(de “Risque esta palavra”)
Finados
Estava a morte por perto
e por isso a vida
armou sua vingan�a:
aumentando-nos a fome
a vontade de cerveja
e condimentos
o desejo de gastar o dia ao sol.
Tuas camisas nos arm�rios
agora apenas vestem a si mesmas.
Seria preciso us�-las, lev�-las para passear, manch�-las de caf�, tinta, graxa,
desodorante, suor.
Uma ofensa � morte
um desafio.
Quem sabe tudo o que morreu
com quem morreu?
Um livro nunca escrito
um novo amor
um pensamento que permanecer�
impensado.
Quem sabe o que essa morte
trouxe � vida?
As casas
coloridas
est�o alegres sem motivo.
o que fazer agora
com as m�os
cegas?
o cigarro � parente
do l�pis
eram, afinal, gestos para nada
como na dan�a
(e fico � espera de algu�m que coreografe o ato
de acender um cigarro numa praia cheia de vento)
as cari�tides
as g�rgulas
seriam mais felizes
se fumassem
s� amamos de fato
o que serve para nada
mas as m�os mais do que n�s
sabem o que fazem –
s�o desde cedo adestradas
no adeus
s� sinto falta de fabricar
minha pr�pria nuvem
e de esperar-te em alguma esquina
fumando em p�
como um farol
Rel�mpagos
O pensamento
� um porn�grafo
e quase s� de palavras
se faz o amor
e no entanto n�o se embara�a
o pensamento com os cabelos
como os meus cabelos
se embara�avam nos seus
e n�o se misturam as palavras
com as palavras como na boca
a saliva se mistura
com a saliva
nem as l�nguas que falamos
deixam gosto na l�ngua
ou eu teria ainda na minha
o sal da sua
nem anoitece na mem�ria
aos poucos como anoitecia
naquele quarto estreito
j� fui um ser de duas cabe�as
e ancas
j� tive quatro pernas duas bocas
tive quatro bra�os e m�os
e vinte dedos das m�os
e dois sexos e dois cora��es
pulsando
simult�neos
j� tive s� palavras r�pidas
como rel�mpagos
atravessando a pele
o que foi feito das palavras
que trocamos?
o que foi feito desse ser
desajustado para o mundo?
o que ficou al�m da cicatriz
dos rel�mpagos?
Lembrete
Lembrar que
enquanto andamos
por estas ruas banais
sob um c�u inestrelado
templos brancos como ossos
repousam entre oliveiras
quase igualmente antigas
uma mulher desfaz
sobre a nudez noturna
sua tran�a pesada
um pequeno lama
cabeceia de sono
e h� le�es e laranjas
falc�es e hangares
an�monas e zinco
um bando de ant�lopes
atravessa um peda�o de terra
como este
deixando-o depois
vazio de sinais
em sil�ncio um homem prepara
menos comida do que ontem
um a um
partem os barcos
de passeio
chove intensamente
sobre telef�ricos
uma mulher v�
a cidade acender-se
� medida que anoitece
e para acalmar-se
conta as janelas
iluminadas
arrumam-se arm�rios
roupas de pessoas mortas
envelhecem corpos jovens
envelhecem tamb�m
os autom�veis
e as m�quinas agr�colas
com uma rede veloz
recolhem-se do mar
peixes luminosos
que ent�o ser�o deixados
afogando-se na areia
algu�m conhece
pela primeira vez
a enguia, o sexo, a escrita
pensar que devemos estar
� altura
disso
(de “A vida submarina”)
Navios
D�o voltas e voltas os navios
que n�o t�m mais do que partir:
n�o h� mais continentes por conquistar.
Velas, b�ssolas, mapas
restam tamb�m
Sem utilidade:
nenhuma dire��o � nova
ou desconhecida,
at� a dor encontrou sua medida.
Mesa
mais importante que ter uma mem�ria � ter uma mesa
mais importante que j� ter amado um dia � ter
uma mesa s�lida
uma mesa que � como uma cama diurna
com seu cora��o de �rvore, de floresta
� importante em mat�ria de amor
n�o meter os p�s pelas m�os
mas mais importante � ter uma mesa
porque uma mesa � uma esp�cie de ch�o que apoia
os que ainda n�o ca�ram de vez
�lbum
Nunca estivemos juntos em uma fotografia.
Era sempre eu, os olhos baixos,
o sorriso desajeitado,
ou tu, o olhar distante, quase antigo,
sempre mais bonito do que �s.
Assim n�o temos com que nos acusar.
De alguma forma, por�m,
meu embara�o te revela, como me revela
tua beleza inexata.
Por via das d�vidas
achei melhor queimar.