
Por que a obra de Dostoi�vski desperta tanto interesse hoje, quase um s�culo e meio ap�s sua morte? Seria por causa da profundidade psicol�gica, sociol�gica e antropol�gica, um mergulho na mente humana, e a diversidade para estudo de v�rias disciplinas?
Sim. Sua pergunta j� � quase uma resposta. Mas h� outros temas que tornam Dostoi�vski atual. Por exemplo, em sua obra h� duas formas de exclus�o social. 1) o indiv�duo faz parte do sistema, mas n�o � por ele visto nem reconhecido. � o caso de Makar Di�vuchkin, protagonista de Gente pobre. Ele � um amanuense, tem consci�ncia da sua utilidade e se orgulha dela, do seu trabalho como forma honesta de ganhar seu p�o. Mas o sistema n�o reconhece isso, o que o deixa irritado e revoltado. Mas sua revolta ainda � passiva. O mesmo ocorre com o senhor Goly�dkin, protagonista de O duplo.
� um amanuense e funcion�rio exemplar, aguarda uma promo��o que nunca vem, e acaba criando em seu imagin�rio doentio um duplo de si mesmo, que acaba recebendo as promo��es que "no real" seriam destinadas a ele, Goly�dkin, bem como substituindo-o na vida social com a qual ele sonhava. Assim, Goly�dkin tenta saltar por cima das leis que regem a sociedade nobre e acaba louco. 2) A segunda forma de exclus�o social � representada por Rask�lnikov em Crime e castigo. Este � visto pelo sistema e dele exclu�do de fato: como estudante de direito, � exclu�do da universidade por falta de condi��es de custe�-la. E como resposta, desenvolve a teoria dos homens ordin�rios e extraordin�rios, cabendo a estes o direito de decidir inclusive quem deve viver ou n�o. E Rask�lnikov mata a velha usur�ria, que exerce na microestrutura da sociedade capitalista o mesmo papel que os bancos, com seu sistema de penhor, exercem na macroestrutura dessa sociedade.
E como Napole�o foi o respons�vel pela consolida��o dessa sociedade, perpassa todo o romance um di�logo de Rask�lnikov com Napole�o, atrav�s do qual o primeiro justifica seu ato. Sua revolta, ainda que simb�lica, � um chamamento � luta contra a exclus�o social, um dos temas cruciais de nossa atualidade. Esse � apenas um de v�rios exemplos que tornam Dostoi�vski sempre atual.
� um amanuense e funcion�rio exemplar, aguarda uma promo��o que nunca vem, e acaba criando em seu imagin�rio doentio um duplo de si mesmo, que acaba recebendo as promo��es que "no real" seriam destinadas a ele, Goly�dkin, bem como substituindo-o na vida social com a qual ele sonhava. Assim, Goly�dkin tenta saltar por cima das leis que regem a sociedade nobre e acaba louco. 2) A segunda forma de exclus�o social � representada por Rask�lnikov em Crime e castigo. Este � visto pelo sistema e dele exclu�do de fato: como estudante de direito, � exclu�do da universidade por falta de condi��es de custe�-la. E como resposta, desenvolve a teoria dos homens ordin�rios e extraordin�rios, cabendo a estes o direito de decidir inclusive quem deve viver ou n�o. E Rask�lnikov mata a velha usur�ria, que exerce na microestrutura da sociedade capitalista o mesmo papel que os bancos, com seu sistema de penhor, exercem na macroestrutura dessa sociedade.
E como Napole�o foi o respons�vel pela consolida��o dessa sociedade, perpassa todo o romance um di�logo de Rask�lnikov com Napole�o, atrav�s do qual o primeiro justifica seu ato. Sua revolta, ainda que simb�lica, � um chamamento � luta contra a exclus�o social, um dos temas cruciais de nossa atualidade. Esse � apenas um de v�rios exemplos que tornam Dostoi�vski sempre atual.
Em sua biografia monumental de Dostoi�vski, Joseph Frank diz que o degredo na Sib�ria transformou o escritor “de extremista filantr�pico com tend�ncias socialistas crist�s em um crente resoluto no povo russo como personifica��o nacional �nica dos ideais morais que julgara t�o atraentes no socialismo ut�pico”. O senhor compartilha dessa vis�o? O intelectual rom�ntico se tornou pragm�tico como um l�der campon�s ap�s a dura temporada em Omsk?
Tenho um imenso respeito e o maior carinho pela obra monumental do Frank. Embora concorde em parte com a afirma��o de Frank, discordo dessa defini��o de "crente resoluto no povo russo como personifica��o nacional �nica dos ideais morais...", pois ela corre o risco de ignorar a objetividade com que Dostoi�vski representa em seus romances os graves defeitos de forma��o e conduta desse mesmo povo. Escritos da casa morta � uma prova disso: todos os grandes criminosos que povoam essa narrativa s�o oriundos do pov�o, e o pr�prio narrador � um nobre culto que assassinou a pr�pria esposa.
