Francisco Azevedo escreve suas sagas de forma intuitiva: 'N�o fa�o roteiro, os personagens v�o ganhando musculatura � medida que a hist�ria se desenvolve' (foto: Divulga��o)
“A roupa do corpo”, quarto e �ltimo romance da tetralogia de sagas familiares escrita pelo dramaturgo, romancista e ex-diplomata Francisco Azevedo, � uma sens�vel hist�ria centrada na rotina de pessoas comuns, em incans�vel busca pelo sentido de sua exist�ncia. � nesta jornada, polvilhada pelo realismo m�gico, sonhos premonit�rios e espiritualidade, que Jo�o Fiapo, nascido e criado na cidadezinha litor�nea de Conv�s, no Rio de Janeiro, filho �nico do pescador Antenor e da costureira Ol�mpia, narra a sua jornada, entrela�ada por “acasos” que o colocar�o frente a frente com as personagens que deram vida �s tr�s obras anteriores, o best-seller “O arroz de Palma” (mais de 100 mil exemplares vendidos desde o lan�amento, em 2008), “Doce Gabito” (2012) e “Os novos moradores” (2017), todos lan�ados pela Record.
Oscilando entre um ser aumentativo, Jo�o, e outro insignificante, Fiapo, a personagem central alcan�a o sucesso como autor de pe�as teatrais, com o apoio de Jorge, tio e ator. Expulso de casa ainda adolescente pela m�e, revoltada com a homossexualidade do filho, Jorge se instalara no Rio de Janeiro, perdendo contato com a fam�lia e o �nico irm�o, Antenor, pai de Jo�o Fiapo. Foi apenas diante da morte da av� de Jo�o Fiapo, Isaura, que os dois irm�os, Jorge e Antenor, se reencontram.
A reuni�o familiar se d� em meio �s revela��es que fortalecem os la�os fraternos e permitem que Jorge se conecte com o �nico sobrinho, com quem ter�, vida afora, at� a morte, intensa intera��o afetiva e exercer� profunda influ�ncia.
Entre encontros e desencontros amorosos ao longo da vida, Jo�o Fiapo est� sempre em busca do seu figurino, aquele que lhe agrade, lhe assente e seja capaz de realiz�-lo. Vai a Londres e se envolve com uma personagem m�stica; retorna ao Brasil e se conecta com a hist�ria de Jos� Cust�dio, Maria Romana, Tia Palma e o arroz da felicidade, que embalou os sonhos dessa fam�lia de imigrantes portugueses, instalados na Fazenda Santo Ant�nio da Uni�o, no interior do Rio de Janeiro, no in�cio do s�culo passado.
E, numa das curvas nas andan�as da vida, Jo�o Fiapo tem um tumultuado encontro com Gabriela, personagem de “Doce Gabito”, aquela com quem, ao que tudo indica, ir� assentar o fogo da maturidade. � assim que a trama da vida � tecida em saltos, sustos, ciscos e sopros, a vida � “�timo de segundo”, nas palavras do autor.
� no amanhecer de 2020 que o casal Jo�o Fiapo e Gabriela se re�ne para celebrar na Fazenda Santo Ant�nio da Uni�o com Bernardo, bisneto de Jos� Cust�dio e Maria Romana, e sua esposa Susan, que as premoni��es para o ano novo se anunciam, pela boca da crian�a de 9 anos, tataraneta dos migrantes pioneiros. “� quando Maria, a filha de 9 anos do casal, nos diz que teve um sonho muito engra�ado na noite anterior. Desconfiamos que o tal ‘sonho’ seja apenas uma fantasia estimulada pela fala��o ao lado, mas, ainda assim, queremos que ela nos conte sua hist�ria. Pois bem, com riqueza de detalhes, Maria nos fala que viu todas as cidades do mundo vazias. Ningu�m nas ruas. Todas as pessoas escondidas dentro de suas casas, portas e janelas fechadas. Os autom�veis, nas garagens. Os trens, parados nas esta��es. E os avi�es, nos aeroportos, n�o conseguiam voar. O pai lhe pergunta se o sonho mostrava a raz�o de tudo isso. Encolhendo os ombros e virando as m�ozinhas, ela faz que n�o sabe. Como termina o sonho? Com todos os bichos andando soltos pelas cidades como se fossem seus novos donos. Eles chamavam as crian�as para sa�rem de casa e brincar. Mas os pais delas n�o deixavam.”
