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Estado de Minas POESIA

Ana Martins Marques: 'Poema tem a ver com o atrito entre as palavras'

Em entrevista sobre novo livro, 'Risque esta palavra', escritora mineira conta que fez poesia sobre o fim do v�cio de fumar e revela origem do fasc�nio pelo mar


25/06/2021 04:00 - atualizado 24/09/2021 09:30

Ana Martins Marques(foto: Beatriz Goulart/divulgação)
Ana Martins Marques (foto: Beatriz Goulart/divulga��o)
A poesia de Ana Martins Marques n�o permite outro movimento se n�o o de adentrar-se. � de tamanha for�a que nos traga que, quando se d� conta, j� se est� em outro lugar. Toda a artesania com as palavras a coloca no lugar de uma das mais destacadas poetas contempor�neas , o que se confirma pelo novo livro, “Risque esta palavra”, e na reedi��o da estreia, “A vida submarina”, ambos lan�amentos da Companhia das Letras.

“Risque esta palavra” inclui o poema “Hist�ria” em que ela, ent�o com 39 anos, escreve a respeito da passagem do tempo. A poeta se mostra uma observadora do cotidiano, mas de um ponto de vista reflexivo. Do olhar atento �s coisas ordin�rias deriva para quest�es mais profundas, como a religi�o. N�o se refere �s cren�as j� institucionalizadas, mas a uma forma de ritualizar a vida, nas liturgias que se estabelecem no dia a dia. Debru�a-se no entendimento da morte, mas essa como uma permanente interlocutora da vida.

Ana Martins Marques tamb�m escreve a respeito dos lugares. Os territ�rios f�sicos, como a terra natal, como no poema “Minas � beira-mar”, ou uma vis�o de Alter do Ch�o, um dos destinos tur�sticos do Par�. Ela, por�m, amplia a no��o de lugares, mostrando n�s mesmos , nosso corpo humano, como territ�rios atravessados pelo tempo.



Em “A vida submarina”, os poemas v�m organizados em pequenas s�ries; ali�s, uma maneira de organizar os temas que a interessam. Numa delas, ‘barcos de papel’, a poeta apresenta a quest�o que perpassa toda a sua poesia, a reflex�o sobre os limites entre a prosa e a poesia. Embora n�o escreva em prosa, o tema � recorrente . “Embora os que leem prosa em geral/se arrisquem mais/porque chegam quase � beira do abismo/cuidado ao chegar � borda do poema”, diz, no poema “Margem”.

Em “Risque esta palavra”, os poemas “Prosa (I)” e “Prosa (II)” apresentam a poesia como esse espa�o de experimenta��o. A maneira como ela coloca a pr�pria poesia como essa inst�ncia de reflex�o sobre a linguagem a coloca na tradi��o de grandes nomes da poesia brasileira – e uma refer�ncia incontorn�vel � outro mineiro, Carlos Drummond de Andrade. N�o se pode deixar de notar o mar, uma presen�a recorrente nos poemas. Em “A vida submarina”, no poema “Tr�s cidades e um bra�o de mar”, os pontos de partida s�o Belo Horizonte, Paris e Buenos Aires. “Mesmo entre montanhas/na tarde rarefeita estende-se/um bra�o de mar.” A rela��o entre o oceano e a montanha aparece nesse poema e em “Minas � beira-mar”. Al�m da aus�ncia do litoral, Ana tamb�m pontua os efeitos da minera��o nas montanhas de Minas, como fez Drummond no s�culo 20. A seguir, a entrevista concedida por e-mail por Ana Martins Marques ao Estado de Minas .

A palavra � f�sforo? Quando voc� diz 'risque esta palavra' � uma alus�o � palavra como lume?
Sabe que eu n�o tinha me dado conta dessa rela��o do t�tulo com a imagem do f�sforo, que aparece na �ltima parte do livro, at� recentemente , quando a poeta Mar�lia Garcia me chamou a aten��o para ela? Certamente, o f�sforo � uma boa imagem para falar de poemas: ele brilha brevemente, ilumina um pequeno peda�o do mundo, e ent�o se extingue. Pode provocar um inc�ndio ou s� uma pequena chama. Alguns poetas, ali�s, j� fizeram essa rela��o: Jos� Paulo Paes tem um poema dedicado ao f�sforo, Murilo Mendes tamb�m. Lembro-me ainda de um poema de Ron Padgett que aparece no filme “Paterson”, de Jim Jarmusch.
 
