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Um poeta que n�o sabia

Uma das maiores caracter�sticas da grande literatura sempre foi o destemor em revelar com sutileza art�stica os rec�nditos da natureza humana


16/01/2021 04:00

Jo�o Dewet Moreira de Carvalho
Engenheiro-agr�nomo 
 
pedagogia na hist�ria tem desempenhado papel insubstitu�vel e de imenso valor no progresso de todas as sociedades. Contudo, no uso do imenso cabedal de conhecimento acumulado na hist�ria, como elemento pedag�gico e construtor dos alicerces do futuro cidad�o, um fato constrangedor e pertinente � natureza humana tem sido omitido no ensino aos infantes. Isso, devido a certo desconforto provocado. Ao ponto de quase nenhum pedagogo ter coragem de lhe fazer refer�ncia. Pois � considerado tabu. E, como tal, deve ser evitado.
 
No entanto, tal limita��o � para a arte liter�ria uma das mais preciosas mat�rias-primas. Afinal, � do conhecimento geral que uma das maiores caracter�sticas da grande literatura sempre foi o destemor em revelar com sutileza art�stica os rec�nditos da natureza humana e suas manifesta��es. Raz�o pela qual um dos seus maiores representantes, o perspicaz Shakespeare, sem nenhum receio do poder dos totalit�rios governantes de sua �poca, se referir � vida humana, repetidas vezes, chamando-a de um grande teatro: "O mundo inteiro � um palco. E todos, homens e mulheres, n�o passam de meros atores". Ali�s, � precisamente no tablado dos subterr�neos da pol�tica que os holofotes mais evidenciam com suas poderosas luzes tal procedimento question�vel. Ou seja, a falsidade teatral dos corruptos manipuladores.
 
  Por isso, ainda que de modo tosco e distante do brilho das pe�as do grande teatr�logo, relembro uma est�ria, cujo tema era semelhante ao do bardo ingl�s. Ela era repetida nas antigas noites de fogueira, quando o povo matuto da ro�a, com suas m�os calosas e o corpo exausto, mas com a mente �vida por saber, ainda se reunia, relembrando, atrav�s dos in�meros causos, fatos da vida. O principal objetivo era, atrav�s do ato milenar da oralidade, manter todos os seus ouvintes sempre com os p�s bem firmes no ch�o e evitando problemas com os poderosos do momento. Por isso, eles, diante do medo dos fragilizados e explorados que lhes assombravam as almas, viviam repetindo: a vida � t�o somente a dura realidade da batalha di�ria, n�o a ilus�o presente nos leves sonhos dos poetas. 
 
  O causo era assim: certo viajante, ao chegar em um pa�s distante, viu uma fila comprida de pessoas saindo de um recinto a dobrar o quarteir�o. Pensou logo ser uma fila para assistir a algum jogo de futebol. Resolveu verificar. No entanto, para sua surpresa, foi informado, por um dos que estavam na rabeira, de que a fila era o povo sendo roubado. E, apontando com um dos dedos, mostrou-lhe alguns funcion�rios, dentro do recinto, extorquindo o dinheiro de todos sob falsas promessas nacionalistas de que o dinheiro seria usado para o benef�cio do pr�prio povo e engrandecimento da na��o. Mas que todos sabiam ser apenas palavras enganosas a fim de, na verdade, bancar as infind�veis mordomias amorais e indecorosos privil�gios das suas corpora��es. E, isso tudo, enquanto a maior parte da popula��o vivia em extrema pen�ria e aus�ncia persistente de emprego. 
 
