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Estado de Minas MEMORIAL

Escritores e cr�ticos narram conv�vio com S�rgio Sant'Anna

Autores utilizam suas ferramentas de trabalho para descrever a vida com o escritor carioca e o impacto de sua obra


postado em 15/05/2020 04:00 / atualizado em 15/05/2020 08:06

A noite, a bolsa, o palco e Satie

“Quando eu era jovem, me diziam: voc� vai ver quando tiver 50 anos. Estou com 50 anos e n�o vi nada”, escreveu Erik Satie. A frase � citada em Junk-Box, livro de poemas de S�rgio Sant’Anna, publicado em 1984. Em 13 de fevereiro deste ano, aos 78 anos, S�rgio participou da s�rie Escritor na Biblioteca, na M�rio de Andrade, em S�o Paulo. A convite de Jos�lia Aguiar, fiz a media��o ao lado do escritor Gustavo Pacheco. Est�vamos todos muito felizes com a vinda do S�rgio. N�o era f�cil a locomo��o, ele estava com um problema na perna. Vieram os dois filhos, Paula e Andr�, al�m de amigos, leitores, admiradores e Sueli, gentil cuidadora que o acompanhou na viagem. S�rgio, eu n�o sabia, vinha cancelando participa��es em eventos em cima da hora, ent�o todos temiam que ele abandonasse o barco. Mas o que aconteceu foi o oposto.

Com sua bolsa a tiracolo, S�rgio subiu no palco e conversou muito � vontade. Estava bem-humorado. Falou de pol�tica, de sua indigna��o com o governo, de como usava o Facebook para comentar o notici�rio. Falou sobre o cansa�o que sentia quando dava aulas na faculdade, j� que os alunos tinham sempre a mesm�ssima idade e ele ficava mais velho a cada ano. Falou sobre seus livros antigos, que continuam espantosamente atuais, como Amazona e Notas de Manfredo Rangel (rep�rter). Falou que na hora de escrever gostava de experimentar, de n�o repetir velhas f�rmulas. Falou de como era influenciado pelas artes pl�sticas, pela m�sica, pelo teatro, pelo cinema. Falou que via muita televis�o.

Falou que tinha muito prazer em ler os jovens escritores brasileiros. Falou que se sentia como o Satie – s� que, agora, perto dos oitenta. Foi uma noite memor�vel: a sensa��o era de que um dos maiores escritores vivos n�o tinha envelhecido. Continuava brilhante, ativo, aut�ntico, generoso, mordaz. N�o sab�amos que era uma despedida.” 
Alice Sant’Anna � poeta e editora de S�rgio Sant’Anna na Companhia das Letras


S�rgio quer te contar algo

“Inquieta��o e curiosidade em doses cavalares sempre estiveram no card�pio liter�rio de S�rgio Sant’Anna. Mas aten��o: associar esses dois substantivos pode sugerir que a procura por novidade seja uma constante e, portanto, � preciso pensar em varia��es, mudan�as, avan�os, mesmo que a apar�ncia geral aponte em algum momento para certa redund�ncia. Sen�o, observe a quantidade de contos que s�o chamados pelo nome nos t�tulos. Conto (N�o conto), Um conto nefando?, Um conto abstrato, Um conto obscuro, Estudo para um conto, O conto maldito e o conto benfazejo, O conto zero (ali�s, tamb�m t�tulo do livro que o cont�m), O conto, Um conto l�mpido e obscuro e O conto fracassado, isso para n�o mencionar os que t�m indica��o, mesmo que indireta, do mesmo assunto, como Composi��o I e Composi��o II, Prosa e por a� vai.

O recado de Sant’Anna para o leitor n�o era muito subliminar: est� sempre � procura do conto, do conto total, estilo Mallarm�, para encerrar e compreender todos os outros contos. Por essas e por outras devo ter errado quando decidi fazer disserta��o de mestrado intitulada ‘A autobiografia do outro a respeito de um romance de Sant’Anna, Confiss�es de Ralfo (1975)’. Se tivesse entendido que o romance � apenas variante do conto no caso desse escritor, talvez pudesse ter acertado. Mas passei longe, nem te conto.”
Paulo Paniago � professor da Faculdade de Comunica��o da Universidade de Bras�lia