Voc� brinca com o h�bito de fumar: o cigarro como l�pis, a fuma�a como pensamento. Voc� parou de fumar? Como a interrup��o interferiu em sua cria��o?
A se��o que encerra o livro traz v�rios poemas sobre cigarro, sobre o ato de fumar e de parar de fumar. Esses poemas come�aram a ser escritos, de fato, quando parei de fumar, h� uns tr�s anos. Sempre gostei da ideia das s�ries, de poemas que v�o puxando os fios de uma imagem ou tema, desdobrando-o, multiplicando os pontos de vista. E o cigarro �, sem d�vida, um objeto bastante liter�rio, entre outras coisas porque nos coloca de certo modo em contato com o fogo, mas tamb�m porque � um prazer perigoso, que nos coloca em rela��o com a morte.
 
Como � o seu processo criativo? Primeiro v�m os temas ou a experimenta��o das palavras guia a escrita? 
De fato, o poema para mim tem a ver com uma aten��o para a materialidade das palavras, seu peso, sua velocidade, o ritmo, o corte, as rela��es de vizinhan�a e de atrito entre as palavras. O ensa�sta Jean-Christophe Bailly fala que a poesia � sempre “uma agita��o da linguagem ”. Mas isso n�o significa que, ao escrever um poema, o poeta parta necessariamente de uma quest�o formal. Na verdade, nos poemas, n�o � f�cil separar o que diz respeito ao tema do que diz respeito � forma.

O poema � mais ou menos como aquele modo de dobrar as meias, fazendo uma esp�cie de bola, em que a forma e o conte�do, o objeto guardado e o inv�lucro, s�o uma coisa s�. Os poemas surgem para mim de muitas formas: �s vezes de uma imagem , �s vezes de uma palavra escutada na rua, �s vezes de outros poemas. �s vezes, o tema vem antes, �s vezes s�o as palavras que “puxam” o assunto. De qualquer modo, parece pr�prio da poesia poder se voltar para qualquer objeto, mesmo os que parecem mais insignificantes.
 
Em “Hist�ria”, que est� na contracapa de “Risque esta palavra”, os primeiros versos descrevem a passagem do tempo em cada parte de nosso corpo. � um poema de grande impacto. Como surgiu? 
Publiquei esse poema pela primeira vez no Facebook, em 2016, no dia do meu anivers�rio. Ele era original, portanto, um “poema de circunst�ncia”, feito como um agradecimento pelos votos de feliz anivers�rio. “Hist�ria” � possivelmente meu poema que teve maior repercuss�o, e acho que isso tem a ver com o fato de que, embora seja um poema vinculado a uma circunst�ncia pessoal espec�fica, ele faz uma opera��o de conectar a hist�ria pessoal a outras hist�rias, n�o s� de outras pessoas, mas das coisas, dos lugares e mesmo da l�ngua. Acho interessante pensar no quanto, mesmo nos momentos mais banais, estamos conectados e nos relacionamos com diferentes camadas de tempo, com coisas, corpos, imagens, lugares que est�o em diferentes temporalidades .
 
Voc� resolve a nossa rela��o com a incompletude de n�s, mineiros, em rela��o ao mar? T�o bonita a imagem das montanhas esvaziarem-se de si. Dizem que elas nos limitam, mas na poesia, n�o. Elas tamb�m podem recuar.
Acho que o meu fasc�nio pelo mar certamente tem rela��o com o fato de que, por viver longe do litoral, o mar nunca se tornou para mim totalmente familiar, sempre se manteve de certo modo enigm�tico, desconhecido. O poema que voc� menciona, “Minas � beira-mar”, nasceu da leitura de um poema da Ingeborg Bachmann, que por sua vez se relaciona com uma passagem de “O conto de inverno”, de Shakespeare, em que se fala sobre o desembarque de um navio na Bo�mia. Acontece que a Bo�mia n�o faz fronteira com o mar. Ingeborg retoma a imagem num de seus poemas mais conhecidos, em que diz algo como “se a Bo�mia fica � beira-mar, volto a acreditar em mares”.

Desde que li esse poema, numa oficina do poeta Carlito Azevedo, fiquei muito impressionada com ele, e acabei associando-o com o meu pai dizendo (mas isso eu posso ter inventado!), sempre que sa�amos em viagem e pass�vamos pelos “mares de morros” que caracterizam a paisagem de parte de Minas Gerais, que, h� milh�es de anos, aquelas montanhas tinham sido o fundo do mar. Ao mesmo tempo, a imagem das montanhas “esvaziando-se” de si, como o mar quando recua, � uma refer�ncia � minera��o e � vis�o, sempre para mim muito impressionante e terr�vel, das montanhas ocas, quase reduzidas a uma fachada, como se v� nas �reas de minera��o.
 
