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Estado de Minas

Augusto de Campos em dez t�picos

Carlos �vila escreve sobre os 90 anos de um dos maiores poetas e tradutores brasileiros


02/04/2021 04:00 - atualizado 01/04/2021 18:55

Carlos �vila
Especial para o EM
 

I


Sem sombra de d�vida, Augusto de Campos se encontra entre os mais importantes poetas da segunda metade do s�culo 20 – no Brasil e tamb�m no cen�rio internacional – n�o s� por sua obra criativa realizada at� o momento (ele continua em atividade), bem como por suas excepcionais tradu��es, de v�rios idiomas, e por seus estudos/ensaios cr�ticos. Esses tr�s �ngulos de sua produ��o – o po�tico, o voltado para a tradu��o e o ensa�stico – formam a imagem de um intelectual completo, que alia ainda conhecimentos e contribui��es nas �reas da m�sica (erudita e popular) e das artes pl�sticas ou visuais.


II


O conjunto de seus trabalhos nesses tr�s campos de atividade forma um extenso e poderoso corpus liter�rio (embora, no seu caso, a refer�ncia � literatura seja um tanto limitadora e mesmo, em alguma medida, imprecisa). Trata-se, enfim, de uma obra de largo f�lego e diversificada, inovadora em v�rios sentidos, particularmente no campo po�tico, onde supera os procedimentos convencionais e j� estabelecidos, fazendo uso, inclusive, de suportes diferenciados – ultimamente, direcionando-se ao universo virtual da internet.


III



Considerando marco inicial de sua trajet�ria, o primeiro livro – “O rei menos o reino”, publicado em 1951, em edi��o do autor –, Augusto perfaz d�cadas de cont�nua atividade criativa, o que n�o � pouco e � tamb�m marcante, no cen�rio de um pa�s em desenvolvimento como o Brasil, com seus in�meros problemas sociais, no qual ainda h� tanto a fazer no campo da educa��o e onde a produ��o cultural, em decorr�ncia disso, enfrenta diversos obst�culos para se materializar, circular e ser absorvida.


IV



O fato de ter desenvolvido sua produ��o po�tica sob o signo da radicalidade, utilizando elementos formais fragment�rios e recursos “verbivocovisuais”, em oposi��o direta � linearidade discursiva, fez com que durante muito tempo Augusto fosse alvo de pesadas cr�ticas, muitas delas obscurantistas ou insuficientes em seus argumentos. D�cadas ap�s sua estreia em livro, seu rompimento com o verso tradicional em “Noigandres” e seus lances experimentalistas em “Inven��o”; tempos depois de uma intensa fase de resist�ncia criativa em publica��es marginais e/ou artesanais de circula��o limitada (Edi��es Inven��o) e dos primeiros volumes j� lan�ados por meio de editoras comerciais (a antologia “Viva vaia”, entre eles), a poesia de Augusto come�a finalmente a ser estudada e analisada de maneira mais sistem�tica. Al�m do surgimento de algumas teses ainda restritas ao meio universit�rio, h� a publica��o dos volumes “Sobre Augusto de Campos” (RJ, 7Letras, 2004), com organiza��o de Flora Sussekind e J�lio Casta�on Guimar�es; “Dialogramas concretos – Uma leitura comparativa das po�ticas de Jo�o Cabral de Melo Neto e Augusto de Campos” (SP, Annablume, 2004), de Helton Gon�alves de Souza, e “Do c�u do futuro – Cinco ensaios sobre Augusto de Campos” (SP, Marco, 2006), organizado por Eduardo Sterzi. Os livros “Grafo sintaxe concreta: o projeto Noigandres” (RJ, Ed. Rios Ambiciosos, 2000), de Rog�rio Camara, e “Poesia concreta brasileira – As vanguardas na encruzilhada modernista” (SP, Edusp, 2005), de Gonzalo Aguilar, tamb�m trazem, em cap�tulos ou em se��es espec�ficas, elucidativas an�lises de poemas de Augusto. O interesse por sua poesia levou a uma maior circula��o da mesma. Antes contando apenas com poemas isolados em antologias nacionais ou internacionais – a maioria destas, espec�ficas, de poesia concreta ou visual (como as organizadas por Mary Ellen Solt e Emmett Williams) –, Augusto vem sendo, gradativamente, mais publicado. A antologia “Viva vaia” j� conta com v�rias edi��es; em sequ�ncia, foram lan�adas tamb�m duas outras colet�neas: “Despoesia”, “N�o e outro”. Sua obra completa (ou quase completa) j� est� dispon�vel inclusive em tradu��es para o franc�s, por Jacques Donguy; para o espanhol, por Gonzalo Aguilar (edi��es na Argentina e no Chile); para o alem�o, por Simone Homem de Mello, e at� para o h�ngaro. Seus poemas est�o inclu�dos tamb�m em CD-ROMs, CDs, DVDs e em espet�culos multim�dia. Com o advento da internet, ganharam uma divulga��o mais ampla, facilitada pela sua pr�pria natureza visual, de f�cil adapta��o �quele novo meio.


