
"Qual � a regra aqui? Desautorizar as autoridades constitu�das, para dizer: 'Olha, aqueles que cuidam da palavra, da raz�o, aqueles que cuidam do debate, est�o todos comprometidos e interessados'. Essa ideia � necess�ria para que se destituam os poderes impessoais representados em institui��es como as universidades, a imprensa, os cientistas"
Christian Dunker
A escalada da ret�rica das armas, da guerra e, mais recentemente, no contexto da pandemia, a narrativa da banaliza��o das vidas perdidas associada � lentid�o em implementar medidas de assist�ncia aos mais vulner�veis, � a express�o t�cita do questionamento de valores que seriam de pretens�o universal – como a raz�o, a justi�a e a vida.
Tomada como modo de governar, a chamada necropol�tica, diferentemente da aplica��o do princ�pio de preserva��o da vida, adota a pr�tica de deixar morrer e de negar o processo de exterm�nio, adoecimento ou desprote��o que leva � morte.
A avalia��o � do psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de S�o Paulo (USP), e autor de obras premiadas como Estrutura e constitui��o da cl�nica psicanal�tica (Annablume, 2011).
Ele lan�ou este ano o livro A arte da quarentena para principiantes (Boitempo) e participar�, no pr�ximo 4 de agosto, do webin�rio Conversas sobre perguntas, organizado por Casa Fiat, CCBB, Memorial Minas Gerais Vale e MM Gerdau, com a palestra Os novos desafios do eu – Psican�lise e vida p�s-pandemia, que ser� transmitida pelo canal Memorial Minas Gerais Vale, do Youtube. A seguir, uma entrevista com o psicanalista e escritor:
Assistimos nesta pandemia a segmentos da sociedade que embarcaram num processo de relativizar a gravidade da doen�a. Como a psican�lise explica o negacionismo?
Poucas pessoas se d�o conta de que a express�o negacionismo vem da psican�lise. Freud tem texto cl�ssico chamado A nega��o, em que escreve a nossa atitude diante de realidades que s�o mais dolorosas ou complexas do que conseguimos aguentar. Essa � uma atitude muito b�sica, muito simples, � o come�o de muitas outras formas de nega��o e foi descrita ali no in�cio da psican�lise.
Vamos notar que cada pa�s entrou na pandemia a partir de seu pr�prio processo cultural. A chegada do novo coronav�rus pegou o Brasil em meio a dois processos particulares: a divis�o social discursiva e a pauperiza��o da vida econ�mica e dos direitos trabalhistas. A ret�rica de campanha eleitoral, tornada depois m�todo de governo, baseada na produ��o cont�nua de inimigos imagin�rios, foi impactada pela chegada de um inimigo real, biol�gico e natural.
A produ��o de inimigos justifica a��es intempestivas, a��es que acumulam poder naquele que est� governando o pa�s e naqueles que o cercam. Ent�o qual � a regra aqui? Desautorizar as autoridades constitu�das, para dizer: ‘Olha, aqueles que cuidam da palavra, da raz�o, aqueles que cuidam do debate, est�o todos comprometidos e interessados’.
Essa ideia � necess�ria para que se destituam os poderes impessoais representados em institui��es como as universidades, a imprensa, os cientistas. Pois no momento em que o interlocutor p�e em d�vida – n�o precisa dep�-las, basta dizer que s�o controversas –, amealha para si uma d�vida razo�vel, que a partir de ent�o vai deslocar aquela f�, aquela cren�a que as pessoas tinham naquela institui��o, para aquela autoridade pessoal de quem est� confrontando, denunciando, criticando a autoridade simb�lica constitu�da. Isso � um m�todo de discurso.
A pandemia n�o � inimigo pol�tico, n�o � um inimigo intencional, � um fato que vem da natureza, vem desse lugar terceiro, algo que nos une. Mas num governo que adota esse m�todo, n�o se pode admitir que exista esse terceiro, algo que nos une, porque esse terceiro destr�i a ret�rica da produ��o cont�nua de inimigos. Nada mais �bvio que isso gerasse a resposta descrita por Freud como a nega��o. E por que o negacionismo � importante como m�todo deste governo? Para criar os processos de transfer�ncia de autoridade simb�lica das institui��es para a autoridade pessoal de quem desafia.
Em sua avalia��o, qual � o impacto social desta conduta no enfrentamento da COVID-19?
