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Estado de Minas

Luz em tempos sombrios

Em dois livros, Donatella Di Cesare encarna a figura de intelectual p�blica ao refletir sobre as dimens�es pol�ticas da pandemia e os impactos da migra��o


26/02/2021 04:00 - atualizado 26/02/2021 09:11





Segundo Sartre, o intelectual � aquele que se mete no que n�o � da sua conta, contestando o conjunto de verdades estabelecidas. Publicamente engajado, esse elemento desempenharia uma fun��o com repercuss�es espec�ficas na estrutura social de sua �poca. N�o � pouco, n�o � desimportante. H� algum tempo se sugere que viver�amos um per�odo marcado pelo sil�ncio dos intelectuais, em que a categoria dos engajados � maneira sartreana estaria em extin��o. As causas seriam, entre outras, a perda dos ideais ut�picos, a preponder�ncia da l�gica do mercado, o encolhimento do espa�o p�blico e a substitui��o do intelectual pela discut�vel categoria do formador de opini�o. Neste momento de prolifera��o de discursos pregando o desprest�gio da cultura e a desmoraliza��o da ci�ncia, � cada vez mais necess�ria a discuss�o p�blica de quest�es e acontecimentos da atualidade. Um inconformismo como ponto de partida.
 
Uma das figuras que pensam o seu tempo � Donatella Di Cesare. Professora de filosofia na Universidade de Roma La Sapienza, Di Cesare vem sendo importante para discutir t�picos pol�micos da atualidade. Personalidade midi�tica, ela se faz presente n�o somente no cen�rio acad�mico – � poss�vel v�-la se pronunciando na televis�o, postando conte�dos no Facebook ou assinando artigos para jornais e revistas italianos. 
 
Descendente da linhagem de pensamento de Giorgio Agamben, Di Cesare evitou confrontar a opini�o do fil�sofo, que, em uma s�rie de textos publicados a partir de fevereiro do ano passado, declarava desproporcional a preocupa��o com o novo v�rus. Agamben sustentava que o clima de p�nico serviria para que a m�dia e as autoridades defendessem a presen�a de um estado de exce��o como paradigma normal, limitando a liberdade em nome do desejo de seguran�a. Passados v�rios meses e mais de um milh�o de mortos, o pensador italiano manteve a posi��o: pertinente por alertar para o oportunismo dos governantes ao consolidar seu poder e disseminar a vigil�ncia em massa, mas equivocada ao negar a pandemia (nesse sentido, alinhado com o discurso de Bolsonaro, que desde o in�cio minimiza a “gripezinha”).
 
Di Cesare discutiu igualmente as dimens�es pol�ticas da pandemia no calor da hora, mas de forma um tanto diversa. Em “V�rus soberano?”, com tradu��o de Davi Pessoa, prop�e pensar o ar como campo de batalha, afirmando que vivemos uma cat�strofe da respira��o. Estabelecendo importante conex�o com o conceito de soberanismo, sustenta que o v�rus revela nossa vulnerabilidade ao se espalhar, e nessa situa��o muros patri�ticos e fronteiras arrogantes n�o oferecem salva��o. O coronav�rus evidenciou disparidades e mostrou a linha de frente do cont�gio, distinguindo os intang�veis daqueles que se poderia deixar morrer: os idosos, os mais fracos, os mais pobres. Entre os mais contagi�veis est�o os migrantes, com o agravante de reunirem em si a imagem do outro como amea�a permanente. O ensaio da fil�sofa identifica os liames entre a xenofobia e a ret�rica soberanista, pontuando a utiliza��o da figura do estrangeiro para a dissemina��o de fantasias de conspira��o e a propaga��o do medo. 
 
Nesse ponto, Di Cesare retoma um tema que atravessa seus escritos ao longo dos �ltimos anos. Publicado na It�lia em 2017, chega agora ao p�blico brasileiro “Estrangeiros residentes – Uma filosofia da migra��o”, na tradu��o de C�sar Tridapalli. Ao retomar refer�ncias hist�ricas fundamentais para a compreens�o do assunto, a fil�sofa situa Hannah Arendt como a primeira a pensar o refugiado como figura de exce��o. A pensadora judia-alem�, nos anos 1940, entende a complexidade dessa condi��o como fen�meno de massa no artigo “N�s, os refugiados”. 
 
Passados 80 anos, migrantes, exilados, clandestinos e refugiados s�o palavras presentes na ordem do dia. Trata-se de um dado incontorn�vel: 250 milh�es de pessoas hoje moram fora de seu pa�s de nascimento. Diante dessa concretude, como pensar categorias como mobilidade, cidadania e pertencimento? Com precis�o e fluidez, Di Cesare vai detalhando o l�xico referente ao tema, atenta �s palavras que brotam de uma nova gram�tica na contemporaneidade. “Pronomes n�o s�o indiferentes”, sustenta, lembrando que a primeira fronteira surge na pr�pria l�ngua, ao refor�ar os la�os da comunidade e blindar alguns em rela��o a outros: eles e n�s. Uma dist�ncia e tanto.
 