V



A lenta assimila��o da obra po�tica foi acompanhada, paralelamente, por uma melhor e mais r�pida acolhida aos ensaios e estudos cr�ticos realizados por Augusto: as “revis�es”, por exemplo, de autores como Sous�ndrade e Pedro Kilkerry. Embora tenha havido tamb�m, num primeiro momento, resist�ncia por parte da academia e de alguns cr�ticos de orienta��o conservadora a esses trabalhos, atualmente ningu�m mais questiona a import�ncia desses poetas no �mbito da literatura brasileira. No caso de Sous�ndrade, particularmente, vem aumentando n�o s� o interesse pela sua obra, bem como o n�mero de edi��es e estudos sobre ele. O mesmo poderia ser dito em rela��o a Patr�cia Galv�o (Pagu), autora tamb�m recuperada e revalorizada por Augusto.


VI



Quanto �s tradu��es realizadas por Augusto de poetas de diferentes l�nguas e �pocas (Arnaut Daniel, Dante, John Donne, Hopkins, Blake, Keats, Byron, Mallarm�, Rimbaud, Emily Dickinson, Lewis Carroll, Yeats, Pound, Cummings, Joyce, Gertrude Stein, Maiak�vski, Val�ry, Rilke etc.), � preciso assinalar que esse vasto e intenso trabalho � hoje amplamente reconhecido, inclusive por especialistas na mat�ria, n�o s� por sua excel�ncia t�cnica, como tamb�m por suas “solu��es” criativas. Trata-se de “uma reescrita sem d�vida inventiva – o que faz com que os poemas pare�am originais em portugu�s”, como observou com precis�o o professor Arnaldo Saraiva. Augusto alia um s�lido conhecimento das l�nguas com as quais opera e dos recursos da arte po�tica (m�trica, rima, ritmo etc.) a uma extrema sensibilidade para recriar em portugu�s textos de sofisticada fatura em seus idiomas de origem. Pode-se mesmo aventar a possibilidade de leitura dessas recria��es como parte integrante da pr�pria produ��o po�tica de Augusto (nesse sentido, � preciso assinalar as Intradu��es, j� incorporadas � sua obra).


VII



A figura intelectual de Augusto – composta simultaneamente pelo poeta, pelo tradutor e pelo ensa�sta – excede o campo das letras e completa-se com sua paix�o pela m�sica. Quase um m�sico (ou music�logo), o poeta tem conhecimentos nessa �rea que permitiram n�o s� a expans�o criativa de sua poesia em sintonia com o universo sonoro (lembre-se a fonte inspiradora do seu “Poetamenos”, a “melodia de timbres” de Webern; ou, mais recentemente, sua “poem�sica” no CD “Poesia � risco”), assim como uma expressiva atua��o de cr�tica, interpreta��o te�rica e divulga��o das m�sicas popular e erudita. Escreveu ensaios sobre a moderna m�sica popular brasileira, hoje reunidos no volume “Balan�o da bossa” – fundamental para o entendimento dos movimentos da bossa-nova e do tropicalismo –, e in�meros artigos sobre compositores eruditos contempor�neos, revelando, muitas vezes, a um p�blico mais amplo, nomes desconhecidos ou de divulga��o restrita (por exemplo, Scelsi, Nancarrow ou ainda Ustv�lskaia). A compila��o desses artigos resultou nos livros “M�sica de Inven��o” (1 e 2) – reposit�rios de refer�ncias e informa��es raras sobre a m�sica mais complexa e de maior exig�ncia auditiva, produzida a partir do in�cio do s�culo 20 (da “segunda escola” de Viena em diante), ainda a ser devidamente compreendida e assimilada.