O negacionismo representou um preju�zo dram�tico para o enfrentamento da COVID-19, custou a vida de milhares de brasileiros, nos colocou no segundo lugar do n�mero de mortes no mundo e certamente est� fazendo o Brasil ser representado por uma piada internacional. Porque nessa hora, para que todos fizessem o sacrif�cio, temos de recorrer �s figuras de autoridade, que v�o dizer, vai ser muito dif�cil, mas fa�o em nome de algu�m.
E nessa hora encontramos uma divis�o na pol�tica sanit�ria, marcada por uma hesita��o e pela nega��o do consenso cient�fico. Vai ser um pre�o que ainda n�o temos a justa medida, porque no momento em que a batalha est� sendo travada n�o se percebe o impacto capilar de algu�m que est� confrontando a ci�ncia como o principal instrumento que temos para lidar com um advers�rio que vem da natureza.
Como a psican�lise v� o discurso e pr�ticas que deslocam a centralidade da vida, – um valor universal, civilizat�rio – estimulando as condutas que aumentam as chances de mais pessoas morrerem?
Temos em ascens�o no pa�s uma ret�rica das armas, da guerra, da viol�ncia, que de fato est� dizendo para a gente que a vida n�o � o princ�pio mais importante, mas que poder�amos imaginar um todo social, muito melhor, se elimin�ssemos algumas formas de vida. Por exemplo, os ind�genas, os negros, aqueles que n�o s�o produtivos, por exemplo, os corruptos. Esse � um discurso, e que foi ganhando e amealhando for�as amparando-se nas fragilidades e dificuldades que temos em expandir a democracia brasileira.
Onde isso terminou? Numa democracia customizada, uma democracia para quem pode pagar, uma democracia de condom�nio. Sou simp�tico � sua coloca��o de que j� ter�amos alguns valores, que seriam de pretens�o universal, como a raz�o, como a justi�a, como a vida. Ocorre que essa ideia come�a a sofrer cr�ticas, come�a a sofrer certa desconfian�a de que seja uma falsa promessa. Porque haveria formas de realiza��o dessa ideia – que coloca a vida como um valor indiscut�vel – que excluem formas de vida espec�ficas.
� o que podemos chamar de necropol�tica. N�o se trata da aplica��o do princ�pio de preserva��o da vida – como o faz a biopol�tica -, mas da pr�tica de deixar morrer e de negar o processo de exterm�nio, o adoecimento ou a desprote��o que leva � morte. Enquanto a biopol�tica nos oferece verdadeiros monumentos para o controle das popula��es – como a escola, os hospitais –, a necropol�tica se caracteriza pelo adiamento e pela manuten��o de situa��es de mis�ria e de desprote��o.
� isso o que explica a lentid�o na tomada de medidas protetivas e o pouco caso com a vida das pessoas praticados pelo presidente. A necropol�tica, ent�o, j� estava presente na desaten��o que d�vamos para uma s�rie de vidas que eram praticamente mat�veis. Ent�o temos com o coronav�rus um fato, que come�a a ficar mais pronunciado: parece que tem vidas que valem mais do que outras vidas.
Que tipo de moralidade emerge de um governo que ao se omitir, tem por consequ�ncia maior probabilidade de mortes em determinados grupos sociais?
� claro que este n�o � um discurso que vai ser expl�cito. Mas � uma democracia que tem no n�vel t�cito de seu discurso a ideia de que se a gente tirar algumas pessoas, vai ficar melhor para quem sobreviver. � uma moral da sobreviv�ncia. Uma moral do Big Brother, uma moral da elimina��o de concorrentes e de inimigos. Isso infelizmente chegou ao poder, gra�as a uma injun��o, uma constela��o de discursos, que no fundo apelaram para algo do tipo assim: se voc� pode ser feminista, ent�o eu posso ser machista; se voc� pode defender a inclus�o da popula��o negra, eu quero defender a supremacia branca; se voc� pode ser racionalista e acreditar na ci�ncia, ent�o eu posso acreditar no neopetencostalismo de resultados.
A invers�o de princ�pios universais na defesa de interesses particulares. E na hora que a gente consagrou uma conversa p�blica com essa dimens�o, a gente abriu as portas para o negacionismo cient�fico, abriu as portas para o negacionismo moral.
Embora a educa��o formal seja, em princ�pio, um elemento central para combater o negacionismo, h� tamb�m pessoas adultas e de alta escolaridade que adotam alguns racioc�nios simplificadores para o enfrentamento da COVID-19. O negacionismo se vincula a algum tipo de regress�o intelectual?
