(none) || (none)
UAI

Continue lendo os seus conte�dos favoritos.

Assine o Estado de Minas.

price

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Utilizamos tecnologia e seguran�a do Google para fazer a assinatura.

Assine agora o Estado de Minas por R$ 9,90/m�s. ASSINE AGORA >>

Publicidade

Estado de Minas

Inferno gelado

Livro-reportagem de Anton Tch�khov, um dos maiores escritores russos, denuncia todos os horrores da fria ilha de Sacalina, transformada em pres�dio pelo regime czarista durante o s�culo 19


postado em 15/03/2019 05:08

Anton Tch�khov (1860-1904) � um dos gigantes da literatura russa, ao lado de Doisto�vski, T�lstoi, Pushkin, Gogol e G�rki. Sua obra n�o � t�o volumosa como a dos autores de Crime e castigo e Guerra e paz. Pelo contr�rio, ele se notabilizou por escrever centenas de pequenos contos e pe�as teatrais memor�veis, como Tio V�nia, A gaivota e O jardim das cerejeiras. Uma obra inusitada e pouca conhecida dele chega ao mercado editorial brasileiro. A ilha de Sacalina, escrito em 1895, revela outra verve do escritor, desta vez para mostrar os horrores da ilha-pris�o de Sacalina, no extremo oriente do planeta.

Durante seu tempo na faculdade de medicina, Tch�khov come�ou a escrever contos humor�sticos para jornais e revistas. Era uma forma de ganhar dinheiro para ajudar a fam�lia pobre, que morava num por�o numa rua cheia de prost�bulos na capital russa. O av� de Tch�khov foi servo e o pai era um pequeno comerciante que fugiu de sua cidade, Taganrog, onde o escritor nasceu, para Moscou, para n�o ser preso por d�vidas.

Em abril de 1890, entretanto, aos 30 anos, o jovem escritor surpreendeu a fam�lia e os amigos ao anunciar uma penosa e custosa viagem � ilha distante, no Pac�fico, ao Norte do Jap�o. A viagem impressionava porque seria de 9 mil quil�metros a partir de Moscou, atravessando sete fusos hor�rios – nos padr�es de hoje. Foram tr�s meses de viagem pelas vastid�es agrestes da R�ssia siberiana, um inferno gelado, cercado de �gua, frio, gelo e muita desumanidade. Tch�khov leu 65 obras sobre Sacalina e comprou muitos mapas. Partiu de Moscou em 19 de abril de 1890 e levou tr�s meses para chegar, depois de viajar de trem, de coche, de balsa e a p�. Foi uma verdadeira aventura de autoprova��o. E acabou sendo mais complicada ainda porque Tch�khov j� havia sido diagnosticado com tuberculose, que o mataria aos 44 anos.

Como explicar tamanha aventura em condi��es t�o adversas? A ilha de Sacalina era uma das fronteiras orientais da expans�o colonial da Imp�rio Russo comandado pelo czar Nicolau II. Ali foi implantada uma grande col�nia agr�cola e penal de deportados de todo o imp�rio. Fran�a e R�ssia tamb�m faziam isso, povoavam col�nias com condenados a trabalhos for�ados. Como m�dico, Tch�khov queria fazer um recenseamento da popula��o deportada, destacando as condi��es sanit�ria, higi�nica, nutricionais e m�dicas. Mas sua boa inten��o e atitude cient�fica esmoreceram diante do cen�rio de abandono que encontrou, principalmente castigos cru�is, prostitui��o em massa e crime de todo tipo. Nos confins do planeta, de forma ultrajante, viviam os esquecidos e os proscritos do regime czarista.

Com o aval do regime russo, Tch�khov teve permiss�o para vasculhar as pequenas cidades isoladas e seus alojamentos de deportados. Depois que cumpriam suas penas, os deportados viravam colonos, recebiam indultos do czar e pequenas propriedades, mas n�o podiam voltar para sua terra natal. Muitos eram acompanhados de mulheres e filhos, mas essa ‘bondade’ do regime n�o representava necessariamente melhoria da qualidade de vida dos deportados.

