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Em busca da alma perdida

Destinado ao p�blico infantojuvenil, livro da escritora polonesa Olga Tokarczuk (Nobel de Literatura de 2018) com a ilustradora Joanna Concejo � uma sutil e bela f�bula sobre o valor da exist�ncia em um mundo de "pessoas apressadas e exaustas"


06/11/2020 04:00

Uma obra que desafia o conceito tradicional do objeto livro. F�bula contempor�nea em que o texto visual assume protagonismo e o verbal come�a j� na ep�grafe, antes de a folha de rosto anunciar o nome das autoras. Destinado ao p�blico infantojuvenil, A alma perdida, da Nobel de Literatura de 2018, a polonesa Olga Tokarczuk, questiona o modo de vida predominante do presente, marcado pela pressa. Traz ainda a aten��o para sutilezas que se diluem em tempos �speros: a capacidade de suportar o tempo e sua irm� g�mea, a paci�ncia, e a busca pelo essencial do existir.

A narrativa ganhou em sedu��o gra�as ao encadeamento dos desenhos da ilustradora polonesa Joanna Concejo, nascida em 1971. Em 2018, o livro rendeu-lhe a men��o especial do Pr�mio Bologna Ragazzi. Note-se que a importante premia��o ao visual foi revelada antes de a autora do verbal ser declarada ganhadora do Nobel daquele ano, an�ncio ocorrido somente em 2019. O fato refor�a a import�ncia da participa��o de Concejo para a defini��o e a qualidade art�stica do produto destinado a crian�as, mas tamb�m capaz de comover adultos.  

A decis�o das autoras de iniciar o livro com um trecho extra�do do texto central funciona como antecipa��o para o universo da narrativa e refor�a o car�ter fabular criado pela Nobel, nessa que � sua �nica obra para p�blico infantojuvenil. Ap�s sequ�ncia de imagens em preto e branco, ao lado de um desenho que lembra um selo de cartas, est� escrito:

“Se algu�m pudesse nos olhar do alto, veria que o mundo est� repleto de pessoas que andam apressadas, suadas e exaustas, e tamb�m veria suas almas, atrasadas e perdidas no caminho…”

Fica evidente o sentido de advert�ncia, caracter�stico do g�nero da f�bula. Na sua etimologia latina, trata-se de narrativa curta protagonizada por animais n�o humanos que apresentam sentido moral em seu desenrolar dram�tico. Sem recorrer ao antropomorfismo usual do g�nero, a f�bula de Tokarczuk se desenrodilha em torno de homem que trabalhou tanto que perdeu a dimens�o do sens�vel e nem se lembra do nome pr�prio. Quase n�o se sente humano, pois, quando “as almas perdem as cabe�as” ... “as pessoas deixam de ter cora��o”. 

 Discordo, portanto, da maioria das cr�ticas que enquadram o livro entre os contos de fada, g�nero tamb�m afirmado na contracapa da edi��o. Entendo que o plano do maravilhoso aparece apenas no desfecho, enquanto o alerta moral perpassa a totalidade do narrar, ainda que sob dic��o delicada, em ritmo de sussurro. A doce surpresa, o efeito de maravilhamento, transcorre na descoberta da forma da alma – n�o darei spoiler descrevendo-a –, antecedida por an�ncio verbal: “At� que, numa tarde, algu�m bateu na porta. Na soleira apareceu a alma perdida de Jo�o — cansada, suja e arranhada”.    

Esse momento de maior intensidade da narrativa se reveste de tens�o extra devido ao inesperado. A alma revela-se apenas na dimens�o visual. Um primeir�ssimo plano a apresenta, em preto e branco, aos que veem/leem. Na p�gina ao lado, no mesmo tipo de enquadramento, aparece pela primeira vez o retrato de Jo�o, colorido. S�o dissonantes, apenas o olho apresenta semelhan�a.  

A solu��o de deixar para as imagens a revela��o da forma da alma demonstra inteligente articula��o entre as autoras, pois preservou a autonomia dos textos verbal e visual e, ao mesmo tempo, os tornou intrinsecamente complementares.  Antes de se chegar ao cerne do enredo, muitas imagens, t�picas de pa�ses situados bem acima do Equador, com suas paisagens brancas, anunciam o ambiente em que transcorre a crise do protagonista.

Apenas duas p�ginas comportam a hist�ria verbal. Como Jo�o se sente despossu�do, limitado, ensimesmado e sem vida, o texto est� inscrito sobre folha que recorda velhos cadernos de matem�tica com seus quadrados reticulados, efeito que produz a impress�o de um tempo de vida gasto, mal gasto. A escrita sucinta lembra antigos e ent�o bem-elaborados textos de anamnese. No consult�rio de m�dica s�bia e velha, o personagem busca ajuda, sendo aconselhado a encontrar um lugar s� para si e esperar o reencontro com aquilo que o anima, o sopro vital, a alma.

