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Estado de Minas PENSAR

Fantasmas e mist�rios de Roberto Bola�o seguem vivos 20 anos ap�s morte

Em 2023, h� uma fila de efem�rides em torno do escritor: 70 anos de nascimento, 20 anos da morte e 25 anos do lan�amento de 'Os detetives selvagens'


14/07/2023 04:00 - atualizado 17/07/2023 15:02
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Bolaño
Bola�o (foto: Quinho)

 

Schneider Carpeggiani *

Especial para o EM

 

 

Ele n�o est�. Foi a sensa��o inicial que tive h� uns 10 anos quando visitei Blanes, cidade catal� que fica a menos de duas horas de trem de Barcelona. Na mem�ria que guardo, Blanes era um balne�rio meio “mofado”, de vento intenso a castigar o rosto, com uma esp�cie de rochedo dos suicidas a recepcionar os turistas, que desembarcam na sua esta��o. Havia uma feirinha de artesanato (ou “dos hippies”, como ainda se dizia por l�) perto da praia, cercada por in�meros restaurantes servindo paella de arroz negro e uma livraria, na �poca, j� quase sem livros. Os seus moradores soavam pr�ticos na simpatia monossil�bica com que recebiam os v�rios tipos de visitantes, que se aglomeram sobretudo a partir dos �ltimos dias de maio. H� aqueles que chegam em busca das promessas do ver�o da Costa Brava. E tamb�m os que, ainda que em n�mero bem mais reduzido, n�o est�o necessariamente � procura de sol. Est�o ali por serem bola�istas selvagens.

 

Blanes seria uma atra��o n�o t�o sui generis do mapa tur�stico catal�o, se l� n�o tivesse chegado, em 1985, um chileno de farta cabeleira, de 32 anos, ap�s temporadas (ou mesmo ex�lios?) em cidades como Girona, Barcelona e Cidade do M�xico. Tinha ent�o planos de ganhar a vida como um pequeno comerciante (um dos “hippies” da feirinha local), enquanto se arriscava em concursos liter�rios. Mas acabou se tornando um dos nomes mais importantes da literatura contempor�nea (talvez o mais influente da Am�rica Latina, ap�s a gera��o de Gabriel Garc�a M�rquez e de Mario Vargas Llosa, a do chamado ‘Boom Liter�rio’ dos anos 1960): Roberto Bola�o, falecido h� 20 anos, num 15 de julho, v�tima de doen�a hep�tica degenerativa, ap�s uma dram�tica espera na fila para transplante de f�gado.

 

Mesmo que relutasse a habitar num sentimento de desterro, que ironicamente chamava de “triste folclore dos exilados”, e insistisse que sua p�tria consistia nos filhos e na sua biblioteca, Bola�o colou sua imagem � de Blanes, tanto na escrita quanto na vida pessoal. L� formou fam�lia, escreveu suas principais obras e permaneceu at� os �ltimos dias. Ainda que j� atra�sse uma legi�o de admiradores do escritor chileno, com at� jovens autores investindo em temporadas liter�rias num dos apartamentos que o escritor viveu, a cidade n�o contava com uma rota bola�ista oficial, quando l� estive.

 

A sua passagem pelo balne�rio, ent�o, era registrada apenas numa placa na biblioteca p�blica municipal e na mem�ria dos moradores que aceitavam trocar algumas palavras com os bola�istas selvagens perdidos. Tenho anotado at� hoje o depoimento da propriet�ria de uma loja pr�xima � rua onde Bola�o morou, que � singular em sua banalidade despreocupada. Quando perguntei se ela tinha alguma lembran�a do ex-vizinho famoso, disse apenas: “Era um homem simp�tico, mas estranho... Um artista”.

 

Atualmente � poss�vel encontrar, no site oficial de Blanes, um guia em PDF com uma rota oficial para os leitores de Roberto Bola�o seguirem. J� n�o era sem tempo. Em 2023, h� uma fila de efem�rides em torno da vida e da obra do escritor: s�o os 70 anos de nascimento, os 20 anos da morte, os 25 anos do lan�amento do seu livro mais famoso, “Os detetives selvagens” (ganhador do Pr�mio R�mulo Gallegos), e os 30 anos do seu romance de estreia solo, “Pista de gelo”, que se passa num balne�rio na Costa Brava id�ntico a Blanes, mesmo que a cidade catal� jamais seja nomeada. 

