Assinada pelo jornalista Tom Cardoso, biografia reconstitui a trajet�ria de Nara Le�o e mostra que a cantora foi muito al�m dos r�tulos que recebeu na carreira
A voz suave e o sorriso largo faziam da cantora Nara Le�o (1942-1989), em princ�pio, a tradu��o da meiguice. Por tr�s daquela aparente do�ura havia uma mulher que, mesmo sendo introspectiva por natureza, era movida pela determina��o de n�o se enquadrar nessa ou naquela imagem. Uma mulher inquieta, em constante luta para n�o se deixar limitar por padr�es – idealizados por ela mesma e, menos ainda, se impostos pelos outros.
Os desdobramentos dessa inquietude, que se aplicava em n�vel pessoal e art�stico, conduzem a narrativa de Tom Cardoso no rec�m-lan�ado Ningu�m pode com Nara Le�o – Uma biografia (Planeta). No livro, o jornalista carioca se prop�e a reconstituir a trajet�ria de Nara Lofego Le�o, capixaba que se mudou com a fam�lia para o Rio de Janeiro em 1943, ainda beb�, cresceu como adolescente de classe alta em Copacabana e a partir dali se revelou ao Brasil em diferentes facetas.
Tom Cardoso segue o princ�pio b�sico de toda biografia, de ouvir pessoas ligadas � biografada ou recorrer a material j� escrito por algumas delas sobre o assunto. Mas �, antes, favorecido pelo fato de que, em sua luta por se impor como artista e pessoa, Nara Le�o nunca escondeu o jogo. A adolescente t�mida (inibida pelo glamour da irm�, 10 anos mais velha, Danuza Le�o) se tornou, ao longo da vida, mulher sempre pronta a expor seu ponto de vista sobre os assuntos que a envolviam, mesmo os mais espinhosos.
Falava com not�vel franqueza aos jornalistas. Por isso, na bem resolvida colagem de fatos, falas e mem�rias montada pelo autor de Ningu�m pode com Nara Le�o, ela surge transparente. Para o bem e para o mal. Doce, delicada, idealista, talentosa, aplicada, curiosa, inquieta, amiga dos amigos, mas tamb�m teimosa, atormentada, temperamental, insegura, geniosa, exigente, intransigente em suas rusgas (como a rivalidade que manteve por anos com Elis Regina, n�o menos geniosa que Nara).
Muitos tons de Nara: bossa nova, can��es de protesto, tropicalismo, regrava��es de Roberto e Erasmo, Chico Buarque e compositores nordestinos em 43 anos de vida (foto: Revista o cruzeiro)
Garota bossa-nova
Antes da fama nacional, Nara Le�o ganhou notoriedade no Rio, nos anos 1950, por promover animadas rodas de viol�o no apartamento de seus pais, na Avenida Atl�ntica – mais precisamente na sala de 90 metros quadrados, com privilegiada vista para o mar. Ali eram tocados os primeiros acordes da bossa nova. Ali tamb�m surgiam os primeiros obst�culos a serem vencidos por Nara, que se sentia relegada a segundo plano pelo machismo dos amigos m�sicos.
Nara podia namorar Ronaldo B�scoli, um dos principais nomes do incipiente movimento musical, e levar o t�tulo de musa da bossa, mas n�o convencia a turma com sua timidez e “voz pequena” – que, por�m, se projetava incrivelmente quando ela a usava para demonstrar indigna��o com o que considerava injusto, como a amea�a � democracia perpetrada pelos militares naquele Brasil de 1964, em que ela lan�ou seu primeiro disco.
Quando o barquinho da bossa come�ou a singrar as �guas da Ba�a da Guanabara para ganhar o Brasil, Nara j� estava com o olhar voltado para o morro. Tinha trocado a turma do banquinho e viol�o pelo pessoal do militante Centro Popular de Cultura (CPC) e do Cinema Novo – e, no cora��o, o compositor Ronaldo B�scoli pelo cineasta Ruy Guerra. Ali descobriu que seus conflitos existenciais de menina rica n�o eram nada diante do drama de milh�es de brasileiros.