Toda obra � em certa medida autobiogr�fica. Mas cada personagem de Dostoi�vski tem vida pr�pria e ideias pr�prias, que n�o coincidem necessariamente com as ideias do autor. � o caso de Ch�tov, personagem de Os dem�nios. Esse, em sua tentativa de justificar a qualquer custo a exist�ncia de Deus e como n�o consegue chegar a uma imagem objetiva, material de Deus, transfere-a para o povo russo, que ele considera o povo te�foro, vendo nele essa "personifica��o nacional �nica dos valores morais" a que se refere Frank. Mas Ch�tov � uma das muitas grandes personagens criadas por Dostoi�vski a partir de prot�tipos reais. Portanto, Ch�tov � Ch�tov, Dostoi�vski � Dostoi�vski.
Toda obra � em certa medida autobiogr�fica. Mas cada personagem de Dostoi�vski tem vida pr�pria e ideias pr�prias, que n�o coincidem necessariamente com as ideias do autor. � o caso de Ch�tov, personagem de Os dem�nios. Esse, em sua tentativa de justificar a qualquer custo a exist�ncia de Deus e como n�o consegue chegar a uma imagem objetiva, material de Deus, transfere-a para o povo russo, que ele considera o povo te�foro, vendo nele essa "personifica��o nacional �nica dos valores morais" a que se refere Frank. Mas Ch�tov � uma das muitas grandes personagens criadas por Dostoi�vski a partir de prot�tipos reais. Portanto, Ch�tov � Ch�tov, Dostoi�vski � Dostoi�vski.

Mesmo numa obra autobiogr�fica, Dostoi�vski evitou usar um protagonista como seu alter ego em Escritos da casa morta. Opta por um autor secund�rio e narrador (Gori�ntchikov, um criminoso comum e n�o um preso pol�tico, como ele), como o senhor diz na apresenta��o do livro. Seria para evitar censura do regime?
Seria para evitar censura, mas esse autor secund�rio ou imagem de autor � uma solu��o est�tica genial encontrada por Dostoi�vski para resolver o dif�cil problema do narrador, distanciando-o o m�ximo poss�vel de si mesmo. � claro que h� no narrador Gory�ntchikov v�rios elementos autobiogr�ficos, mas o que predomina em sua narra��o � a imagem de autor. Essa imagem de autor ou autor secund�rio n�o � uma inven��o de Dostoi�vski: ela j� se encontra em Dom Quixote, cuja autoria Cervantes atribui a um tradutor �rabe. Entre n�s, o exemplo mais not�vel de imagem de autor � o defunto autor Br�s Cubas, de Machado de Assis.
Qual o personagem de Dostoi�vski mais marcante inspirado no degredo na Sib�ria?
Dmitri Karam�zov, cujo prot�tipo real foi Dmitri Ilinski, hist�ria que Dostoi�vski conheceu pessoalmente no pres�dio siberiano de Omsk.
O pelot�o de fuzilamento e a clem�ncia de Nicolau I eram apenas teatro para aumentar o terror dos condenados, porque a senten�a pelo degredo j� estava decidida naquele 22 de dezembro de 1849. Dostoi�vski cita esse fato em algum momento subsequente de sua vida? Ele foi grato ao czar por isso e tamb�m pelo fim da servid�o, em 1861, apesar de ter sido condenado pelo regime?
Dostoi�vski cita esse fato em carta ao irm�o Mikhail, escrita no mesmo dia logo ap�s a farsa melodram�tica de Nikolau I. E n�o faz nenhuma men��o ao imperador, que morreu em 1855 e n�o teve nenhuma rela��o com as reformas de 1861, realizadas por Alexandre II, que ficou conhecido como o libertador dos camponeses. A rela��o de Dostoi�vski com o tsarismo, sobretudo ap�s 1861, sempre foi muito complexa, ora com alguns resvalos monarquistas, ora com cr�ticas demolidoras � desumanidade do regime. Mas, apesar desses resvalos, Dostoi�vski sempre foi um socialista crist�o, como se pode ver pelo texto "Socialismo e cristianismo", publicado no Di�rio de um escritor, de 1881, ano de sua morte.
Depois de tantos autores grandiosos do s�culo 19 (Dostoi�vski, Tolst�i, Tchekhov, Gogol, Turgu�niev...), por que ser� que a R�ssia n�o produziu mais escritores geniais nos �ltimos 100 anos?