 

Mas h� ainda uma outra efem�ride, t�o ou mais poderosa que todas essas outras, sobretudo para come�armos a entender algumas das chaves da literatura de Bola�o: os 50 anos do golpe de estado, o 11 de setembro chileno, que levou Augusto Pinochet (1915-2006) ao poder at� 1990 e deixou como heran�a uma das ditaduras mais sangrentas da hist�ria da Am�rica Latina.

 

Se hoje o PDF do guia da rota Bola�o ajuda a localizar os endere�os de Blanes que o escritor conviveu na sua rotina, o curioso � que muitos deles nem mais existem. Viraram ilus�es adequadamente feitas para turistas. O que s� me fez pensar o Ele n�o est�, j� quando da minha visita ao balne�rio h� dez anos. No entanto, dif�cil mesmo � tra�ar a sua rela��o com a capital Santiago ou com o Chile em si. Na adolesc�ncia, aos 15 anos, mudou-se para o M�xico com a fam�lia e retornou apenas em 1973 (justamente naquele 1973), para ajudar no projeto de reconstru��o chilena do presidente Salvador Allende (1908-1973). 

 

 

Pistas falsas

 

Com o golpe de Pinochet, no entanto, teria sido preso por alguns dias, ap�s ter sido denunciado por colegas que se aliaram ao novo regime (os tais agentes secretos do golpe, ou do que ele chamava tamb�m de agentes secretos do “mal absoluto”, um tema caro aos seus livros). Liberto, retornou ao M�xico, como o exilado que afirmava n�o acreditar em ex�lio. Essa � uma �poca da sua vida bastante obscura e cheia de informa��es desencontradas, muitas delas proferidas pelo pr�prio Bola�o em entrevistas. S�o as pistas falsas t�picas de algu�m que se acreditava subversivo, clandestino ou simplesmente um fugitivo.

 

Ainda falta a escrita de uma grande biografia, que junte as pe�as e confronte o que de fato ele viveu com aquilo que foi ficcionalizado nos livros. Tal e qual um dia me faltou um guia seguro de onde “encontr�-lo” por Blanes.

 

Ironicamente, talvez a poss�vel biografia definitiva, que reconstrua seu 11 de setembro de 1973, e o PDF com o guia da sua rota pelo balne�rio catal�o, n�o ajudem a ler o mais importante, a sua obra. Uma obra que tem na incerteza, na quebra da hierarquia do que devemos lembrar e precisamos esquecer e no desaparecimento s�bito como algumas das suas principais marcas. Em determinado momento, no romance “Estrela distante” (1996), o narrador se pergunta “como seguir algu�m que n�o se mexe?”, para se referir aos criminosos da ditadura que sumiram com o passar dos anos ou apenas foram apagados pelo trauma na mem�ria das suas v�timas, muitas delas tamb�m j� aniquiladas.

 

Esse mesmo questionamento � ecoado na ep�grafe do livro, no verso, tamb�m em formato de pergunta, “Qual estrela cai sem que ningu�m a veja?”, retirado de um texto de William Faulkner (1897-1962). Sabemos que os horrores da ditadura ocorreram, que os criminosos podem estar ainda ali do lado, mas como apontar a culpa e encerrar o caso em definitivo, se o trauma colocou um manto por cima da mem�ria e tudo parece embolado? Penso nessa chave para ler Bola�o e recordo uma leitura que o escritor Ricardo Piglia (1941-2017) fez de “O processo”, de Franz Kafka (1883-1924), em que o culpado da persegui��o policial n�o seria o protagonista Josef K., ou algu�m que o teria feito uma den�ncia falsa. O culpado seria a pr�pria mem�ria do personagem, que “apagou” o que seria o principal da hist�ria, lan�ando a todos n�s (leitores e personagens) numa trama de superf�cie nonsense.

 

Com o golpe de 1973, Bola�o parece querer dizer que um novo mundo tamb�m se iniciou. Um mundo em que todos os envolvidos estariam lan�ados numa esp�cie de maldi��o, marcada por uma viol�ncia, a “verdadeira viol�ncia”, da qual “n�o se pode escapar, pelo menos n�o n�s, os nascidos na Am�rica Latina na d�cada de cinquenta, os que rond�vamos os vinte anos quando morreu Salvador Allende” (como aponta numa passagem do conto “O olho Silva”). 