A partir desse momento, palavras praticamente cessam. Aparecem somente raros e discretos avisos verbais. S�o as tramas do texto visual que permitir�o o preenchimento da narrativa, de livre interpreta��o para cada ser que l�. Muitas p�ginas desdobram-se at� o desfecho da a��o, quando o verbal reaparece brevemente. Imagens emolduradas. Fotos antigas, cart�es-postais, desenhos de interiores dom�sticos – enfim, muitos recursos imag�ticos contam da longa espera de Jo�o.

Mudan�as de 
cen�rios e esta��es

O tempo narrativo constr�i-se na mudan�a de cen�rios, que tamb�m � a de esta��es. Aos poucos, a decis�o de se aquietar e o reencontro de Jo�o com sua alma s�o acompanhados de mudan�a nos padr�es de cores que ambientam a narrativa. O fundo reticulado desaparece. O livro vai se tornando colorido, adquire vivacidade. Tamb�m ele passa a ser alma intensa.

Surgem plantas de diferentes tons de verde e variadas origens. Entra em destaque a costela-de- ad�o (Monstera deliciosa), com   suas folhas que remetem ao formato do cora��o. A flor associada � gratid�o, a camp�nula, se veste de colorido. As esp�cies nativas e ex�ticas parecem dizer que a psique necessita da natureza e de se alimentar de experi�ncias dissemelhantes.

Sendo alma, tema atemporal e universal, a escolha desse assunto por parte de Tokarczuk transformou A alma perdida em narrativa de ampla aceita��o nos  pa�ses em que foi traduzida. Lan�ado em 2017, escrito ao longo de v�rios anos, conforme a escritora conta em entrevistas, ele permaneceu guardado at� a autora receber a provoca��o de sua editora sobre se tinha textos para crian�as.

Logo ao ser publicado, o pr�mio recebido por Concejo em Bolonha o tornou bastante divulgado.  Na �poca, o j�ri avaliou que “o tema filos�fico deste livro, a pr�pria quest�o da alma, � explorado por meio de ilustra��es que transmitem uma sensa��o de paz e medita��o”. Acrescentou ainda: “A artista Joanna Concejo representa a melancolia e a alegria evocadas pela mem�ria com linhas finas e desenhos minuciosos”. Embora seja prosa brev�ssima e condensada, A alma perdida resulta de muitas pesquisas feitas pela Nobel, que � psic�loga de forma��o. No seu romance para adultos Sobre os ossos dos mortos, Tokarczuk criou narradora-protagonista, Janina Dusheiko, que lan�a in�meras reflex�es duvidando da exist�ncia da alma – “As almas viajariam para a luz com a velocidade da luz. Isso se de fato existir algo como a alma”, diz ela em uma das 10 cita��es relativas ao tema. J� na fic��o para a inf�ncia, a voz narrativa n�o tem d�vidas da exist�ncia da alma. No reino infantil, a autora autoriza-se a criar acontecimentos desvinculados das d�vidas do real.

Concejo, a quem admiro desde que conheci a vers�o coreana que fez para Chapeuzinho Vermelho – a menina � conduzida por fio de linha de bordado vermelha, em floresta que se torna personagem –, recorreu � figura��o tradicional dos corpos para dar vida � jornada que Jo�o, suas leitoras e seus leitores fazem em busca de si. Com habilidade e ternura, usou l�pis – e, talvez, bico de pena – para criar universos em que o sil�ncio se faz personagem fundamental. Como ela disse ao jornal digital Brightness: “em uma linha feita a l�pis, a alma est� nua”.

A forma de trabalhar da dupla de autoras conterr�neas, que gostam de destacar a conviv�ncia em suas inf�ncias com o imagin�rio das florestas polonesas, j� foi enquadrada como aproximado ao tradicional g�nero liter�rio conhecido naquele pa�s como silva rerum (= floresta das coisas). Trata-se de am�lgama de diferentes relatos, entre ficcionais e informativos, que se assemelha a colcha de retalhos. No belo A alma perdida, Tokarczuk e Concejo parecem ter se embrenhado na floresta que � a intimidade dos seres e das coisas para oferecer relato po�tico sobre a necessidade de fluidez no existir.
*Gra�a Ramos � doutora em hist�ria da arte, autora de Habitar a inf�ncia: como ler literatura infantil (Tema Editorial) e A imagem nos livros infantis: caminhos para ler o texto visual (Aut�ntica)


A alma perdida
.Olga Tokarczuk e Joanna Concejo
.Tradu��o de Gabriel Borowski
.Todavia
.48 p�ginas
.R$ 48     


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