A biblioteca de Coetzee

Especial para o EM

Num dos textos de n�o fic��o que integram o inclassific�vel romance Di�rio de um ano ruim (2007), J. M. Coetzee nos oferece uma curiosa reflex�o sobre o embate entre os v�rus de origem animal e os seres humanos, valendo-se, para isso, da met�fora do jogo de xadrez. Segundo ele, os v�rus sempre jogam com as pe�as brancas, e n�s, humanos, com as pretas. E explica: “Os v�rus fazem seu movimento e n�s reagimos”.

Tr�s anos depois, num ensaio intitulado A peste segundo Philip Roth, o escritor sul-africano volta ao tema dos v�rus e da peste, desta vez a partir da leitura minuciosa do romance N�mesis (2010), do autor americano Philip Roth, com incurs�es em dois outros: Um di�rio do ano da peste (1772), de Daniel Defoe, e A peste (1948), de Albert Camus.

Esse ensaio, em tudo condizente com o que estamos vivendo  neste fat�dico ano de 2020, integra a colet�nea Ensaios recentes: 2006-2017, que acaba de chegar �s livrarias brasileiras, junto com a reedi��o de um outro livro do autor, Mecanismos internos: textos sobre literatura 2000-2005. Ambos t�m tradu��o de Sergio Flaksman e foram publicados pela editora Carambaia em edi��o limitada.

Mais conhecido por aqui como autor de fic��o, Coetzee � tamb�m um ex�mio cr�tico liter�rio e, mesmo nos seus romances, inseriu reflex�es sobre diversos temas e mesclou diferentes registros textuais, a exemplo de Di�rio de um ano ruim, entre outros. Como escritor, tradutor, pensador, professor universit�rio e pesquisador de literatura, nunca tomou esses of�cios como atividades excludentes, mas soube articul�-los por vias criativas, sem se render a f�rmulas e modelos legitimados. 

Isso se d� a ver tamb�m, em certa medida, nos dois livros de ensaios rec�m-publicados, visto que Coetzee neles incorpora alguns dos recursos narrativos usados em sua prosa de fic��o. Em muitos dos textos, escritores e livros s�o transformados em personagens vivos gra�as � maneira peculiar com que o ensa�sta lida com dados biogr�ficos dos autores comentados e narra o processo de composi��o dos livros que analisa. Al�m do mais, descreve os enredos com maestria, sonda os meandros ps�quicos dos personagens e discute certas passagens a partir de um olhar arguto e questionador.

Mecanismos internos � composto de 21 textos sobre 21 escritores, escritos originalmente, em sua maioria, para a prestigiosa The New York Review of Books.  Os sete primeiros tratam de autores europeus de diferentes pa�ses, que atuaram na conturbada primeira metade do s�culo 20, como Italo Svevo, Robert Musil, Bruno Schulz e Walter Benjamim. Os elementos biogr�ficos e contextuais desses autores s�o enfocados sob �ngulos imprevistos, conjugados ao pr�prio fasc�nio de Coetzee por eles. Do que resultam perfis pessoais e quadros hist�ricos mesclados de leituras cr�ticas de v�rias obras. O ensaio sobre Walter Benjamin, com �nfase sobre o livro Passagens, � o mais longo e passeia pela hist�ria pessoal e pol�tica do fil�sofo-escritor, num exerc�cio de admira��o n�o desprovido de coment�rios cr�ticos. E j� quase no final do texto, lemos, a t�tulo de n�o conclus�o: “O que foi Walter Benjamin: um fil�sofo? Um cr�tico? Um historiador? Um mero ‘escritor’? A melhor resposta talvez seja a de Hannah Arendt: ele foi ‘um dos inclassific�veis (…) cuja obra nem se enquadra na ordem existente nem cria um g�nero novo’”.

 Entre os 14 ensaios seguintes, encontramos uma s�rie sobre autores europeus do per�odo p�s-guerra – que inclui, entre outros, Paul Celan e W. G. Sebald –, � qual se segue um conjunto de sete textos sobre escritores de l�ngua inglesa, entre os quais destacam-se os excelentes William Faulkner e seus bi�grafos e Philip Roth, compl� contra a Am�rica.  Walt Whitman (o �nico autor do s�culo 19) tamb�m � enfocado num instigante texto sobre homoerotismo. J� na s�rie final, encontramos ensaios sobre livros de escritores fora do eixo europeu-americano, que, assim como Coetzee e alguns outros autores contemplados no volume, receberam o Nobel de Literatura: Nadine Gordimer (�nica mulher a elencar o livro), Gabriel Garc�a M�rquez e V. S. Naipaul. 