Quando apresentei a ideia de nega��o, disse que ela ocorre por algo doloroso ou algo que supera a nossa capacidade de simboliza��o por ser excessivamente complexo. Vamos encontrar a ideia de anomia em �mile Durkheim, da impossibilidade de reconhecer uma sociedade que se torna mais complicada do que os nossos dispositivos de interpreta��o.
O que ela desencadeia? A regress�o, as formas de pensamento regressivas. Voltamos da institui��o que representa a raz�o no seu sentido impessoal para as institui��es que representam a raz�o no sentido pessoal: voltamos para a fam�lia. Como a ideia de que a Terra � plana, entre v�rias outras, se infiltram a�? Ao questionar verdades muito s�lidas, muito consensuais, voc� mostraria que a ci�ncia n�o est� dando as respostas que gostaria para todas as perguntas que voc� tem.
E ao acentuar isso, acentua o desamparo das pessoas. Voc� diz assim para elas: “Olha, essa complexidade n�o vai ser explicada no campo da ci�ncia”. Ent�o, quem vai explicar isso? As narrativas mais simples, na religi�o. Ao conseguir dividir a autoridade simb�lica, se produz efeitos de reempoderamento da autoridade particular. Hoje, temos um n�vel de complexidade na conversa que foi trazido por v�rios fatores, entre eles, o acesso pela primeira vez a um conjunto grande de pessoas � linguagem digital, que pode participar de uma conversa e opinar publicamente segundo motivos e raz�es em rela��o aos quais nunca foram indagados e n�o foi educado para isso.
Essa busca pelo simples, pelo familiar, como atalho cognitivo, vem sendo explorada por pol�ticos?
H� uma expressiva quantidade de pessoas que est�o diante de um mundo muito complexo e s�o incitadas a formas de pensamento muito simplificadas. Qual � a forma mais simples do ponto de vista da psican�lise para operar com grupos? � aquilo que o autor chamado Wilfred Bion chamou de defesa esquizoparan�ide. Diz respeito a dividir e introduzir um inimigo. Dividir, de tal forma a reencontrar seguran�a e a identidade, desde que seja criado um inimigo que nos une.
Desde que se crie uma diferen�a, cuja estrutura � a esquize: a ruptura, a divis�o sem reconcilia��o, � a quebra. Isso n�o � um fen�meno s� brasileiro. Mas que grassa, prospera, pela conjun��o entre uma crise do modo neoliberal de produ��o, com consequente aumento de desemprego, simult�neo ao aumento de perspectiva de ascens�o social, com a entrada das massas digitais.
H� um novo discurso sobre o sofrimento ps�quico, que n�o � mais referido ao conflito, mas referido � mudan�a de intensifica��o das coisas, tratadas por meio de ideais hiperinflacionados como encontramos em torno do discurso sobre a felicidade. Ent�o, esses tr�s elementos concorrem para a produ��o dessa bomba rel�gio de regress�o pol�tica e cognitiva.
Olhando para o Brasil hoje, que tipo de sociedade se projeta, em sua opini�o, para daqui a cinco anos?
Acho que uma coisa interessante que a experi�ncia de COVID-19 junto com pol�tica vai deixar para a gente � que acabou a cultura da culpa. Discutir de forma simplificada: a culpa � do PT, a culpa � do Olavo de Carvalho, obviamente � um discurso passadi�o que n�o d� mais conta para o tamanho do problema que � a nossa realidade.
Isso est� ficando muito claro para as jovens gera��es, que s�o, no fundo, aquelas que fazem a diferen�a. Esse � o ponto de virada, esses que experimentaram na carne essa grande engana��o. “Como me deixei cair numa conversa t�o simples?” Essas perguntas s�o formativas.
A experi�ncia est� a�, foi desilusiva, e acho um grande potencial transformativo que estamos gerando a partir da mis�ria. N�o foi pelo amor, mas lamentavelmente vai ser pela dor.
Isso est� ficando muito claro para as jovens gera��es, que s�o, no fundo, aquelas que fazem a diferen�a. Esse � o ponto de virada, esses que experimentaram na carne essa grande engana��o. “Como me deixei cair numa conversa t�o simples?” Essas perguntas s�o formativas.
A experi�ncia est� a�, foi desilusiva, e acho um grande potencial transformativo que estamos gerando a partir da mis�ria. N�o foi pelo amor, mas lamentavelmente vai ser pela dor.

A arte da quarentena para principiantes
De Christian Dunker
Boitempo Editora
73 p�ginas
R$ 15
E-book: R$ 15