 
 

VIII



Afora seu interesse pela m�sica, Augusto tamb�m � muito ligado ao universo das artes pl�sticas ou visuais. Manteve constante di�logo com o grupo de pintores concretos de S�o Paulo, resultando desse contato poemas sobre Fiaminghi, Sacilotto, Geraldo de Barros, Waldemar Cordeiro, Fejer, Maur�cio Nogueira Lima, Lothar Charoux, Judith Lauand e Wollner. Criou nos anos 1960 os popcretos – poemas-colagem onde se observa uma tens�o (ou atrito) entre elementos da linguagem construtiva e recursos mais prec�rios da pop art – que, inclusive, foram expostos em galeria, juntamente com trabalhos visuais de Cordeiro, extrapolando os limites do livro. Foi tamb�m de grande significa��o para sua poesia o encontro e a parceria com o espanhol J�lio Plaza (ali�s, um importante artista, cuja obra necessita ser mais estudada e divulgada), que resultou na cria��o dos Poem�biles e da Caixa Preta – trabalhos que “ecoam”, respectivamente, as formas pl�stico-m�veis de Calder e as caixas/valises de Duchamp –, com poemas-objetos que tamb�m extrapolam o livro como suporte. Dessa colabora��o resultou ainda um pequeno volume sobre Duchamp, com texto de Augusto e imagens de Plaza, intitulado “Reduchamp”. Enfim, as artes visuais sempre alimentaram a produ��o de Augusto. Em seus poemas e textos cr�ticos despontam aqui e ali os nomes de Mondrian, Max Bill, Albers, Volpi (capa da revista Noigandres 5), Mali�vitch, R�dtchenko etc.

 

 

IX



A obra po�tica de Augusto – ainda em desenvolvimento, mas com um corpus significativo j� estabelecido – est� a exigir an�lise cr�tica em profundidade, embora j� exista um movimento nessa dire��o (como os livros a seu respeito aqui citados). Por�m, a maioria dos trabalhos publicados at� o momento, salvo algumas exce��es, privilegia apenas a “fase concreta”, dos anos 1950/60, ou a mais recente (p�s-concreta?), recolhida nos volumes “Despoesia”, “N�o e outro”, em que o poeta utiliza, com �nfase, tipologia e cores variadas, em disposi��o espacial. Falta ainda um exame detalhado da “fase verso” (“O rei menos o reino”; “O sol por natural”; “Ad augustum per angusta” e “Os sentidos sentidos”). Muitas vezes, tamb�m os estudos acentuam o elemento mais evidente da poesia de Augusto, a visualidade, em detrimento de outros aspectos, como o sint�tico, o sonoro (a recorr�ncia da rima; alitera��es, asson�ncias etc.) e mesmo o sem�ntico. Novas abordagens e quest�es relacionadas a elementos formadores dessa po�tica seriam bem-vindas.


X


Augusto atingiu os 90 anos, ainda atuante, o que � motivo de j�bilo para a cultura brasileira. Sua contribui��o ao desenvolvimento e � inova��o de nossa po�tica � ineg�vel. Sua refinada tradu��o-arte tornou poss�vel o acesso, em portugu�s, a poetas fundamentais de outras tradi��es e idiomas, ampliando esse repert�rio no pa�s. Seu ensa�smo sempre instigante enriqueceu nossa literatura, com um referencial te�rico que era in�dito por aqui e com informa��es em primeira m�o, diretamente colhidas nas fontes originais. Entre vivas e vaias, Augusto se manteve �ntegro ao longo do tempo, na sua trincheira caseira na Rua Bocaina (onde eu, muito jovem, o conheci nos anos 1970) – um endere�o que evoca um rico per�odo de agita��o cultural. Hoje, na Rua Apinag�s, tamb�m em Perdizes – o bairro dos concretos em S�o Paulo – continua no seu incans�vel of�cio de “fazer/catar o novo”, como assinalou Jo�o Cabral em poema-dedicat�ria no p�rtico de Agrestes. Que esses t�picos – um pequeno exercice d’admiration – sejam um reconhecimento � sua trajet�ria criativa e � sua importante obra.

Carlos �vila � poeta e jornalista. Autor, entre outros, de “Bissexto sentido”, “�rea de risco” e “Poesia pensada”. Foi editor do Suplemento Liter�rio de Minas Gerais. 


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