P�lvora, suor e c�rebro

“Eu contava vinte e poucos anos quando descobri a obra do S�rgio com O voo da madrugada. Pensei ter descoberto a p�lvora. Era inteligente. Divertido. Sensual. Irreverente e elegante. Era brasileiro. Sempre me intrigou que S�rgio tivesse Marcel Duchamp como �dolo. Al�m disso, em O livro de Praga, o narrador fala de Andy Warhol. S�o poucos os escritores de prosa narrativa ficcional que declaram ter no seu pante�o de refer�ncias os artistas conceituais. S�rgio realizava uma opera��o sofisticada e igualmente de apelo popular: conjugava esses interesses com os temas do sexo, da m�sica e do futebol. Uma literatura feita de suor e c�rebro. Mestre absoluto em criar hist�rias sedutoras e com inquieta��o formal.

Cada texto seu parece fundar uma nova ideia do que � um texto. Fic��o, mem�ria, teatro, poesia, ensaio, descri��o e pensamento se atravessam em romances, novelas e contos, como se, feito no conto Cen�rios, ele nos dissesse: ‘N�o, n�o � bem isso’. S�rgio era um investigador carnal da escrita. Aos vinte e cinco anos, enviei um conto para ele e pedi sua opini�o. No final da tarde do mesmo dia, S�rgio respondeu. Generos�ssimo, me ofereceu palavras que guardo como um trof�u. Eu n�o tinha publicado nada. Era o ano de 2010 e S�rgio, aos 68 anos, dava a largada para a sua �ltima d�cada de cria��o, que desaguou em cinco livros urgentes, cinco livros milagrosos. Que, como toda a sua obra, s�o p�lvora.”
Leonardo Villa-Forte � escritor, autor de Escrever sem escrever

Meandros urbanos, infernos �ntimos

“A obra de S�rgio Sant’Anna oferece um leque de possibilidades did�ticas a quem lida com o ensino da literatura, podendo ser compartilhada com os alunos de diversas maneiras. Em aulas de teoria liter�ria, por exemplo, ler os livros multifacetados do escritor permite aos alunos aprender sobre diferentes experimentos e estrat�gias ficcionais, entender as sutilezas e complexidades do processo de constru��o de personagens, investigar os cruzamentos entre fic��o e realidade, estudar as t�cnicas de composi��o das narrativas breves.

J� nos cursos sobre literatura contempor�nea brasileira, os contos, novelas e romances do autor s�o exemplares para o enfoque liter�rio de quest�es importantes do Brasil ao longo das �ltimas cinco d�cadas, j� que Sant’Anna sempre foi um ex�mio (e original�ssimo) int�rprete dos acontecimentos pol�ticos e sociais do pa�s. Al�m disso, explorou os meandros da vida urbana, sondando ainda, por vias surpreendentes, os infernos �ntimos dos personagens.”
Maria Esther Maciel � professora e escritora, autora de O livro dos nomes



Da arte dos encontros

“Conheci S�rgio Sant’Anna no tempo em que �amos � praia e os filhos eram muito jovens. N�o vai a� nenhum privil�gio. Creio que todos que circulam pelos espa�os de literatura, teatro, artes visuais, j� cruzaram com S�rgio. Afinal, al�m de ser um grande narrador do Rio de Janeiro, foi tamb�m um grande personagem da cidade. Disse uma vez: ‘O Rio � mesmo o meu cen�rio, pois nasci aqui e vivo aqui’.

Nas sa�das de espet�culos, no p�-sujo da ECO/UFRJ, nas churrascarias de Botafogo, em Laranjeiras, no Largo do Machado – que levou para a literatura – era sempre uma alegria e uma provoca��o encontrar com o escritor, mesmo que estivesse calad�o.

Alguns momentos foram especiais. Inesquec�vel a FLIP de 2007, onde, em leitura dirigida por Bia Lessa, interpretou, constrangido e mach�o, o Arandir do Beijo no asfalto. O mais importante, por�m, foi o evento ‘Literatura latino-americana do s�culo 21’, no CCBB do Rio, em 2005. No mesmo momento que em os oito escritores falavam, lan��vamos o livro com suas narrativas antecedidas de escritos cr�ticos. Os autores se apresentavam aos pares e a cereja do bolo foi S�rgio Sant’Anna ao lado de C�sar Aira, ainda pouqu�ssimo publicado no Brasil. � claro que o encontro dos dois mestres da narrativa curta deu a maior liga. S�rgio nos cedeu Entre linhas, ainda n�o publicado em livro, mistura de fic��o e teoria da escrita, bem ao gosto tamb�m do argentino.