Resolveu ent�o usar sua visibilidade numa aguerrida milit�ncia contra os militares – o que s� n�o a levou � pris�o porque ela partiu para um ex�lio volunt�rio na Fran�a com o ent�o marido, Cac� Diegues. O discurso se refletia na m�sica. Ao estrear sua discografia, surpreendeu lan�ando um �lbum n�o com can��es bossa-novistas, como esperado, mas com sambas e afrossambas de compositores do morro, a exemplo de Cartola, Z� Keti e Nelson Cavaquinho, e de Vinicius de Moraes, Baden Powell, Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri.
Inquietude musical
De musa da bossa, passou a ser vista como cantora de protesto, r�tulo que ela logo cuidaria de descartar tamb�m. Ali�s, Nara (1964) fez de Nara Le�o a primeira artista brasileira a ser cobrada ferreamente por seu “lugar de fala”. Questionava-se a legitimidade dela para cantar os poetas do morro. Nara n�o deu ouvidos a essas cobran�as nem �s que se seguiram, continuou fazendo o que queria e achava certo fazer, construindo uma discografia que aponta em diferentes dire��es e chama a aten��o justamente pela versatilidade.
Ela flertou com a turma da Tropic�lia, participando do disco Tropic�lia ou Panis et circensis (1968), gravou songbooks de Roberto e Erasmo Carlos (...E que tudo mais v� pro inferno, 1978) e de Chico Buarque (Com a��car, com afeto, 1980), voltou-se para a ent�o nova turma nordestina (Fausto Nilo, Fagner, Robertinho do Recife...), em Romance popular (1981), se juntou � Camerata Carioca de Maur�cio Carrilho, Rafael e Luciana Rabello para cantar sambas em Meu samba encabulado (1983)... Mas faria as pazes com a bossa nova na fase final de sua vida.
Tom Cardoso consegue reconstituir a trajet�ria pessoal e profissional de Nara Le�o em um texto de f�lego e t�o sucinto quanto poss�vel, sem abrir m�o de deta- lhes. Na verdade, s� deixa escapar um: o cineasta Cac� Diegues foi por longo tempo amigo e confidente de Nara, mas logo ap�s os dois aparecem subindo o altar. Faltou narrar em que momento essa amizade virou namoro.
Outro detalhe a se observar: um exagero dizer que, se n�o fosse Nara Le�o, Maria Beth�nia talvez nem tivesse sa�do da Bahia. Sabe-se que a irm� de Caetano Veloso foi para o Rio de Janeiro indicada pela artista carioca para substitu�-la no show Opini�o. Mas � dif�cil imaginar que o vulc�o Maria Beth�nia n�o estivesse destinado a entrar em erup��o, mesmo que por outros caminhos que n�o fosse o gesto gentil de Nara.
Esses pequenos pecados n�o arranham a precis�o com que Ningu�m pode com Nara Le�o – Uma biografia explora uma personagem que, por incr�vel que pare�a, nos remete em v�rios momentos ao presente. Nara morreu aos 47 anos, depois de longa luta contra um tumor no c�rebro que lhe causava aus�ncias e desmaios, mas � dif�cil n�o imaginar o que sentiria no Brasil de hoje, aos 78 anos, a mulher que, segundo Glauber Rocha, “sabia tudo do Brasil 1964”.
TRECHO
“Um dos �ltimos a se juntar � patota da avenida Atl�ntica, Ronaldo B�scoli foi o primeiro a cair de joelhos pelo joelho de Nara. Ao se deparar com a garota sentada no sof�, viol�o no colo e pernas � mostra, o jornalista se ateve a um detalhe que Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, Lu�s Carlos Vinhas, Normando Santos, Oscar Castro Neves e os outros marmanjos da sala n�o haviam reparado: os joelhos da anfitri� n�o tinham ponta. (...)
E n�o foram s� os harmoniosos joelhos de Nara que impressionaram B�scoli. Aquela hist�ria das rodas de viol�o no apartamento de uma garota de classe m�dia alta de Copacabana, onde m�sicos e compositores n�o s� eram bem-vindos como entravam sem bater at� altas horas da noite, sem a vigil�ncia dos pais – algo improv�vel em qualquer outra “casa de fam�lia” da Zona Sul –, n�o era conversa mole de Roberto Menescal e Carlinhos Lyra. Era real.”
Ningu�m pode com Nara Le�o – uma biografia
Tom Cardoso
Editora Planeta
240 p�ginas
Livro f�sico: R$ 49,90
E-book: R$ 30,90
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