  Indignado, o viajante,  questionou: "Fila para ser roubado! S�rio? Nunca vi nada igual! E voc�s aceitam essa situa��o aviltante passivamente? N�o fazem nada para impedir tudo isso?". O conformado cidad�o da rabeira da fila olhou espantado para o exaltado viajante e lhe respondeu: "Pelo visto, o senhor n�o � da �rea e n�o conhece como as coisas funcionam por aqui!". Rindo, continuou: "Volta e meia aparece algu�m rosnando indigna��o diante da nossa situa��o de povo saqueado, oprimido e desiludido da vida. Conversam sobre esse papo de mudan�as, de injusti�as e tantas outras coisas. �s vezes, at� ocorre de um ou outro conseguir inflamar o povo e, ap�s muito esfor�o, trocar a dire��o do pa�s. Mas sabe qual � o resultado? Nenhum! Na verdade, a �nica mudan�a que realmente sempre ocorre � a troca do grupo explorador! Tirando isso, continua tudo como sempre foi!". Olhando preocupado se algu�m ouvia a conversa, falou baixinho: "Ali�s, de uns tempos para c�, a vigil�ncia e a trucul�ncia dos �ltimos que se passaram por indignados e se apossaram do poder aumentaram bastante. Portanto, recomendo cautela ao senhor. Caso contr�rio, logo vai chegar o fiscal da vigil�ncia para saber o porqu� dos seus questionamentos".
 
  N�o se passaram segundos, um brutamontes surgiu como um fantasma e, se aproximando do viajante, com ar amea�ador, o interpelou: "Ouvi sua conversa fiada de indigna��o. Conhe�o bem esse papo e sei qual � sua real inten��o! Voc� est� querendo � atrapalhar nosso neg�cio! Ou�a com aten��o o que vou lhe dizer, seu maritaca! Das duas, uma. Ou voc� sai de fininho e segue sua viagem. Ou vai em breve visitar S�o Pedro. Qual escolhe?". Diante da inesperada recusa do viajante de se intimidar, mas que, em vez disso, passou a desferir uma energ�tica saraivada de argumentos e improp�rios contra o governo local, o brutamontes ficou completamente desorientado. E o que havia come�ado como mais uma rotineira cena de linchamento acabou virando uma hil�ria pe�a teatral, motivo do riso contido de todos que se encontravam ao redor.
 
  Diante do ineditismo da cena, imediatamente, o chefe da vigil�ncia, que observava tudo a dist�ncia, entrou em a��o. Diferenciando do malvestido brutamontes, ele era um cavalheiro em um bel�ssimo terno. Logo, com um leve gesto despachou o gorila, e aproximando-se sorridente, ap�s abra�ar o contestador viajante e lhe pedir encarecidas desculpas, passou a lhe dirigir sedutores elogios: "Percebi pelos belos argumentos apresentados pelo nobil�ssimo colega que, al�m de inteligente, o senhor � um corajoso idealista sonhador. Justamente o tipo que sempre procuramos para incorporar � nossa equipe. Portanto, n�o se acanhe com a proposta que vou lhe fazer, pois precisamos dos seus predicados para a vit�ria da nossa causa contra os advers�rios do nosso sofrido povo. Ent�o, que me diz, gostaria de fazer parte do nosso time?". Encabulado com tamanho atrevimento e tentativa de coopta��o, o indignado viajor retrucou asperamente: "Mas de que tipo de ra�a voc�s me julgam ser?". Ent�o, o ardiloso conciliador replicou: "Da mesma ra�a que a nossa, ora essa!". E piscando para o viajante, com um sorriso triunfal no rosto, arrematou: "De qual outra ra�a poderia ser?".
 
Naqueles tempos antigos, em que todos costumavam se assentar ao redor da fogueira, havia um inconformado velhinho caipira que ao fim desse causo, sempre segurando seu cigarrinho de palha, cuspindo de lado e meneando a cabe�a, questionava: "Mas ser� que tem que ser sempre assim? Ser� que nossa sina � apenas trabalhar de sol a sol para no fim sermos roubados? Ser� que n�o tem um jeito de mudar tudo isso?". Todas as vezes, seus olhinhos brilhavam. Como s� os olhos dos sonhadores inconformados diante dos horrores da vida costumam brilhar. Pois, apesar de centen�rio, ainda sonhava como uma crian�a. Na verdade, ele era um poeta, mas n�o sabia! 
 
 


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