunidade. Se hoje voc� pega o Salgueiro achando que vai achar s� as velhas do morro, n�o vai de jeito nenhum."
O escritor lembra que as escolas tamb�m expandiram o n�mero de baianas mais jovens.
"Em algumas escolas, come�aram a trazer baianas de fora. Na Intendente Magalh�es foi um neg�cio devastador. A Acad�micos da Rocinha perdia pontos por n�o conseguir o n�mero m�nimo de baianas necess�rio."
No Carnaval de Pernambuco, a quest�o � o maracatu. Ao longo dos anos, surgiram grupos evang�licos que se apresentam pelo Recife.
"� um grande desrespeito. S�o v�rios grupos que tocam maracatu para tirar o pessoal que gosta de tocar. Mas maracatu � o candombl� na rua", diz o mestre Chacon Viana, do maracatu Porto Rico, que tamb�m � babalorix�.
O maracatu n�o � apenas um g�nero musical ou um mero cortejo. A tradi��o tem fundamentos religiosos, com liga��es seja com o culto aos orix�s ou com os caboclos da jurema. � comum que os grupos mais tradicionais estejam ligados a uma casa de santo.

"Acontece de perdermos integrantes", afirma mestre Chacon. "No Porto Rico tinha uma menina que nasceu dentro do maracatu, toda a fam�lia [dela] cresceu. De repente, ela se converteu e tirou todo mundo."
Chacon atribui os ataques n�o s� � intoler�ncia religiosa, mas ao racismo. "Eu n�o posso chegar em um �nibus e come�ar a cantar m�sica do meu terreiro. Mas eles podem. Vivemos na defensiva toda hora", afirma.
Os conflitos religiosos chegaram mesmo a afetar o dia a dia de um s�mbolo tipicamente brasileiro: os tabuleiros das baianas de acaraj�.
O of�cio dessas profissionais foi registrado como patrim�nio cultural do pa�s em 2004 pelo Iphan (Instituto do Patrim�nio Hist�rico e Art�stico Nacional). O registro leva em conta mais do que o acaraj� ou a pr�pria baiana: ele inclui ainda as formas de preparo das comidas, as roupas, o preparo dos tabuleiros etc.
Isso n�o impediu que algumas baianas convertidas a igrejas evang�licas se recusassem a usar os trajes t�picos –ou mesmo uma tentativa, hoje derrotada, de rebatizar o acaraj� como "bolinho de Jesus".
A guerra do acaraj� levou a uma a��o do poder p�blico. Em 2015, a Prefeitura de Salvador publicou um decreto que obriga as donas de tabuleiro a usar as vestimentas.
"Temos conseguido, aos poucos, ir conversando. Temos baianas de acaraj� evang�licas que se vestem direitinho. Com outras, mais radicais, tento explicar que a cultura � essa, que a roupa � como uma farda", diz Rita Santos, presidente da Associa��o Nacional de Baianas de Acaraj� e de Mingau.
"Na avenida Sete de Setembro, elas n�o vestem a roupa, querem colocar a b�blia em cima do tabuleiro… a� eu bato em cima, chamo a vigil�ncia sanit�ria."
Incomoda aos evang�licos o fato de, no candombl�, o acaraj� ser ligado a Ians�. Por isso, medidas como colocar a b�blia ou �leo ungido sobre o tabuleiro s�o uma tentativa de dessacralizar aquele alimento –mesmo fora de um contexto religioso.
Para esfriar os �nimos com grupos evang�licos, h� quem tente defender que o acaraj� � apenas uma comida, sem rela��o religiosa fora dos terreiros.
"Mas, para as baianas que n�o s�o evang�licas, o acaraj� ser visto como qualquer comida tamb�m n�o � bom, porque elas s�o herdeiras de Ians�", afirma a antrop�loga D�bora Sim�es. "N�o d� para comparar com um hamb�rguer. � algo que tem uma hist�ria, uma origem que � negra e precisa ser valorizada."
Para o pesquisador Luiz Antonio Simas, o avan�o evang�lico tem gerado rea��es em comunidades ligadas a essas manifesta��es culturais –como as escolas de samba. Um exemplo � o fortalecimento de enredos de temas afro-brasileiros, algo que foi forte nos anos 1990 e no come�o dos 2000, mas que vinha se esvaziando.
"No ano passado, a Grande Rio venceu o Carnaval falando de Exu", lembra Simas.
O mesmo se repete em 2023. Imp�rio Serrano e Grande Rio, por exemplo, levaram � avenida neste domingo (19) enredos sobre Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho, mas com sambas que faziam refer�ncia � cultura de terreiro na trajet�ria dos dois.
Nesta segunda-feira (20), a Para�so do Tuiuti falou dos b�falos da Ilha de Maraj�, mas relacionando os animais aos mitos de Ians�.