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Estado de Minas

Decifrando Clarice

A partir da an�lise de personagens de romances como 'A paix�o segundo G.H.' e 'A ma�� no escuro', Luiz Lopes ilumina nuances da obra de Clarice Lispector


26/02/2021 04:00 - atualizado 26/02/2021 12:01



Regina Beatriz Silva Sim�es*
Especial para o EM
 
 
Frequentemente, escutamos o nome de Clarice Lispector associado � tristeza ou � depress�o, sem que isso desmere�a, naturalmente, o valor liter�rio e po�tico de sua obra. Chama-me inicialmente a aten��o o t�tulo que Luiz Lopes d� � sua obra: “Clarice Lispector: formas da alegria” (Quixote+Do). Curiosa, aventuro-me � leitura e nela descubro preciosidades por todo o caminho. 

Especialista em teoria liter�ria e literatura comparada e pesquisador dos grupos Atlas e Mulheres na Edi��o, Luiz Lopes � leitor ass�duo de Clarice Lispector – produziu um trabalho valioso, repleto de min�cias: uma pesquisa robusta, muito bem-elaborada. O autor esparrama sensibilidade pelo texto e apresenta ao leitor uma escritora ainda mais bonita: uma Clarice com alegrias plurais. As articula��es com a obra de Nietzsche tornam o trabalho de Luiz ainda mais intenso. Os v�rios pensadores e comentadores que perpassam o livro abrem um leque para se repensar a escrita de Clarice. Na abertura, encontramos a bi�grafa da escritora, N�dia Battella Gotlib. Com propriedade, N�dia apresenta o livro e o autor com a seriedade e a gentileza que lhe s�o peculiares. 
 
 
 
 
Na primeira ep�grafe escolhida pelo autor, ressoa o la�o forte de Clarice com a vida. “A trag�dia de viver existe sim e n�s a sentimos. Mas isso n�o impede que tenhamos uma profunda alegria com essa mesma vida.” Onde h� vida, h� alegria. E ela n�o vem sozinha. O novelo de sentimentos que Clarice apresenta em seus textos vai aos poucos se expandindo na escrita de Luiz. 

Interessa-me, pela psican�lise, os sussurros, sil�ncios, os semiditos, os hiatos – o que est� al�m e aqu�m da linguagem – que a obra de Clarice traz em abund�ncia. O autor se atenta aos detalhes. Experimentei, ao terminar a leitura, o desejo de reler cada conto, cada romance da escritora, atenta �quilo que o autor destacou. Luiz lan�a luz � obra de Clarice Lispector.

Um dos pilares do pensamento de Nietzsche, “o desejo de criar como um instrumento eficiente para se encarar a pr�pria trag�dia e a trag�dia do mundo” remete-me a reflex�es fundamentais que dizem respeito � teoria e � pr�tica psicanal�tica.

A escrita nos interessa por ser uma modalidade de refazer o la�o social. O ato de escrever testemunha o hiato que existe entre cada um e o outro. A escrita escancara o desassossego ou a emo��o do escritor.  N�o seria essa uma sa�da poss�vel diante das dificuldades da vida? Ou, dizendo na linguagem psicanal�tica, diante do confronto com a castra��o?

Freud apostou na linguagem como diferencial para a escuta cl�nica e Lacan priorizou a inser��o na linguagem como marca da constitui��o do sujeito, fazendo valer os significantes. No texto sobre Dostoievski e o parric�dio, Freud (1927/1928), disse: “Diante do problema do artista criador, a an�lise, ai de n�s, tem que depor suas armas”. Lacan, em seu semin�rio sobre James Joyce (1975/76), demonstrou que a arte pode funcionar para o escritor como um sustent�culo, possibilitando uma sa�da para seu adoecimento. Ambos, Freud e Lacan, sustentam que a arte � uma possibilidade de lidar com o conflito.

Articulando a arte liter�ria com o processo anal�tico, afirmo que a an�lise se d� a partir da apresenta��o de um relato de uma hist�ria. Relato que n�o � cronol�gico, mas que se baseia na l�gica do inconsciente, assim como a escrita. O processo anal�tico � o testemunho de uma experi�ncia singular, com ritmo e altern�ncias pr�prios. � a hist�ria tecida com seus cruzamentos, seus furos, seu estilo �nico.

Dessa maneira, ler Clarice �, sobretudo, entrar no vasto universo de enigmas, no mundo de interpreta��es plurais; � mergulhar no inusitado, no inquietante, na perplexidade e na alegria. � tornar o cotidiano sofisticado e colossal. Clarice fez uma literatura revolucion�ria e original � medida que mesclou o cotidiano pacato de uma dona de casa de classe m�dia, por exemplo, com as reinvindica��es feministas de sua contemporaneidade.

A psican�lise e a literatura caminham de m�os dadas, pois ambas transitam pelo inapreens�vel, pela aus�ncia de sentido, pelo imposs�vel de tudo dizer, pelas ressignifica��es. O inconsciente, objeto de trabalho dos psicanalistas, se manifesta justamente pela fal�ncia da linguagem: vazios, retic�ncias, furos, restos – chamados de objeto a – que permitem a constru��o de um sentido novo para aquilo que escapa ao sentido: o indiz�vel.