Trata-se, assim, de um conjunto diversificado – ainda que predominantemente masculino –, o qual evidencia a verve cr�tica de um dos maiores escritores contempor�neos em atividade. Nele, como diz M�rcio Ferrari na apresenta��o da colet�nea, “Coetzee compara tradu��es e biografias, passa em revista as refer�ncias intelectuais e leituras dos autores analisados, busca paralelos em outras obras e encontra influ�ncias insuspeitas”. Ao mesmo tempo, poder�amos acrescentar, ele n�o deixa de nos brindar com leituras dos livros que lhe provocaram alguma inquieta��o ou deixaram tra�os em sua pr�pria obra. 

Curiosamente, h� em Mecanismos internos um texto que, � diferen�a dos demais, desvia-se da literatura para se centrar no filme Os desajustados, dirigido por John Huston em 1961, cujo roteirista original foi o dramaturgo norte-americano Arthur Miller. V�-se que um dos prop�sitos de Coetzee, ao abord�-lo, � trazer � tona um tema que sempre lhe foi caro: a quest�o dos animais. 

Esse tema, ali�s, reaparece anos depois, por vias distintas, na bela e concisa leitura que o escritor faz da obra Platero e eu (1917), do espanhol Juan Ram�n Jim�nez, que conta a hist�ria de vida e morte de um asno, em sua intr�nseca amizade com seu “dono” humano. Leitura essa que foi inclu�da no outro livro de Coetzee, Ensaios recentes: 2006-2017, � qual se somam mais 22 textos de cr�tica liter�ria escritos ao longo de 11 anos.

Assim como Mecanismos internos, o volume se comp�e de uma cole��o de resenhas originalmente publicadas na The New York Review of Books, al�m das introdu��es que Coetzee escreveu para obras de sua “biblioteca pessoal”, que tiveram um papel na sua forma��o como escritor. 

A constela��o de livros e autores reunidos vai dos can�nicos aos menos conhecidos, contemplando fic��o, poesia e tradu��o. De Daniel Defoe (tamb�m presente, como j� vimos, no ensaio sobre Philip Roth) ao sul-africano Hendrik Witbooi (1830-1905), Coetzee passa por Nathaniel Hawthorne, Liev Tolst�i, Samuel Beckett, Robert Walser e Antonio Di Benedetto, entre outros. 

Mais uma vez, s� uma mulher entra no rol de autores, ainda que ocupe um dos mais longos e minuciosos ensaios do livro: a ucraniana judia radicada na Fran�a Ir�ne N�mirovsky, autora de Su�te francesa, seu romance mais conhecido, e morta no campo de exterm�nio de Auschwitz. 

Outro ensaio digno de nota, que combina, sob �ngulos inesperados, refer�ncias biogr�ficas e reflex�es liter�rias, � o que Coetzee dedica ao romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. 

Nele, desafia as leituras cr�ticas habituais, revisita a personagem Anna Kari�nina de Tolst�i e retoma Baudelaire. 

Discute, ainda, a personalidade e as atitudes de Emma Bovary, mostrando que ela, em “sua total recusa em tolerar o t�dio na forma de um marido que a exaspera e uma filha por quem n�o sente a menor ternura, acaba por se tornar uma ad�ltera muito maior � medida que, efetivamente, apodera-se do autor e se converte nele”. O que justificaria, de certa forma, a famosa frase atribu�da a Flaubert: “Madame Bovary c’est moi”. 

Sem d�vida, A peste segundo Philip Roth �, entre todos os textos da colet�nea, o mais perturbador. Isso, n�o apenas pela maneira admir�vel com que o ensa�sta analisa o romance N�mesis e o articula a outras obras pand�micas, mas tamb�m por nos ensinar muito sobre os v�rus e suas artimanhas, prefigurando – sem saber que o faz – a peste e os pesadelos que assaltam este nosso ano ruim. Mas, como j� afirmou a escritora fict�cia Elizabeth Costello (dubl� de Coetzee e protagonista do romance h�brido A vida dos animais), “os escritores nos ensinam mais do que sabem”. E � isso o que esses dois livros de ensaios v�m atestar. 

Maria Esther Maciel � poeta, ficcionista, ensa�sta e professora de teoria da literatura

• De J. M. Coetzee

• Carambaia Editora

• Tradu��o e posf�cio: 

• Sergio Flaksman 

• 384 p�ginas

• R$ 89,90

• De J. M. Coetzee

• Carambaia Editora

• Tradu��o e posf�cio: Sergio Flaksman 

• 352 p�ginas

• R$ 87,90