A �ltima vez em que nos encontramos, h� n�o muito tempo, foi na abertura de uma exposi��o de artes visuais no MAR em torno de uma narrativa de C�sar Aira. Fomos carinhosamente convidados pelo autor que, em sua fala inicial, saudou efusivamente o encabulado parceiro carioca. Depois, s� por Facebook, onde comentava leituras, elogiava generosamente colegas e mostrava forte vitalidade ao se indignar com os desmandos dos bo�ais do Planalto.”
Beatriz Resende � cr�tica liter�ria, ensa�sta e professora da Faculdade de Letras da UFRJ 

Poderoso horizonte

“S�rgio Sant’Anna atuou como um poderoso horizonte em minha vida. Foi por causa da ousadia e do rigor est�tico, pol�tico, existencial  de sua obra que me interessei pela fic��o brasileira contempor�nea e me senti desafiado a perseguir essas qualidades em meu trabalho de pesquisador e ficcionista. O horizonte se corporificou em um v�nculo pessoal intenso. S�rgio era um grande amigo, de gestos generosos e marcantes. Perfeccionista e amante do debate intelectual, me pediu palpites sobre alguns de seus originais, como o cl�ssico O monstro, e me convidou para ajud�-lo na meticulosa prepara��o de seu Contos e novelas reunidos. Artista vibrante e atra�do pela alian�a entre cria��o e cr�tica, topou participar de meu livro-experimento Um olho de vidro: a narrativa de S�rgio Sant’Anna.

Leitor exigente e sens�vel, comentou em detalhes v�rios de meus trabalhos e presenteou-me com um belo pref�cio para o Saber de pedra: o livro das est�tuas. Nos �ltimos anos, S�rgio contribuiu, com entusiasmo, em dois projetos especiais para mim: a edi��o comemorativa dos 50 anos da RL – Revista Liter�ria, da UFMG, ve�culo que publicou seu primeiro conto, e o livro Can��o de amor para Jo�o Gilberto Noll, de quem era admirador. Olhando o grande volume de cartas, originais, livros, dedicat�rias e e-mails que trocamos ao longo das tr�s �ltimas d�cadas, bate um forte aperto no cora��o.

Talvez seja a profunda tristeza de saber que a fonte desse horizonte n�o est� mais com a gente. Talvez seja a gratid�o por ter vivido em um horizonte t�o vasto. Talvez seja o consolo por pensar que horizontes n�o se dissipam, e sim se deslocam e se renovam. Em minha vida e na cultura brasileira, hoje t�o vilipendiada, S�rgio foi, e auspiciosamente continuar� sendo, um homem-horizonte.”
Luis Alberto Brand�o � professor titular da Faculdade de Letras da UFMG

Sempre curioso, nunca acomodado

“Em um de seus di�rios, o escritor argentino Ricardo Piglia escreveu: ‘As rela��es entre escritores de outra gera��o s�o complicadas, porque cada um fala uma l�ngua diferente, ent�o acabamos nos entendendo num jarg�o inventado com retalhos do idioma pessoal de cada um e s� conseguimos a incompreens�o e o mal-estar’. N�o sei em quem o Piglia estava pensando, mas certamente ele n�o conheceu o S�rgio Sant’Anna. Trinta anos mais velho do que eu, o S�rgio falava (e escrevia) num idioma muito f�cil de entender: o idioma do amor pela literatura e pela liberdade art�stica, e da f�ria contra a mediocridade e o fascismo.

