
“Vou citar uma frase de Virginia Woolf sobre Tolst�i (e essa n�o inclu� em livro nenhum): 'Resta o maior de todos os romancistas – pois de que outra forma podemos chamar o autor de “Guerra e paz'”?, afirma Irineu Franco Perpetuo, autor de “Como ler os russos”, nesta entrevista ao Pensar, sobre a grandiosidade do escritor. Ele fala da relev�ncia da literatura russa, “criada � sombra da censura”, e dos desafios de traduzir “Anna Kari�nina”, considerado o maior romance de todos os tempos. “Romances vastos como “Anna Kari�nina” costumam mobilizar campos sem�nticos igualmente vastos. N�o � raro eu recorrer a amigos que n�o falam uma palavra de russo, mas s�o especialistas em suas �reas, em busca do termo correto. Por exemplo, recorro a figurinistas de �pera em busca da palavra exata para determinadas pe�as de roupa”, conta Irineu, que destaca tamb�m “o desafio estil�stico mais geral de encontrar uma dic��o que fa�a o estilo de Tolst�i funcionar em portugu�s”.
Foi “apenas” o regime comunista fechado que impediu a difus�o de grandes autores russos do s�culo 20 ou a literatura do s�culo 19 era mesmo superior? Afinal, voc� fala na centralidade da literatura na R�ssia e do papel prof�tico e de pregador de autores como Dostoi�vski e Tolst�i.
A centralidade da literatura na R�ssia manteve-se durante o per�odo sovi�tico. Ali�s, em um certo sentido, os russos s� foram conhecer sua literatura mesmo no s�culo 20. Antes, o pa�s era muito pouco alfabetizado, e a alfabetiza��o em massa aconteceu com a Revolu��o. Ali�s, no pr�prio livro cito o exemplo do culto a P�chkin, que tomou as dimens�es gra�as �s edi��es numerosas de suas obras no tempo sovi�tico. Se a literatura n�o tivesse mantido essa centralidade nos tempos sovi�ticos, � poss�vel inclusive que os escritores dissidentes tivessem sofrido menos do que sofreram. Repito aqui a frase que cito no livro: Vladislav Khodass�vitch (1886-1939): Claro que sabemos do ex�lio de Dante, da pobreza de Cam�es, do cadafalso de Andr� Ch�nier, e muito mais, por�m, em nenhum lugar fora da R�ssia as pessoas foram t�o longe, por quaisquer meios poss�veis, para destruir seus escritores. E, todavia, isso n�o � causa de vergonha, mas pode at� ser causa de orgulho.
Isso acontece porque nenhuma outra literatura (estou falando em geral) foi t�o prof�tica quanto a literatura russa. Ou a mais c�lebre frase de Mandelstam, que tamb�m cito: Em nenhum lugar do mundo se d� tanta import�ncia � poesia: � somente em nosso pa�s que se fuzila por causa de um verso. A perda da centralidade � coisa recente, da era p�s-sovi�tica. Para citar Ievgu�ni Dobrenko: “A literatura na R�ssia hoje � livre porque ningu�m precisa dela. As fun��es de propaganda e luta pol�tica sa�ram da literatura para outras m�dias: TV, internet, etc”. A ideia de que a literatura russa �, basicamente, literatura do s�culo 19, � enunciada por Nab�kov: “Se excluirmos uma �nica obra-prima medieval, a caracter�stica muit�ssimo c�moda da prosa russa � que ela cabe por inteiro na �nfora de um �nico s�culo – com um jarrinho de creme adicional fornecido para guardar a sobra que tenha vindo depois. Um s�culo, o 19, foi suficiente para que um pa�s praticamente sem nenhuma tradi��o liter�ria criasse uma literatura que, em mat�ria de valor art�stico, amplitude de influ�ncia e todo o mais, exceto volume, se equipara � gloriosa produ��o da Inglaterra ou da Fran�a, embora as obras-primas nesses pa�ses tenham come�ado a aparecer muito antes”. Mas, obviamente, n�o se sustenta. Ainda mais se incorporarmos a produ��o de emigrados, como o pr�prio Nab�kov. Portanto, discordo da premissa da pergunta. Para mim, houve, sim, grandes autores russos no s�culo 20. E o fato de v�rios deles (B�nin, Soljen�tsyn, Pasternak, Ch�lokhov, Brodsky) terem vencido o Nobel de Literatura demonstra que sua obra obteve alcance e difus�o internacional.
