Saulo Krieger
Fil�sofo graduado pela USP, doutor pela Unifesp,
bolsista Capes na Universit� de Reims, na Fran�a
Outro dia me perguntaram se ainda veneramos �dolos ocos – receio dizer, tudo indica que o faremos ainda por muito tempo. Pergunta e resposta tiveram no horizonte a reflex�o de Nietzsche, autor, justamente, de uma obra – dentre tantas obras – intitulada Crep�sculo dos �dolos.
Sim, n�s cultivamos �dolos ocos porque acreditamos na fixidez das coisas que n�s pr�prios, por nossa necessidade (de sobreviv�ncia) imaginamos como identidades. Segundo cremos, essas coisas encontram-se tal e qual fora de n�s, correspondem � impress�o enrijecida que fazemos delas e n�o mudam nem podem ser vistas sempre de novas perspectivas. Esse "modo de ver" remete � constitui��o de nosso intelecto – que torna as coisas im�veis, r�gidas, id�nticas, e como tais s�o proje��es de nossas pr�prias necessidades.
Mas pode-se ir al�m: essa maneira de perceber o mundo � o que garante a sobreviv�ncia das estruturas animais mais rudimentares, mesmo dos seres protocelulares: est�mulos variados, apenas semelhantes, eles os interpretam como iguais a si mesmos, persistentes no tempo e como lhes sendo externos – projetam identidades onde n�o h�. Se n�o o fizessem, por�m, fossem mais rigorosos ou cuidadosos ao interpretar suas impress�es, pereceriam. Assim proceder� o entendimento em toda a escala dos animais; no caso do homem a diferen�a sendo apenas de grau: com o advento da linguagem verbal articulada, esse modo de raciocinar, biol�gico, ganhou em amplitude e abstra��o.
O problema do homem � que ele se imagina racional, quando � escravo de sua cren�a em entes exteriores, fixos, dados de uma vez por todas, que na verdade s�o ricocheteios de suas pr�prias fragilidades. A come�ar pela cren�a em Deus, mas tamb�m por nossa cren�a na verdade (fruto de nossas proje��es), no sujeito, no eu (seriam cren�as funcionais, n�o que essas forma��es existam em �ltima inst�ncia), pela cren�a na alma como cerne �ltimo, imortal e indecompon�vel, na liberdade e nas institui��es democr�ticas como algo pronto, pelo qual n�o se precise lutar. Isso valer� para os monarcas por direito divino, como para l�deres pol�ticos, deposit�rios de exageradas esperan�as, emiss�rios de nossas responsabilidades transferidas: "ele vai resolver", "ele vai dar um jeito", "vai acabar com a corrup��o".
Nietzsche, por�m, n�o � t�o-s� o demolidor, e seria um erro consider�-lo unicamente por essa via. A via � sempre de m�o dupla: ele prop�e que somos uma configura��o tempor�ria e hierarquizada de impulsos (processos semelhantes aos instintos, por�m mais profundos), que o homem se redime pelo fazer art�stico (que n�o est� apenas nas obras de arte, mas sobretudo em nossas viv�ncias), que as institui��es pol�ticas s� t�m valor, legitimidade e vi�o quando marcadas pela tens�o constante – e estruturante – entre interesses em conflito. Tais institui��es – sim, devemos pensar em democracia, liberdade, Justi�a, partidos pol�ticos – valem se n�o acreditarmos que as coisas s�o dadas de antem�o, tendo de ser a todo o tempo conquistadas, em ag�nico movimento de luta. Tudo se passa como se dev�ssemos viver em sociedade com o mesmo t�nus vital aflorado, calcado na luta que se tem no estado de natureza. N�o se trata de viver feito bicho. Pela arte o homem o conseguiria. Mostrar como isso � poss�vel demandaria todo um percurso te�rico; pode-se adiantar, por�m, que tal percurso desaguaria num fazer art�stico calcado em vigorosa cultura.
Voltando agora, precisamente, � quest�o dos "�dolos ocos", sejam eles pol�ticos, sejam religiosos. Todos os �dolos s�o ocos se acreditarmos que s�o mesmo �dolos, inst�ncias fora de n�s. Podemos lan�ar m�o dessas figuras, mas cientes de que s�o constru��es nossas. Devemos cri�-los e destru�-los quando convier, o criar sendo an�logo ao criar art�stico, e o fazer, o do desapego, com a leveza de uma crian�a que destr�i o castelo que acabou de construir. O crer e adorar pode ser oco, mas o criar nunca �. S� cultura e arte salvam.