Quando nos tornamos amigos, ele estava prestes a completar meio s�culo de carreira liter�ria e eu tinha acabado de publicar meu primeiro livro. Para minha surpresa, n�o s� ele n�o tinha qualquer emp�fia como estava genuinamente interessado no que gente mais jovem tinha a dizer. ‘O pa�s j� � t�o fodido... ent�o eu gosto muito quando sai alguma coisa boa daqui’, ele dizia, ao elogiar algum dos v�rios livros que recebia de escritores iniciantes. Essa postura receptiva e generosa para mim � a s�ntese do S�rgio, n�o s� como ser humano, mas tamb�m como artista de primeir�ssima grandeza, nunca acomodado, sempre curioso e aberto � novidade.”
Gustavo Pacheco � escritor e diplomata, autor de Alguns humanos

De brincadeira. E muito a s�rio

“S�rgio Sant’Anna desbravou prov�ncias imensas na literatura brasileira e as povoou praticamente sozinho. N�o por ego�smo, mesmo porque era o escritor mais generoso que conheci. Por originalidade mesmo. Criou o conto performativo, o n�o conto, o conto-conceito, o conto-ensaio, o conto-poema, o poema-conto, isso para n�o mencionar o romance-teatro e o experimentalismo inclassific�vel do an�malo – e muito querido por ele – Junk-Box. Ningu�m teve mais f� na literatura e ningu�m duvidou mais dela.

Ningu�m a levou mais a s�rio e ningu�m brincou mais com ela. S�rgio inventou praticamente sozinho nosso p�s-modernismo, e ao mesmo tempo nossa cr�tica do p�s-modernismo. Num pa�s continental que tende ao ensimesmamento, muitas vezes ao paroquial, foi radicalmente cosmopolita, conversou com todas as vanguardas reais ou imagin�rias, sem nenhuma sombra de deslumbramento e sem jamais se afastar do lastro do seu bairro, da sua cultura, da sua l�ngua. A literatura brasileira mal come�ou a entender o tamanho da heran�a que ele deixa.”
S�rgio Rodrigues � escritor, autor de A visita de Jo�o Gilberto aos Novos Baianos

A literatura como vida

“Come�o pela raiva. Quando soube que S�rgio Sant’Anna estava internado tive uma rea��o quase col�rica. J� vinha morrendo um bocado de gente das artes, mas a perspectiva de perder o escritor justo agora, neste per�odo aziago da hist�ria brasileira, era agoniante.  N�o �ramos amigos. Em 2005, eu e S�lvia Rubi�o o convidamos para abrir o projeto Of�cio da Palavra, no Museu de Artes e Of�cios. Ele foi o primeiro convidado por ser o escritor favorito. Nunca mais estive com ele, pessoalmente.

Confesso que n�o sei definir a literatura de S�rgio Sant’Anna.  Os 15 livros que tenho dele est�o todos lidos, alguns relidos. Em cada um deles encontro algo que me espanta e contagia. A transgress�o s�bita, o virtuosismo de pegada beat, a multiplicidade de temas, a puls�o da geografia carioca, a narrativa elegante at� quando altamente sensual, a  melancolia e o humor de seus personagens, os enredos surpreendentes, o lirismo sem pieguice dos �ltimos livros – s�o muitos os recursos sob controle absoluto do escritor refinado e obsessivo.

A literatura era a sua vida e, quando esta lhe faltava, ele a inventava. Quando morre um escritor dessa estirpe eu choro em sil�ncio e fico de luto (foi assim com Jo�o Gilberto Noll, outro gigante). Depois, abro uma garrafa de vinho, pego um de seus livros e come�o a ler, at� sentir de novo a velha certeza. At� sentir que, naquele instante, a vida n�o consegue ser maior do que aquilo que estou lendo.”
Jos� Eduardo Gon�alves � jornalista e editor da revista Olympio

Liquida��es do in�cio ao fim

“Minha hist�ria com S�rgio Sant’Anna come�ou, como quase tudo relacionado � literatura brasileira, numa liquida��o. A livraria Vozes da cidade onde eu fazia faculdade estava para fechar e liquidava o acervo: l� comprei livros de Pynchon e um volume magrinho chamado Breve hist�ria do esp�rito. Era 1991. O conto que dava t�tulo ao livro era dedicado a “Ti�o Nunes e Andr�”, e fiquei me perguntando se se tratava do pr�prio Sebasti�o Nunes, por cuja Antologia Mamaluca eu andava mamaluco, a ponto de t�-la afanado de uma amiga que ainda n�o me perdoou. Podia ser coincid�ncia.