Isso acontece porque nenhuma outra literatura (estou falando em geral) foi t�o prof�tica quanto a literatura russa. Ou a mais c�lebre frase de Mandelstam, que tamb�m cito: Em nenhum lugar do mundo se d� tanta import�ncia � poesia: � somente em nosso pa�s que se fuzila por causa de um verso. A perda da centralidade � coisa recente, da era p�s-sovi�tica. Para citar Ievgu�ni Dobrenko: “A literatura na R�ssia hoje � livre porque ningu�m precisa dela. As fun��es de propaganda e luta pol�tica sa�ram da literatura para outras m�dias: TV, internet, etc”. A ideia de que a literatura russa �, basicamente, literatura do s�culo 19, � enunciada por Nab�kov: “Se excluirmos uma �nica obra-prima medieval, a caracter�stica muit�ssimo c�moda da prosa russa � que ela cabe por inteiro na �nfora de um �nico s�culo – com um jarrinho de creme adicional fornecido para guardar a sobra que tenha vindo depois. Um s�culo, o 19, foi suficiente para que um pa�s praticamente sem nenhuma tradi��o liter�ria criasse uma literatura que, em mat�ria de valor art�stico, amplitude de influ�ncia e todo o mais, exceto volume, se equipara � gloriosa produ��o da Inglaterra ou da Fran�a, embora as obras-primas nesses pa�ses tenham come�ado a aparecer muito antes”. Mas, obviamente, n�o se sustenta. Ainda mais se incorporarmos a produ��o de emigrados, como o pr�prio Nab�kov. Portanto, discordo da premissa da pergunta. Para mim, houve, sim, grandes autores russos no s�culo 20. E o fato de v�rios deles (B�nin, Soljen�tsyn, Pasternak, Ch�lokhov, Brodsky) terem vencido o Nobel de Literatura demonstra que sua obra obteve alcance e difus�o internacional.
Por que a literatura russa do s�culo 19 tem maior penetra��o no Brasil do que a norte-americana? Seria pelo fato de obras consideradas universais, como “Guerra e paz” e “Crime e castigo”, estarem no imagin�rio popular, mesmo que muita gente que as cita n�o tenha lido?
N�o sou especialista em literatura norte-americana, de modo que n�o posso julgar por eles. Se a segunda parte da pergunta for verdade, seria o caso de se perguntar por que justamente essas obras e esses escritores se arraigaram no imagin�rio popular brasileiro.
Em “Como ler os russos”, voc� diz sobre os autores do s�culo 19 que “� um ponto de vista maravilhoso a primazia da literatura sobre a pr�pria vida, dos sonhos sobre a realidade, da imagina��o sobre os fatos”. No caso de P�chkin, “fundador da cultura russa”, ele despertou o pa�s para a “beleza do modo de pensar”. O qu�o distante o Brasil est� de viver uma situa��o assim?
No Brasil de hoje, qualquer frase incluindo palavras como beleza ou pensar parece deslocada. N�o sei se algum dia estivemos pr�ximos desses ideais, mas o fato � que hoje estamos negando-os e afastando-nos deles deliberadamente. Vivemos um momento de criminaliza��o da arte, da cultura, do saber, da educa��o e da ci�ncia. Por outro lado, temos que nos lembrar de que a R�ssia, ao longo dos s�culos, n�o foi exatamente um modelo de liberdade. Toda literatura russa que lemos, n�o apenas a do s�culo 20, foi criada � sombra da censura. Um exemplo de um trecho do meu livro, que soar� perturbadoramente contempor�neo para o brasileiro de hoje. Assim, os �ltimos anos do reinado de Nicolau I congelaram a sociedade russa numa situa��o de terror, e quaisquer poss�veis tra�os de vida cultural e intelectual independente at� ent�o foram simplesmente eliminados. Para citar apenas um exemplo, o novo ministro da Educa��o, pr�ncipe Chir�nski-Chikhm�tov, aboliu o ensino da filosofia e da metaf�sica nas universidades – cujo corpo de estudantes, ali�s, j� se reduzira muito – e os cursos de l�gica e de psicologia foram entregues a professores de teologia. Isso para n�o falar em ex�lio siberiano, gulag e outras barbaridades. Ent�o, talvez d� para sonhar com um florescer das artes, apesar da orienta��o obscurantista do governo atual (estou falando do Brasil).
O antissemitismo e o chauvinismo de parte da obra de Dostoi�vski, como em “Di�rio de um escritor”, devem ser minimizados ou tratados como anacronismo diante da grandiosidade de sua obra?
Acho vergonhoso que esses temas sejam t�o pouco tratados no Brasil. Eu venho da �rea da m�sica cl�ssica. L�, ningu�m ignora que Richard Wagner foi um antissemita virulento. O que fazer com isso � outra quest�o. Mas aqui a tend�ncia � "passar pano" para Dostoi�vski, e fingir que seu antissemitismo n�o existe. Mesmo tradu��es recentes de suas obras, feitas diretamente do russo, t�m a tend�ncia de apagar as inj�rias raciais com que ele se dirige aos judeus. N�o estou propondo aqui que Dostoi�vski seja pura e simplesmente "cancelado". Mas que esse aspecto n�o seja mais ignorado. Retomo aqui uma cita��o de Boris Schnaiderman que fa�o no livro: “Como explicar [por exemplo] certas p�ginas do 'Di�rio de um escritor', caracterizadas por um chauvinismo gr�o-russo simplesmente intoler�vel � leitura e repassadas de �dio ora ao ocidental, em geral, ora ao judeu, ora a outras popula��es do Imp�rio? Como harmonizar um Dostoi�vski 'positivo' politicamente com a sua vis�o messi�nica da R�ssia? Quanto mais a cr�tica engajada em posi��es pol�ticas de momento se dedica ao escritor, em busca de um aliado, menos compreens�veis se tornam certos aspectos de sua obra. N�o, temos que deixar de lado todas essas manifesta��es imediatistas e utilit�rias e voltar para as grandes realiza��es j� conseguidas pelos estudos dostoievskianos, marcados muitas vezes pela indaga��o e pela d�vida. Mas, de indaga��o em indaga��o…” Dostoi�vski � complexo, seu antissemitismo � um "bode na sala", e deve ser encarado.