 

Assim como o personagem andarilho Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1947-1616), Bola�o saiu do Chile e n�o conseguiu mais reconhecer o mundo sem o seu “trauma de forma��o”, sem o seu recalque que reapareceu sob uma nova m�scara, com menor ou maior intensidade, a cada novo livro. A descri��o da tomada do Pal�cio de la Moneda, no seu romance “Noturno do Chile” (2000), resume a trag�dia hist�rica em pouqu�ssimas linhas. E a reconta com elipses e um tom brusco, que arrisco a comparar com as primeiras cenas do “G�nesis” b�blico, por sua precisa conten��o em narrar o come�o de uma nova era: “(…) veio o golpe de Estado, o levante, o pronunciamento militar, bombardearam La Moneda, e, quando terminou o bombardeio, o presidente se suicidou e tudo acabou. Ent�o eu fiquei quieto, com um dedo na p�gina que estava lendo, e pensei: que paz. Levantei, fui � janela: que sil�ncio. O c�u estava azul, um azul profundo e limpo, marcado aqui e ali por algumas nuvens. Ao longe vi um helic�ptero. Sem fechar a janela, ajoelhei e rezei pelo Chile, por todos os chilenos, pelos mortos e pelos vivos”.

 

Se o problema da mem�ria � uma das chaves de interpreta��o que lancei m�o at� agora para entender a centralidade da obra de Roberto Bola�o na literatura contempor�nea, recorro aqui tamb�m a outra chave poss�vel. Uma chave que volta a designar a sina de quem (repito!) se acredita subversivo, clandestino ou simplesmente um fugitivo. Trata-se da recorr�ncia de personagens que entram e somem das hist�rias, sem maiores explica��es. S�o os desaparecidos como protagonistas, que encontramos em algumas de suas principais obras, como “Estrela distante”, “2666” (2004) e “Os detetives selvagens”. Voltamos aqui � pergunta: “Qual estrela cai sem que ningu�m a veja?”.

 

 

A reescrita de uma busca

 

� justamente essa chave que o escritor senegal�s, radicado na Fran�a, Mohamed Mbougar Sarr utiliza no premiado best-seller “A mais rec�ndita mem�ria dos homens” (recentemente lan�ado no Brasil pela Editora F�sforo), que fez dele o primeiro autor da �frica subsaariana a vencer o Pr�mio Goncourt. O livro parece reescrever a busca pela misteriosa escritora mexicana Ces�rea Tinajero, que marca “Os detetives selvagens”, e lembrada j� na ep�grafe da obra de Sarr, retirada de um trecho do romance do chileno.

 

Sarr narra a procura desenfreada de um jovem escritor senegal�s por T.C. Elimane, que desapareceu ap�s a publica��o do seu romance “O labirinto do inumano”. Um livro que tem influenciado de forma radical a nova gera��o de autores africanos. Por�m, sua pot�ncia reside mais em sua aura de mist�rio, do que numa concreta leitura compartilhada. Da mesma forma que n�o se sabe o paradeiro de Elimane, poucos tamb�m t�m ideia da trama de “O labirinto do inumano”. Raros s�o aqueles que de fato tiveram o livro em m�os. E quem conseguiu, parece ter recebido junto uma esp�cie de sina maldita. � a literatura como uma aventura de investiga��o radical. Mas agora os detetives s�o escritores, que compactuam um passado comum de viol�ncia, da verdadeira viol�ncia, oriunda das ditaduras, do processo brutal vivido pelas na��es colonizadas e por suas moderniza��es prec�rias.

 

A procura de Sarr por Elimane me leva a recordar uma certa passagem de “Os detetives selvagens”, perdida na primeira parte do romance de Bola�o, e que retrata a exist�ncia de algo fantasmag�rico sempre a rondar. Uma passagem em que o narrador se aproxima da janela de casa para averiguar uma estranha movimenta��o ouvida na rua � sua frente. Ele confere se h� algo ou algu�m l� fora. Mas n�o percebendo coisa alguma de diferente, logo d� as costas e vai se ocupar de outro assunto e “sem saber por que tinha se aproximado da janela, sem saber o que esperava encontrar e que justo nesse momento, quando j� n�o havia ningu�m na janela e s� piscava uma lamparina de vidros coloridos no fundo do quarto, aparecia”. 