 


Di Cesare alerta para o perigo de reeditar, em um cen�rio europeu, a legitimidade de definir a cidadania a partir do crit�rio do sangue.
 Sabemos bem o que esse paradigma trouxe aos judeus, homossexuais e ciganos, entre outros, no auge da Segunda Guerra. Nos deparamos com um forte legado dos regimes totalit�rios – centros de deten��o e campos de refugiados, dram�ticas heran�as do s�culo 20 
 
 
Fato � que o migrante transita na dial�tica entre hospitalidade e hostilidade, e a reflex�o sobre modos de coabitar figura como ponto central desse ensaio. N�o se trata de favor, ou caridade, e sim de direito. A pergunta parece simples, mas n�o �: quem pode viver neste lugar, quem est� autorizado a habit�-lo?. Di Cesare alerta para o perigo de reeditar, em um cen�rio europeu, a legitimidade de definir a cidadania a partir do crit�rio do sangue. Sabemos bem o que esse paradigma trouxe aos judeus, homossexuais e ciganos, entre outros, no auge da Segunda Guerra. Nos deparamos com um forte legado dos regimes totalit�rios – centros de deten��o e campos de refugiados, dram�ticas heran�as do s�culo 20. 

Atenas, Roma e Jerusal�m

Para entender o papel do migrante em uma pol�tica da hospitalidade, o ensaio visita tr�s modelos de cidades e tr�s tipos de cidadania ainda v�lidas: Atenas, Roma e Jerusal�m. Da autoctonia ateniense, que explica muitos mitos pol�ticos de hoje, para a cidadania aberta de Roma at� a estranheza que reina na Cidade Santa, onde o piv� da comunidade � o estrangeiro residente. 
 
Em um complexo cen�rio de migra��es for�adas, di�sporas individuais e coletivas e rela��es assim�tricas entre colonizadores e colonizados, decidir quem pode e quem n�o pode dividir a exist�ncia conosco deve ser permanentemente questionado. Mais do que nunca, s�o urgentes as discuss�es sobre coabita��o e alteridade e Di Cesare, encarnando com bravura a figura de intelectual p�blica, n�o se furta a faz�-las. Este ensaio refor�a a necessidade de um pensamento sobre o outro, n�o s� esse estranho que nos habita, mas quem efetivamente existe ao nosso lado.

 
*Stefania Chiarelli � professora de literatura brasileira na UFF e coorganizou a colet�nea “Falando com estranhos –O estrangeiro e a literatura brasileira” (7letras, 2016)
 
 
 


TRECHOS DO LIVRO

Aos olhos do Estado, o migrante constitui uma anomalia intoler�vel, uma anomia no espa�o interno e internacional, um desafio � sua soberania. N�o � apenas um intruso, nem somente um fora da lei, um ilegal. Sua exist�ncia infringe o princ�pio orientador em torno do qual o Estado foi erigido, mina aquele nexo prec�rio entre na��o, solo e monop�lio do poder estatal, que est� na base da ordem mundial. O migrante acena para a possibilidade de um mundo configurado de outro modo, representa a desterritorializa��o, a fluidez da passagem, a travessia aut�noma, a hibrida��o da identidade. 


***

O turista e o refugiado, mesmo um ao lado do outro, na mesma praia, s�o as duas figuras emblem�ticas em que o Mediterr�neo se dividiu. O contraste n�o poderia ser mais estridente. Embora a superf�cie da �gua n�o deixe marcas, n�o admita placas publicit�rias, nem adapta��es comerciais, as rotas da globaliza��o atravessaram os oceanos de cabo a rabo. At� o Mediterr�neo entrou nessa. Extinta a aventura, adormecido o desejo de descoberta, exaurida a sede de conhecimento que, na viagem de retorno, havia feito Ulisses aportar in�meras vezes, bem pouco restou da epopeia de uma �poca. Imponentes navios de cruzeiro descarregam todos os dias turistas animados pela necessidade compulsiva de consumo, enquanto botes de borracha inseguros, «carro�as do mar», perdem parte de seu lastro nos abismos. Banalidades e infort�nios perseguem-se nas ondas, deixando rastros de lixo, destro�os � deriva; de um lado, pl�stico e latinhas; de outro, humanos descartados. 
 
 
 
» ”Estrangeiros residentes – uma filosofia da migra��o”
» De Donatella Di Cesare
» Tradu��o de C�sar Tridapalli
» Editora  ayin�
» 370 p�ginas
» R$ 89,90
 
 
 
(foto: divulgação)
(foto: divulga��o)
» ”V�rus soberano?”
» Donatella Di Cesare
» Tradu��o de Davi Pessoa
» Editora  ayin�
»  130 p�ginas
» R$ 44, 90


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