O poema “L�ngua” me fascinou, por todos os sentidos que voc� d� � palavra l�ngua e todas as formas que ela pode se mover e se flexionar... E como n�o somos traduzidos, mas lidos pela l�ngua. Uma invers�o que ainda n�o tinha pensado sobre... Como � brincar com a “l�ngua” e coloc�-la a servi�o da poesia?
A mat�ria do poema � a l�ngua, e a poesia lida com a l�ngua com grande liberdade. Mas qualquer um que j� se p�s a escrever sabe que a l�ngua n�o se dobra facilmente, que n�o somos s� n�s que fazemos a l�ngua dizer, ela tamb�m nos for�a a dizer. Roland Barthes cita o linguista Roman Jakobson para dizer que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que pelo que ele obriga a dizer. O poema “L�ngua” tem a ver com isso, com o quanto a l�ngua, em especial a materna, de algum modo, digamos, nos escreve. “L�ngua” � um poema dividido em duas partes, ou dois movimentos, e a segunda parte de certo modo relativiza ou desdobra a primeira, sugerindo a possibilidade de pensar tanto a tradu��o quanto a poesia como formas de escapulir dessa tirania das l�nguas.
 
Como voc� equilibra a escrita entre a prosa e a poesia?
Escrevo basicamente poesia, nunca escrevi prosa de fic��o. Escrevi ensaios, ou algo pr�ximo disso, na �poca em que fiz mestrado e doutorado na UFMG. Embora a fronteira entre a prosa e a poesia seja evidentemente porosa, perme�vel, acho que, pelo menos para mim, a escrita da poesia e a escrita da prosa mobilizam o tempo e a aten��o de modos bem diferentes . Nesse novo livro, h� dois poemas, “Prosa (I)” e “Prosa (II)”, que tratam de algum modo dessa rela��o entre a prosa e a poesia, que o Val�ry certa vez definiu como a diferen�a entre caminhar e dan�ar.

Depoimento

Andr�a Sirihal Werkema, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

“Na poesia de Ana Martins Marques, o que sempre mais me fascina � a conversa intermin�vel sobre a poesia em si, assunto de tantos de seus poemas, mesmo que venham “disfar�ados” de poemas de amor, ou de poemas sobre os objetos que cercam nossa insistente e banal exist�ncia. Metapoesia, dir�amos em sala de aula para nossos alunos que se arriscam na leitura dessa outra voz, outra l�ngua que �, em termos pr�prios, a poesia em si. Mas Ana faz de sua poesia autorreflexiva um lugar que se alterna entre a fr�gil suavidade e a promessa de humor, mas h� a perda, h� a solid�o, h� a casa vazia. Poesia que pode ser amarga, e que visita sempre o sil�ncio; que � sucinta, mas deixa no ar tanta coisa a ser dita – sempre o interdito –, v�cio mineiro, de poetas mineiros , a quem Ana Martins Marques se junta em di�logo e pertencimento.

V�rios poetas, mulheres e homens, perpassam tamb�m sua poesia, outro tra�o que me fascina, porque assume essa outra fei��o que para mim � a mais po�tica, junto � metapoesia: a conviv�ncia com outros poetas, a conversa de palavras escritas, as visita��es e os convites para que os poetas venham falar um pouco de novo aqui, na p�gina do livro da poeta mineira. Enfim, n�o � f�cil falar de uma poesia que tematiza nossa vida em suas pequenas hist�rias, os gestos que passam despercebidos, mas que fazem da poesia de Ana Martins Marques solidez e leveza, voz fundamental nesses dias amargos que vivemos.”

Depoimento

Andr�a Soares Santos, professora do Departamento de Linguagem e Tecnologia do CEFET-MG

“A poesia da Ana revela um olhar atento e inventivo sobre as coisas, os objetos do cotidiano, o que faz com que a poesia dela produza imagens que geram articula��o muito especial, muito t�pico da poesia dela, entre o concreto das coisas, dos objetos, e o abstrato dos pensamentos, dos sentimentos, das percep��es, a obra dela revela uma capacidade de testar, por meio da escrita do poema, os limites da linguagem como representa��o. A linguagem da poesia dela tem um equil�brio muito sutil, muito calculado, talvez, e delicado tamb�m, capaz de percep��es elaboradas em linguagem que considero transparente. A Ana � uma das vozes mais importantes no panorama da poesia brasileira contempor�nea.

Interessante que seja uma voz feminina, embora n�o reconhe�a que a Ana reivindique essa quest�o da representatividade. A poesia da Ana n�o � desse lugar. Mas acho importante dizer que � uma poesia escrita por uma mulher nascida em Minas Gerais. Traz a raiz mineira de forma bem amadurecida . � bom que parta daqui.”


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