 

 

De volta ao Chile

 

Comecei esse texto por uma viagem � Catalunha, mas irei termin�-lo falando do Chile. � que preciso pontuar duas passagens em especial. Roberto Bola�o retornou a Santiago apenas em novembro de 1998, como jurado de um concurso de contos, organizado pela revista Paula. � �poca, j� era um escritor de fama ascendente, com a publica��o recente de “Os detetives selvagens”. Suas impress�es de retorno sa�ram na imprensa chilena e depois foram reunidas na colet�nea de discursos e artigos cr�ticos “Entre par�ntesis” (2004), publicada postumamente e ainda in�dita no Brasil. Em determinado momento, lemos: “Foram vinte dias no Chile que estremeceram o mundo (mental) em que habito. Foram vinte dias que pareceram vinte sess�es de humanidade despencando. Vinte dias para chorar e rir aos gritos”.

 

E por fim, quando de sua morte naquele 15 de julho de 2003, o poeta chileno Nicanor Parra (1914-2018) escreveu a seguinte despedida: “Boa noite meu doce pr�ncipe Hamlet. Perda irrepar�vel para o Chile. Perda irrepar�vel para mim. Perda irrepar�vel para todos n�s”. E completou: “Devemos um f�gado para Roberto Bola�o”. Vinte anos depois, continuamos com a d�vida aberta.  

 

 

Leituras recomendadas

 

Para come�ar:


“Estrela distante” 

(Tradu��o de Bernardo Ajzenberg, Companhia das Letras, 2009): 

 

A novela de 1996 � a reescritura expandida de um dos contos de “A literatura nazista na Am�rica”, lan�ado no mesmo ano, que prop�e uma esp�cie de besti�rio a descrever a rela��o de escritores com o chamado “mal absoluto”, ou seja, com a extrema direita. Em “Estrela distante”, encontramos os temas que marcariam a seguir os textos mais famosos de Roberto Bola�o: os escritores que desaparecem, os agentes duplos da repress�o e o problema central da mem�ria a assombrar as v�timas das ditaduras, tanto no Chile quanto no restante da Am�rica Latina.

 

O essencial:


“Os detetives selvagens” 

(Tradu��o de Eduardo Brand�o, Companhia das Letras, 2006)

 

Sempre fico na d�vida entre “Os detetives selvagens” e o p�stumo “2666”, j� que a busca desesperada por escritores misteriosos, em meio a um cen�rio de viol�ncia brutal, marque ambos os livros. No entanto, a figura m�tica da escritora Ces�rea Tinajero, desaparecida no deserto, e as desventuras dos detetives-poetas Ulisses Lima e Arturo Belano permanecem como irremedi�veis para entender o legado do escritor chileno. E temos aqui tamb�m o c�lebre par�grafo de abertura, que empurra o leitor sem air bag num universo onde dificilmente ir� escapar: “2 de novembro. Fui cordialmente convidado a fazer parte do realismo visceral. Claro que aceitei. N�o houve cerim�nia de inicia��o. Melhor assim”.

 

O que vem por a�: 


“O ga�cho insofr�vel” 

(Companhia das Letras) 


“Toda a orfandade do mundo” (Relic�rio)

 

Dois lan�amentos marcam, no Brasil, esse 2023 de efem�rides bola�ianas. Em novembro, a Companhia das Letras publica “O ga�cho insofr�vel” (lan�ado originalmente em 2003), que re�ne cinco contos e duas confer�ncias. Destaque para a transcri��o do discurso ‘Literatura + doen�a = doen�a’, em que o autor relaciona (com sua ironia ferina) seus problemas de sa�de aos tamb�m enfrentados por grandes nomes da literatura, como Franz Kafka. J� a Editora Relic�rio lan�a, entre outubro e novembro, uma nova edi��o do esgotado “Toda a orfandade do mundo” (publicado originalmente em 2016), reuni�o pioneira no Brasil de ensaios sobre a obra de Roberto Bola�o, organizada por Antonio Marcos Pereira e Gustavo Silveira Ribeiro. 

* Schneider Carpeggiani � jornalista, doutor em teoria liter�ria pela UFPE e curador


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