Clarice nos apresentou uma obra inesgot�vel, inquietante, provocadora. Sua hist�ria pessoal � marcada por riqueza intelectual, profusa em ang�stias, afetos, questionamentos, sil�ncios e alegrias. Ela nos trouxe um modo de escrever especial, com uma ampla variedade de estilos.

Dois momentos do livro, que agora chega ao p�blico, interessaram-me de maneira especial: o cap�tulo reservado � “solid�o” e outro dedicado ao tema “estranho”, ambos caros � psican�lise. 

O estranho, tema ao qual Freud (1919) se debru�ou com propriedade, diz respeito �quilo que � �nico, particular, ref�gio e subjetividade. Freud rastreou os significados atribu�dos � palavra unheimlich e privilegiou a defini��o do fil�sofo Friedrich Schelling: “Unheimlich � o nome de tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, em estado latente, mas veio � luz” (p. 282). A mola propulsora do texto freudiano diz respeito ao ponto em que o liter�rio faz limite com o inconsciente, apontando a� uma certa equival�ncia. Para a psican�lise, o estranho � o ex�lio estrutural de cada sujeito. Freud usa o termo “�xtimo” para nomear o que � estranho e familiar ao mesmo tempo: o indissoci�vel em cada sujeito. 

Sobre a solid�o, minha aposta como psicanalista � numa rela��o promissora, na qual a experi�ncia de estar s� produza uma viv�ncia que n�o comporte necessariamente o mal-estar. A solid�o est� relacionada com o encontro daquilo que h� de mais �ntimo em cada sujeito. Solit�rio, o sujeito se descola do outro como forma de sustenta��o e cria sua pr�pria rede protetora, pois somos irremediavelmente faltosos. Nas palavras de Luiz Lopes, encontrei uma frase referente ao personagem Martin (do romance “A ma�� no escuro”) que bem ilustra minha posi��o: “A solid�o e o sil�ncio s�o formas de se colocar de modo revigorante nesse mundo”, pois � poss�vel extrair dessa parceria a criatividade latente em cada um de n�s.

A literatura oferta ao sujeito a possibilidade de se expressar, pois faz parte do trabalho do escritor dar uma morada ao desconhecido, ao nada, esbarrando no imposs�vel de tudo dizer.

Luiz Lopes, com seu livro, lan�a luz a uma Clarice que transitou pela vida e pela literatura, pulverizando alegrias e suavidade, mesmo que mescladas a tantos outros sentimentos. Clarice Lispector fisga o leitor por ser multifacetada e instigante; Luiz captura o leitor por iluminar detalhes e nuances numa obra complexa e apaixonante.

Destaco, entre tantas, algumas preciosidades que o autor oferta ao leitor:

“Parece que Clarice, como todo escritor, � aquela que recolhe os farrapos, exuma vest�gios e os utiliza e reinventa, fazendo com que eles recebam novas configura��es, n�o os inventariando.”

Sobre a personagem GH (do romance “A paix�o segundo G.H.”), Luiz diz: “Encostar a boca na mat�ria da vida faz com que GH entenda que a vida n�o pode ser vivida a partir de uma reden��o, mas apenas pela coragem que mostra que a finalidade da exist�ncia est� nela mesma”.

“Para suportar a vida (...) � preciso aprender com os artistas a encarar a exist�ncia como um modo particular de abrir os olhos e receber a luz.”

Clarice dialoga com alegrias. Pela arte, ela reinventou a vida. Luiz Lopes oferece aos seus leitores um trabalho rico para os que admiram e reverenciam Clarice e favorece, com sua produ��o liter�ria, os pesquisadores que se aventuram � instigante tarefa de repensar uma de nossas maiores escritoras. 


*Regina Beatriz Silva Sim�es � psicanalista,  autora de livros na �rea psicanal�tica, entre eles “Que n�o se esmaguem com palavras as entrelinhas” (editora Quixote Do), em parceria com Gilda Vaz

Luiz Lopes, com seu livro, lan�a luz a uma Clarice que transitou pela vida e pela literatura, pulverizando alegrias e suavidade, mesmo que mescladas a tantos outros sentimentos. Clarice Lispector fisga o leitor por ser multifacetada e instigante; Luiz captura o leitor por iluminar detalhes e nuances numa obra complexa e apaixonante


Sobre o autor do livro

Luiz Lopes � especializado em teoria liter�ria e literatura comparada, professor do Centro Federal de Educa��o Tecnol�gica de Minas Gerais (Cefet-MG). Tem v�rios cap�tulos e artigos publicados em revistas da �rea de letras que, quase sempre, versam sobre a obra de Clarice Lispector. � pesquisador dos grupos Atlas e Mulheres na Edi��o. “Clarice Lispector: formas da alegria” � seu primeiro livro publicado pela Quixote Do.
 
 

» ”clarice Lispector: Formas da Alegria”
» Luiz Lopes
» Quixote Do
» 424 p�ginas
» R$ 41,93


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