O maior problema � que a maioria da popula��o na regi�o n�o conseguia sobreviver sem ajuda do governo. “Ali, como na R�ssia, em situa��es semelhantes, se revela a lament�vel ignor�ncia dos mujiques (camponeses): n�o pediam escolas, tribunais, sal�rios, mas v�rias bobagens: um queria um subs�dio do governo, outra queria adotar uma crian�a. (…) Quando a pobreza era clamorosa, para ir de um povoado a outro havia uma trilha aberta no mato pelos passos das mulheres livres e for�adas que caminhavam para as pris�es pr�ximas para vender-se aos presos em troca de umas poucas moedinhas de bronze”, relata Tch�khov em uma de suas andan�as pela ilha.

O livro foi escrito entre 1891 e 1894. A grande repercuss�o da obra foi uma das raz�es que levaram ao fim do regime prisional absurdo ap�s o lan�amento do livro. Embora n�o seja uma leitura fluente do in�cio ao fim, por causa do detalhamento excessivo de ambientes, a obra � um livro-reportagem que est� entre os relatos mais impressionantes da literatura.



A ILHA DE SACALINA
Anton Tch�khov
461 p�ginas
Tradu��o: Rubens Figueiredo
Editora Todavia
R$ 51,90
R$ 51,03

TRECHO DO LIVRO

“Pelo que contam os prisioneiros, esse velho matou sessenta pessoas ao longo da vida; parece que seu m�todo era o seguinte: observava os prisioneiros novatos, descobria quais deles eram um pouco mais ricos e os persuadia a fugir junto com ele; depois, na taiga, matava e roubava o parceiro e, a fim de ocultar os vest�gios do crime, retalhava o cad�ver em peda�os e jogava no rio. Na �ltima vez que o pegaram, brandiu um porrete contra os guardas. Ao observar seus olhos atormentados e met�licos e seu cr�nio grande, raspado pela metade e anguloso como uma pedra de cal�amento, me senti disposto a acreditar em todas aquelas hist�rias. (…) Sobre a cama est� sentada a Meretriz da Babil�nia, a pr�pria dona da casa. Luk�ria Nepomi�chaia, descabelada, muito magra, sardenta; ela se esfor�a para responder �s minhas perguntas. Seus olhos s�o feios, turvos e, pelo rosto chupado, ap�tico, posso avaliar quantas pris�es, doen�as e locais de repouso nos transportes de presos que ela havia suportado em sua exist�ncia t�o curta. Essa Luk�ria � quem d� o tom de vida geral da isb� (casa de madeira), mas � gra�as a ela que todo o ambiente inspira a sensa��o de uma vadiagem desenfreada e vertiginosa”.


Mestre em quadrinhos

Tch�khov e sua genialidade para contar hist�rias de pessoas e suas idiosssincrasias, explorar temas comuns, o cotidiano de mesquinharia da condi��o humana, tamb�m chegou aos quadrinhos. Os contos Aniuta, O investigador, A revela��o, O infrator e a aposta est�o em Contos de Tch�khov, da editora Escala Educacional, produzidos pelo adaptador e roteirista Ronaldo Antonelli e pelo ilustrador, roteirista e quadrinista Vilach�. No conto A aposta (ao lado), durante discuss�o  sobre pena de morte e pris�o perp�tua, um advogado desafia um banqueiro a dar sua fortuna a ele se aguentar nada menos do que 15 anos na pris�o. O banqueiro aceita, e o desfecho
� surpreendente.

A PALERMA


Anton Tchekhov � um dos maiores contistas da literatura universal. Desde jovem, ainda estudante de medicina, come�ou a escrever pequenos contos de humor para jornais. Publicou centenas e, com tanto talento, ganhou notoriedade. A seguir, um desses pequenos contos bem ao seu estilo, chamado A palerma. Escrito em 19 de fevereiro de 1893, guardadas as circunst�ncias, continua atual�ssimo ao falar do car�ter humano. O conto integra a obra A corista & outras hist�rias, lan�ada pela L&PM, com tradu��o de Maria Aparecida Botelho Pereira e Tatiana Belinky.

“Dias atr�s mandei chamar a governanta dos meus filhos, J�lia Vass�lievna, ao meu gabinete. Precis�vamos acertar as contas.

