Como se coloca, na obra de Drummond, a rela��o entre o universal e o particular?
Em Minas Gerais, a natureza e a cultura est�o muito entranhadas uma na outra, o cerrado ganha uma dimens�o metaf�sica. As minas e as montanhas, em Drummond, ganham tamb�m uma dimens�o metaf�sica. Esses grandes escritores – um � o maior prosador brasileiro do s�culo 20 e o outro � o maior poeta brasileiro do s�culo 20 – conversam com as montanhas, mesmo sem falar. Vemos isso no conto O recado do morro, de Guimar�es Rosa, em que a montanha fala. Em A m�quina do mundo, de Drummond, a montanha tamb�m fala. Isso � significativo pelo fato de que a experi�ncia – coletiva, imemorial e social – est� profundamente ligada a um embate, a um corpo a corpo, e � imagina��o da terra. Em Guimar�es Rosa, a biodiversidade do cerrado, o terreno de calc�rio muito perme�vel, os morros s�o todos vazados por grutas, rios subterr�neos, o que faz a obra dele explorar uma “biodiversidade lingu�stica”, vocabular e, ao mesmo tempo, uma explora��o dos recados da pr�pria natureza e, em �ltima an�lise, da “terceira margem do rio”. Em Drummond, � a pr�pria dureza mineral, o embate com o obst�culo, com a pedra no meio do caminho, que est� para Drummond como a “terceira margem do rio” est� para Guimar�es Rosa. O Morro da Gar�a, de O recado do morro, est� como o Pico do Cau� para Drummond.
A montanha, no caso da literatura mineira, � sempre presente, n�o �?
Neste momento dessa hecatombe, dessas trag�dias mineiras a que estamos assistindo, essa devasta��o, essas trag�dias anunciadas, porque est�o praticamente no programa, pode-se dizer, de uma explora��o mineral cega, est�o no resultado que vemos em Minas. A hist�ria da minera��o criou no territ�rio de Minas Gerais uma s�rie de castelos de cartas, que s�o essas montanhas de rejeitos. Isso est� arriscado, como todo castelo de cartas, a cair, a tombar. Os laudos n�o dizem isso porque os laudos s�o cegos para isso, como disse o laudo alegado pelo presidente da Vale, porque est� presente, no modo de atuar, uma busca sem limites de acumular, de explora��o, de quantidade sem limites, de resultados e de lucros que n�o considera o modo como aquilo est� em rela��o com o ambiente, com os modos de vida e com o social. E h� o fato de que, em Minas, existem esses modos de vida, singelos, rurais, simples, como em Bento Rodrigues, como nessas cercanias de Brumadinho. E � chocante o modo como a viol�ncia dos rejeitos acumulados caem sobre esse mundo singelo, que guarda uma esp�cie de pureza, que todos n�s que n�o somos de Minas, reconhecemos em Minas Gerais. Est� no jeito de falar, na m�sica da fala, no jeito de se expressar, nos modos de sociabilidade, de conviv�ncia, de acolhida. Isso n�o est� conivente com tudo isso que � t�o comovente. Ent�o, � isto que vem abaixo e � soterrado pela imprevid�ncia, pela voracidade hist�rica pela qual a minera��o se implantou nesse territ�rio riqu�ssimo de jazidas. Essas coisas falam, como se fosse um recado.
Drummond manteve uma postura cr�tica muito clara em rela��o � Vale. Como v� essa rela��o do poeta com a pol�tica?
Nos anos 1950 – e em artigos posteriores –, ele tentou alterar e influenciar a pol�tica da Vale, que ele achava que era uma pol�tica danosa e de consequ�ncias nefastas, e que a companhia fazia de uma maneira desigual, crescendo exponencialmente com a explora��o do ferro a partir de Itabira e, ao mesmo tempo em que a regi�o n�o tinha uma contrapartida � altura, como se fosse lan�ada � pr�pria sorte atrav�s de um progresso, mas que, na verdade, � um crescimento desordenado de uma extraordin�ria feiura, que � o correspondente do quanto h� ali de devasta��o f�sica e socioambiental. Ele dizia, portanto, que a Vale n�o se responsabilizava pelos males que causava e que desconversava sempre quando interpelada, no que ele chamava de “com�dia embromat�ria”. Essa � uma afirma��o importante porque essa embroma��o atravessa as d�cadas. E mesmo depois de Mariana, no sentido de assumir plenamente as consequ�ncias dessa enorme trag�dia socioambiental que provocou, n�s sabemos o quanto h� uma embroma��o na resposta a isso. Agora, Brumadinho, com seu enorme custo humano, fala de uma maneira muito mais gritante e repetida sobre isso. E a pergunta � como vai continuar agora o expediente da “com�dia embromat�ria” diante dessa trag�dia.
Como � a rela��o de Drummond com a mem�ria que guardou de Itabira?
Curiosamente, em Itabira espalhou-se a vers�o de que Drummond era indiferente e avesso em rela��o � sua pr�pria cidade. Isso � de uma crueldade terr�vel porque n�o h� na literatura brasileira um poeta cuja obra – do come�o ao fim – esteja mais ligada � sua terra. � uma rela��o umbilical insepar�vel com a mem�ria de Itabira. Na verdade, essa m� fama de Drummond em Itabira est� ligada �s cr�ticas que ele fez � Vale, ou que ele seria contra o progresso. Mas agora o progresso se apresenta com essa resposta catastr�fica, que vem atrav�s dos tempos evidenciando quest�es e problemas que Drummond colocava h� mais de 60 anos. Existe uma liga��o sentimental profunda com a mem�ria da cidade, mas tamb�m com modos de vida que se perderam e foram destru�dos, sem que o “progresso” trouxesse para a cidade um aporte econ�mico e uma nova vida cultural. Ele � cr�tico desta concep��o de progresso.
Criando uma hip�tese, como acha que o poeta reagiria diante desta trag�dia?
N�o temos como responder a isso. Acho que, em vez de pensar como o poeta reagiria, n�s � que temos que reagir lendo o poeta porque, de certo modo, tudo est� dito nos poemas. Cabe a n�s ler A m�quina do mundo, que no livro Claro enigma � seguido de Rel�gio do Ros�rio, que � um dos mais belos poemas sobre a dor de existir, como uma dor coletiva. Temos que ler E agora, Jos�?, que � um poema crucial para o momento que estamos vivendo. Temos que estar � altura da arte que se produziu no Brasil e em Minas Gerais, que � uma reserva humana que temos para responder a estas situa��es terr�veis que estamos vivendo. A pol�tica n�o vai para frente se n�o incorporarmos a cultura.
LITERATURA
"Em A m�quina do mundo, de Drummond, a montanha tamb�m fala"
Leia entrevista de Jos� Miguel Wisnik, autor de 'Maquina��o do mundo -- Drummond e a minera��o'