Quais os desafios de traduzir “Anna Kari�nina”?
Os desafios ao enfrentar uma obra-prima consagrada, de um autor dessa envergadura, n�o faltam. O pr�prio tamanho da obra � um desafio. N�o perder a concentra��o ou o f�lego diante de algo t�o grande. Um desafio espec�fico � representado pelas muitas cenas no mundo rural russo do s�culo 19. Quando falamos em “Anna Kari�nina”, a primeira coisa que vem � mente � a personagem-t�tulo, e suas desventuras amorosas. Isso, claro, � bem importante. Mas n�o devemos nos esquecer de que boa parte do romance � ocupada pelas desventuras de Li�vin, o alterego de Tolst�i. E Li�vin � antes de tudo um senhor rural, cujas preocupa��es com as quest�es do campo refletem as pr�prias preocupa��es e ang�stias de Tolst�i. As cenas no campo s�o descritas com muito detalhismo. Tolst�i sabia muito bem do que estava falando. Ent�o, o tradutor – que vive 150 anos depois, a 12 mil quil�metros de dist�ncia, e cuja experi�ncia do campo russo se limita a um fim de semana em uma dacha – deve se empenhar para fazer jus � precis�o de Tolst�i ao descrever um universo que lhe era t�o familiar. Romances vastos como “Anna Kari�nina” costumam mobilizar campos sem�nticos igualmente vastos. N�o � raro eu recorrer a amigos que n�o falam uma palavra de russo, mas s�o especialistas em suas �reas, em busca do termo correto. Por exemplo, recorro a figurinistas de �pera em busca da palavra exata para determinadas pe�as de roupa. No come�o do romance, Li�vin aproxima-se de Kitty em uma pista de patina��o no gelo. Tenho sorte suficiente para ter uma amiga brasileira que patina no gelo e p�de me esclarecer quanto ao vocabul�rio. Tamb�m recorri a uma s�rvia para algumas express�es nessa l�ngua que aparecem no fim do livro, quando Tolst�i retrata os russos que v�o lutar ao lado dos s�rvios contra os turcos. Al�m do desafio estil�stico mais geral de encontrar uma dic��o que fa�a o estilo de Tolst�i funcionar em portugu�s.
Tolst�i � mesmo o maior escritor do mundo? Por quais raz�es?
� dif�cil cravar quem seja o maior. Vou citar uma frase de Virginia Woolf sobre Tolst�i (e essa n�o inclu� em livro nenhum): ‘Resta o maior de todos os romancistas – pois de que outra forma podemos chamar o autor de ‘Guerra e paz’?’ […] O que seus olhos infal�veis relatam sobre uma tosse ou um truque das m�os, seu c�rebro infal�vel menciona como algo oculto no personagem, para que conhe�amos suas pessoas n�o apenas pela maneira como eles amam e por suas opini�es sobre a pol�tica e a imortalidade da alma, mas tamb�m pela maneira como espirram e engasgam. Ou outro autor que n�o citei nos meus livros, �talo Calvino: ‘Entender como Tolst�i constr�i sua narra��o n�o � f�cil. Aquilo que tantos narradores mant�m � mostra — esquemas sim�tricos, vigas mestras, contrapesos, dobradi�as — nele permanece oculto’. Oculto n�o significa inexistente: a impress�o que Tolst�i d� de levar tal e qual para a p�gina escrita “a vida” (esta misteriosa entidade que para ser definida nos obriga a partir da p�gina escrita) n�o passa de um produto da arte, isto �, de um artif�cio mais complexo que tantos outros.
A jun��o de literatura de jornalismo e literatura, como faz Svetlana Aleksi�vitch hoje, � uma boa vertente para a literatura contempor�nea?
Essa fus�o de literatura e jornalismo, pelo menos na R�ssia, parece-me bastante antiga. Talvez seja poss�vel ver precedentes em toda a literatura sobre o ex�lio siberiano, como “Escritos da casa morta”, de Dostoi�vski, e “A ilha de Sacalina”, de Tch�khov, para n�o falar nas monumentais obras sobre o gulag de Chal�mov e Soljen�tsyn. Em um pa�s em que a literatura sempre foi mais do que literatura, � inevit�vel que a literatura, por vezes, seja tamb�m jornalismo.