J� o Andr�, como eu o ignorava ent�o, tamb�m n�o tinha como adivinhar que seria o mesmo Andr� Sant'Anna que assinaria a orelha do meu romance de estreia, a ser publicado a dez anos dali, num futuro acidental. Depois disso, li tudo do S�rgio, sempre embasbacado. At� o conhecer pelo Andr�, que virou meu amigo, e receber, autografados, A trag�dia brasileira e Junk-Box, este �ltimo editado, vejam s�, n�o era coincid�ncia, por Ti�o Nunes himself. E o circo se fechou.

A partir da� conheci meu apogeu ao dividir o picadeiro com S�rgio Sant’Anna na Feira de Frankfurt, na qual o Brasil foi homenageado em 2013, honra impens�vel para mim (a companhia do S�rgio, n�o a homenagem ao Brasil). Ent�o n�o me furtei a dizer o que repito agora: que S�rgio Sant’Anna est� entre os maiores escritores mundiais do s�culo 21. E tenho dito, ou melhor, tenho lido o S�rgio desde aquela liquida��o, e continuarei a l�-lo at� o final dessa nova liquida��o que sofremos hoje, e depois. E sempre.” 
Joca Reiners Terron � escritor, autor de A morte e o meteoro

Carne, osso e bolsa de tecido

“Caro S�rgio,
Desde crian�a, nunca soube muito bem me afastar: sou de chorar em todo adeus. Como tantos, ando exausta de me despedir. Mal d� tempo de recolher as mem�rias, de organizar o tamanho do buraco que fica. No �mbito coletivo, as mortes dos �ltimos dias t�m nos adoecido como tribo. N�o � pouca coisa. Despedir d� febre, j� alertou Guimar�es Rosa. O calor sinaliza algo, grita que � hora de ficar alerta � temperatura que brota da pele. Na busca por nos aquecer e passar juntos por esse luto, tem acontecido em muitos espa�os uma esp�cie de r�quiem liter�rio em sua homenagem – no depoimento de leitores, no lamento dos colegas, na dor compartilhada dos tantos admiradores.

Por aqui, posso dizer que o outono carioca este ano ser� menos solar, e vai ser dif�cil a gente se aquecer. Preciso ent�o lembrar de um novembro de 2016. Era uma tarde durante a Primavera dos Livros, nos jardins do Museu da Rep�blica, no Bairro do Catete. Eu me encontrava a poucos minutos de te conhecer, na companhia de uma amiga em comum. Luto para disfar�ar a emo��o, pr�diga em dizer bobagem quando apresentada a algu�m que admiro.

Chega voc� e a tens�o se dissipa de imediato diante da vis�o da sacolinha de pano a tiracolo, cheia de livros, detalhe banal que me diz muito e humaniza a lenda. Voc� foi absolutamente doce, as monstruosidades ficam no papel. Essa a mem�ria que permanece do homem de carne, osso e bolsinha de tecido. Respeito muito a emo��o das despedidas, mas considero igualmente o impacto das primeiras vezes. Tor�o, como professora, que os anjos, cen�rios, madrugadas, simulacros, confiss�es e todo o banquete servido em suas p�ginas chegue em mais e mais leitores.”
Stefania Chiarelli � professora de literatura brasileira da UFF

Do assombro ao acolhimento

“Vasculhava sebos feito um rato faminto no final dos anos 1980. Office-boy da Gazeta Mercantil, desprezava os atulhados fliperamas e agarrava-me feito um n�ufrago magricela e dalt�nico �s p�ginas dos livros: a literatura iria me salvar. S� n�o sabia muito bem do qu�. Esta certeza repleta de d�vidas latejava a cada autor descoberto nas poeirentas prateleiras. Lembro exatamente o movimento em dire��o ao surrado exemplar de O concerto de Jo�o Gilberto no Rio de Janeiro, de S�rgio Sant’Anna. A ignor�ncia me inundava por todos os lados. Desconhecia autor e livro. Ao folhear a colet�nea de contos, o assombro: “O sexo n�o � uma coisa t�o natural”. Afoito, li o in�cio da narrativa: “Mas como � poss�vel penetrar num corpo que n�o � o seu pr�prio, e ali permanecer, dentro de entranhas, visgos, l�quidos, paredes vermelhas que se ajustam como luvas e, ainda mais, d�o prazer?”.