– Sente-se, J�lia Vass�lievna! – eu disse. – Vamos acertar nossas contas. A senhora provavelmente necessita de dinheiro, mas tem cerim�nia demais para pedir... Vamos l�... N�s combinamos trinta rublos por m�s...

– Quarenta...

– N�o, trinta... Eu tenho aqui escrito... Eu sempre paguei trinta para as governantas... Ent�o, a senhora ficou aqui dois meses...

– Dois meses e cinco dias...

– Dois meses exatos... Eu tenho aqui anotado. Portanto, a senhora tem a receber sessenta rublos... Temos que descontar nove domingos... pois a senhora n�o estudou com K�lia nos domingos, somente passearam... e houve ainda tr�s feriados...

J�lia Vass�lievna ficou vermelha e come�ou a repuxar os babadinhos de sua roupa, mas n�o disse uma s� palavra...

– Tr�s feriados... Consequentemente, vamos tirar doze rublos... Durante quatro dias K�lia ficou doente e n�o teve aulas... A senhora estudou s� com V�ria... Tr�s dias a senhora teve dor de dente e minha esposa permitiu que a senhora n�o desse aula depois do almo�o... Doze mais sete – dezenove. Subtraindo restam... hum... 41 rublos. Certo?

O olho esquerdo de J�lia Vass�lievna ficou vermelho e cheio d’�gua. Seu queixo tremeu. Ela deu uma tossida nervosa, assoou o nariz, mas – nem uma palavra?

– Na v�spera de ano-novo a senhora quebrou uma x�cara de ch� e um pires. Vamos tirar dois rublos... A x�cara custa mais do que isso, era heran�a da fam�lia, mas... deixa pra l�! N�o vamos fazer quest�o disso! Adiante: devido � sua falta de aten��o, K�lia subiu numa �rvore e rasgou seu casaquinho. Vamos tirar dez... A arrumadeira, tamb�m devido � sua falta de aten��o, roubou umas botinas de V�ria. A senhora deveria cuidar de tudo. � para isso que recebe sal�rio. Ent�o, vamos tirar mais cinco... No dia sete de janeiro a senhora pegou adiantado comigo dez rublos...

– Eu n�o peguei!, sussurrou J�lia Vass�lievna.

– Mas eu tenho aqui anotado!

– Ent�o, est� bem... Que seja.

– De 41 vamos subtrair 27 – restam catorze.

Os dois olhos de J�lia Vass�lievna encheram-se de l�grimas... No seu belo e alongado narizinho apareceram gotas de suor. Pobre menina!

– Eu s� peguei uma vez, disse ela com voz tr�mula. - Peguei com a sua esposa tr�s rublos... N�o peguei mais...

– � mesmo? Ora, isso n�o est� anotado! Tirando tr�s de catorze, sobram onze... Aqui est� o seu dinheiro, car�ssima! Tr�s... tr�s... um... um... Tenha a bondade de receber!

E lhe entreguei onze rublos... Ela pegou o dinheiro e com os dedinhos tremendo meteu-o no bolso.

– Merci, sussurrou ela.

Levantei-me de um salto e comecei a caminhar pelo gabinete. Estava indignado.

– Merci por qu�?, perguntei.

– Pelo dinheiro...

– Mas eu a roubei, com os diabos, eu a assaltei! Acabei de roub�-la! Por que merci?

– Nos outros lugares eles n�o pagavam nada...

– N�o pagavam? Ent�o n�o � de se estranhar! Eu estava brincando com a senhora, estava lhe dando uma li��o cruel... Vou lhe pagar todos os oitenta rublos! Est�o aqui preparados, neste envelope! Mas � poss�vel ser assim t�o pateta? Por que a senhora n�o protesta? Por que fica calada? Ser� que neste mundo � poss�vel n�o ser atrevido? � poss�vel ser t�o palerma?

Ela deu um sorriso azedo e eu li no seu rosto: “� poss�vel!”.

Pedi desculpas pela cruel li��o e, para sua grande surpresa, entreguei-lhe todos os oitenta rublos. Ela disse um merci t�mido... Fiquei olhando quando ela se afastava e pensei: “Como � f�cil ser poderoso neste mundo!”.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)