G�nios como Gogol, Tolst�i e Dostoi�vski n�o se repetem, mas a R�ssia teve escritores ainda nos s�culos 19 e 20, como Vlad�mir Korolenko, Maks�m Gorki, Mikhail Bulg�kov, Konstantin Sierafim�vitch, Mikhail Ch�lokhov, Y�ri Ali�cha, Evgui�ni Zamy�tin, Andri�i Plat�nov e muitos outros da era sovi�tica, ainda desconhecidos no Brasil.
Quantas obras de Dostoi�vski e de outros autores o senhor j� traduziu? E qual foi a mais dif�cil?
Livros mesmo foram mais de 50. A tradu��o mais dif�cil foi a de O duplo, de Dostoi�vski.
ENTREVISTA / DANILO HORA Editor de Escritos da casa morta
ENTREVISTA / DANILO HORA Editor de Escritos da casa morta
“A LITERATURA RUSSA � ATEMPORAL”
Por que a literatura russa � t�o forte e continua despertando tanto interesse? Que elementos se encontram nos livros russos e que ainda fascinam tantos leitores? No caso de Dostoi�vski, seria por causa da profundidade psicol�gica, sociol�gica e antropol�gica e da diversidade para estudo de v�rias disciplinas?
Acredito que parte dessa for�a da literatura russa seja a capacidade de ir a fundo nos questionamentos que ela prop�e, de n�o se contentar com explica��es de fachada ou com as ferramentas de an�lise que j� estavam prontas na �poca. N�o por acaso, escritores como Dostoi�vski, Tolst�i e Gogol s�o tamb�m muito reverenciados como “pensadores”, naquele sentido mais antigo do termo, n�o como te�ricos. S�o obras que interessam muito ao fil�sofo, ao cientista social, ao antrop�logo, mas obras que est�o em busca do aspecto humano, de quest�es que em outros contextos ganhariam um tratamento abstrato, em busca de respostas que venham de uma experi�ncia humana. Creio que seja esse o car�ter atemporal desses escritores, principalmente de Dostoi�vski.
Existe algum autor russo do s�culo 20 ou atual que desperte interesse da Editora 34 e dos leitores brasileiros?
Eu, pessoalmente, acho que sob alguns aspectos a literatura russa do s�culo 20 � at� mais rica do que a do s�culo 19. N�s temos alguns autores em nosso cat�logo e alguns a serem lan�ados. Creio que o mais marcante, quanto � resposta do p�blico, tenha sido Contos de Kolim�, do Varlam Chal�mov, cuja obra � o �pice art�stico da chamada literatura de Gulag, uma parte fundamental da literatura russa do s�culo 20. N�s publicamos todos os Contos de Kolim�, em seis volumes, e a resposta do p�blico foi bastante surpreendente, por se tratar de uma obra t�o extensa e de um tema t�o pesado. Dostoi�vski �, certamente, um dos autores mais populares do nosso cat�logo. Os leitores acompanham, perguntam dos livros que ainda n�o sa�ram, nos cobram, pedem t�tulos novos.
Qual o perfil do leitor de Dostoi�vski no Brasil? Ele est� entre os cl�ssicos preferidos no cat�logo da Editora 34?
Eu n�o saberia dizer qual o perfil do leitor brasileiro de Dostoi�vski, mas sei que, no Brasil, Dostoi�vski � a principal porta de entrada para o mundo da literatura russa. Isso � algo que eu ouvia inclusive no curso de letras-russo da USP, de alunos e professores que se apaixonaram pela literatura russa, pelo “caminho” de Dostoi�vski. E uma das caracter�sticas da literatura russa, principalmente a literatura do s�culo 19, � que tudo ali est� interligado de alguma forma, respondendo �s mesmas perguntas que vinham da sociedade, s�o livros que comentam e respondem uns aos outros. � medida que voc� vai conhecendo melhor os autores e as obras dessa �poca, tudo o que voc� j� conhecia vai ganhando camadas novas, por isso me parece que para a maior parte das pessoas que se apaixonaram pela literatura russa, Dostoi�vski foi uma esp�cie de guia, o escritor que abriu todo aquele mundo a ser explorado. Dostoi�vski � certamente um dos autores mais populares do nosso cat�logo. Os leitores acompanham, perguntam dos livros que ainda n�o sa�ram, nos cobram, pedem t�tulos novos.
Em 11 de novembro de 2021, ser� comemorado o bicenten�rio de nascimento de Dostoi�vski. Alguma edi��o especial?
Escritos da casa morta encerra as obras de fic��o do autor. Mas temos, sim, uma surpresa para o bicenten�rio, no ano que vem. O �nico problema � que, como � surpresa, n�o vou poder contar.