Agarrei-me ao livro de capa um tanto brega e percorri a prosa po�tica, experimental, audaciosa de um escritor que me acompanha desde sempre. Mais de vinte anos ap�s aquele inesquec�vel encontro, conheci-o pessoalmente ao convid�-lo para o projeto Paiol Liter�rio. No auge da carreira, em 2009, sentou-se no centro do palco e, num misto de timidez e ironia, encantou o p�blico por quase duas horas. Na plateia, olhava-o com a admira��o juvenil e o espanto daqueles anos de descoberta. Logo de iIn�cio, uma frase simples, mas certeira, atingiu-me: “Acho que a literatura pode mudar as pessoas individualmente. Mas sou um homem cheio de d�vidas”.
A potente literatura de S�rgio Sant’Anna mudou-me a cada linha, est� em mim e acolhe-me nestes tempos de d�vidas e reclus�o!”
Rog�rio Pereira � editor do jornal liter�rio Rascunho e � autor do romance Na escurid�o, amanh�.

Um ateli� de portas abertas

“N�o h� melhor homenagem a um escritor do que a releitura silenciosa dos seus livros. Foi o que fiz, desorganizadamente, desde que recebi a not�cia da morte do S�rgio Sant’Anna. A forma curta nunca teve horizontes t�o largos, chega aqui aos limites da experimenta��o e do pr�prio universo. Sempre unindo rigor formal e liberdade processual – seu ateli� de portas abertas para visitarmos o escritor que escreve. E n�o apenas: Sant’Anna abre di�logos altamente elaborados com outras formas de arte sem jamais deixar de ser muito divertido, at� nos momentos mais tr�gicos.

Sinto que perdemos o mais contempor�neo dos contempor�neos, sua partida nos deixa �rf�os de presente. E em um pa�s que j� est� encolhendo. Entre tantas mortes tr�gicas, em menos de um m�s perdemos os dois maiores escritores vivos do Brasil: Fonseca e Sant’Anna, o segundo em ebuli��o criativa at� o final. � como se o Brasil estivesse se vingando de si mesmo.”
Jo�o Paulo Cuenca � escritor, autor de Descobri que estava morto

A metamorfose do cotidiano

“S�rgio Sant’Anna � um cap�tulo inteiro da literatura brasileira. Ele significa a perman�ncia da economia textual de seus antecessores e, ao mesmo tempo, representa um avan�o em rela��o �s tem�ticas e � pr�pria est�tica do conto. Deu-se bem no romance, mas s�o seus contos que mais me impressionam – e n�o somente a mim. O nonsense que neles habita � capaz de mesclar o mais profundo realismo a certas incongru�ncias que, ao final da leitura, fazem um perturbador sentido. Seu avan�o em rela��o aos temas � representado pela metamorfose do cotidiano em mat�ria de aproxima��o e afastamento.

H�, nesse dia a dia, algo que atrai, na medida em que nos sentimos inclu�dos numa exist�ncia factual, t�o familiar, mas que, tamb�m, nos afasta dali, seduzindo-nos com uma universalidade sinistra, metaf�sica, devoradora, capaz  de nos jogar em cheio num espa�o e num tempo transfigurados, mas que sabemos habitar em n�s; ignorando isso, as personagens agem desnorteadas, aleatoriamente, como v�timas de uma for�a obscura da qual n�o atinam a extens�o e a capacidade destruidora: � como se estivessem numa permanente pandemia, ati�ada por um imperador maluco. A obra de S�rgio Sant’Anna permanecer�, ao lado das obras de Machado, Guimar�es, Graciliano, e ser�o sempre cap�tulos exclusivos de nossa cultura.”
Luiz Antonio de Assis Brasil � escritor e professor, autor de Escrever fic��o

Um contista por excel�ncia

“Refer�ncia para toda a minha gera��o, que come�ou a escrever a partir de meados de 1970, S�rgio Sant’Anna costumava dizer que se n�o tivesse vivido em Minas, n�o teria se tornado ficcionista. Morou em Belo Horizonte na juventude: aqui publicou o seu primeiro livro de contos, O sobrevivente, em 1969, e fez parte da famosa Gera��o Suplemento, que gravitava em torno de Murilo Rubi�o, criador do Suplemento Liter�rio do Minas Gerais, em 1966.

De volta ao Rio, sem nunca perder o v�nculo com Minas, nem com os amigos, S�rgio Sant’Anna se tornou um dos grandes escritores brasileiros. Foi um contista por excel�ncia; exigente ao extremo com sua escrita, e fez escola. A ele devo a leitura dos originais do meu primeiro livro, O sol nas paredes, a alegria de t�-lo entrevistado algumas vezes para o Estado de Minas, e o privil�gio de ser seu leitor.”
Carlos Herculano Lopes � jornalista e escritor, autor de O vestido   

Sem medo de se revelar

“Caro S�rgio, 
Est�o querendo saber minha opini�o a respeito de sua obra e o impacto dela sobre mim. Devo confessar uma coisa: o modo como voc� exp�e as entranhas da intimidade de seus personagens me causa perturba��o. Esse desconforto, como eu disse a voc� naquela tarde em seu apartamento, � provocado por me ver retratado em muitas de suas narrativas. N�o sei se voc� se lembra do seu coment�rio: ‘� preciso escrever sem medo de se revelar’.

Depois conversamos sobre relacionamentos amorosos, futebol e artes pl�sticas. Porque, como voc� mesmo fala, a literatura s� pode vir das nossas experi�ncias: tantos as prazerosas quanto as angustiantes. Mas afinal, voc� leu ou n�o a Ali Smith? Aguardo sua resposta. 
Um forte abra�o, Andr�.

As duas �ltimas frases desse texto foram extra�das de um e-mail enviado por mim ao S�rgio no �ltimo dia 2 de maio. O restante foi de conversas nossas por telefone ou em seu apartamento em Laranjeiras.”
Andr� Nigri � jornalista e escritor, autor de Paralisia

O experimentalismo que n�o � est�ril

“Para mim, como leitor, o melhor da obra de S�rgio Sant’Anna reside nas formas como ela abra�a elementos muito d�spares e deles disp�e com extremas liberdade, eleg�ncia e cuidado. � poss�vel falar em ‘experimentalismo’ e ‘transgress�o’, embora esses termos talvez nos pare�am gastos ou deslocados, mas Sant’Anna experimenta na medida em que se mant�m aberto e atento ao que cada narrativa exige. Nesse sentido, seu experimentalismo caminha ao lado e apoia cada hist�ria, isto �, n�o a contamina ou chama a aten��o para si, n�o � est�ril.

O talento de Sant’Anna � t�o evidente quanto o dom�nio que ele demonstra nos mais diversos registros. H� sempre um espa�o generoso para que as vozes (dos personagens, das mem�rias e mesmo dos objetos) tomem as narrativas para si, coisa que me parece bastante dif�cil de se fazer, sobretudo no �mbito das formas breves. S� agora percebi ter escrito estas linhas no tempo presente. � uma forma de acusar o golpe, de sublinhar a perda, talvez. E, claro, de reiterar o fato de que a obra permanece.”
Andr� de Leones � escritor, autor de Eufrates, entre outros romances

Um dos motores da Gera��o Suplemento

“Amigo e companheiro de S�rgio Sant’Anna na Gera��o Suplemento h� 50 anos, convivi com ele do final de 1970 at� 1977, quando se mudou de volta para o Rio de Janeiro, e mantivemos fraterno contato desde ent�o. No final de 1971, voltando de quase um ano em S�o Paulo, encontrei-o de novo na reda��o do Suplemento Liter�rio. Ele voltara meses antes de uma temporada em Iowa City, no International Writing Program — que rebatizou de Drinking Program por causa das farras que viveu com colegas de v�rias partes do mundo —, e trouxera de l� ideias novas para a literatura meio provinciana que imperava por aqui. Foi um dos principais motores dessa que foi a �poca mais criativa do SLMG.

Nossos encontros nos fins de tarde no Saloon, bar que ficava no quarteir�o de baixo do Suplemento, contava com a presen�a constante de Fernando Brant, o que atra�a os m�sicos do Clube da Esquina, do 14-Bis e variada fauna daqueles tempos efervescentes e criativos. Foi uma amizade t�o firme quanto nossa devo��o ao Fluminense Futebol Clube. Ele foi um dos irm�os homens que n�o tive. E o grande escritor da minha gera��o.” 
Jaime Prado Gouv�a � escritor e diretor do Suplemento Liter�rio de Minas Gerais


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