O figurino da pandemia
A crian�a tinha raz�o. Em 2020, o planeta entra em suspens�o. Um novo coronav�rus, uma pandemia for�a o ser humano a parar as m�quinas e revisar a sua trajet�ria. Jo�o Fiapo pensa em Conv�s, na vida simples, sem pressa, onde a natureza dita o ritmo do tempo e, entre “parar e disparar, o melhor � manter o passo com o respirar sereno”. Em meio a essas reflex�es, ele revela � companheira, Gabriela, que vai se voluntariar para trabalhar nos hospitais p�blicos, que est�o sobrecarregados pela demanda de pacientes com a COVID-19.
Entre os muitos figurinos experimentados por Jo�o Fiapo ao longo de sua vida, nenhum lhe trouxe a “inspira��o e o conforto” que a roupa do corpo deve faz�-lo, acredita o autor. E eis que com o mundo imobilizado pela pandemia, Jo�o Fiapo encontra, j� ao final da obra, o seu traje derradeiro, aquele que o realiza: um jaleco de hospital, touca, m�scara, luvas e todo o equipamento que o conecte ao outro em necessidade, que desperte a empatia, que potencialize o humano que est� em cada um de n�s.
Nada do que a passagem destacada pelo pr�prio Francisco Azevedo, de seus escritos anteriores (“Eu sou eles: fragmentos”, de 2018), em que autor e personagens se fundem e se reinventam, materializando-se na �ltima saga da tetralogia: “Livrei-me de quase tudo, afinal. Mas preciso ao menos da roupa do corpo para seguir viagem.
A roupa do corpo n�o � o pouco pano que levo pendurado em mim, apenas. N�o, antes fosse. A roupa do corpo � tamb�m o que, entranhado na pele, j� n�o se v� — os tantos panos que usei, anos e anos a fio. Os sentimentos vividos dentro deles desde que me entendo por gente. Os incont�veis disfarces e humores, ousadias e medos da inf�ncia, da adolesc�ncia e de bem depois… Sim, minha hist�ria escrita debaixo dos panos que enverguei”.
“A roupa do corpo”
Francisco Azevedo
Record
532 p�ginas
R$ 47,90
ENTREVISTA
Francisco Azevedo
“A personagem, o autor e o leitor formam um tri�ngulo amoroso insepar�vel”
Como surgiu a ideia de escrever o primeiro romance da tetralogia, “O arroz de Palma”, j� traduzido para 13 idiomas, e quais elementos mais despertam, em sua avalia��o, o interesse de leitores em tantos pa�ses?
“O arroz de Palma” foi uma grande surpresa para mim. Nasceu como uma pe�a de teatro que escrevi em 2000 para o ator Rodolfo Bottino, que j� faleceu. Eram duas gera��es: a Palma, Jos� Cust�dio e Maria Romana e os filhos, que era o que dava para fazer no teatro. Assim mesmo foi complicad�ssimo, era uma produ��o car�ssima, que n�o se concretizou. Ent�o, guardei a hist�ria. Em 2006, fui morar em Buenos Aires e escrevi “O arroz de Palma”.
No romance, tive muito mais recursos do que na pe�a de teatro. O tema da fam�lia me interessa muito, porque � onde come�amos os nossos aprendizados, as nossas limita��es, j� que o amigo voc� escolhe; a fam�lia n�o. � um n�cleo muito f�rtil de aprendizado para, a partir da�, aprender a conviver com outras fam�lias: a da escola, a do trabalho at� a fam�lia lato sensu, que � a planet�ria. Outro elemento em minha tetralogia de sagas familiares diz respeito n�o s� � fam�lia como elemento de aprendizado inicial, mas tamb�m �s transgress�es, no sentido de ir al�m, que � o primeiro significado de transgress�o do dicion�rio, n�o � romper com o regulamento, mas ir al�m, passar a fronteira. E � isso o que a literatura e as artes fazem.
Quando o senhor constr�i uma saga familiar, o que � mais importante na narrativa?
Ao final do romance de sagas familiares, coloco um cronograma com nascimentos e la�os familiares. O que me leva a isso � a fam�lia em permanente transforma��o, em evolu��o. Gosto muito de ver a evolu��o da fam�lia. O que, anos atr�s, era absurdo, hoje � visto com naturalidade. Nos anos 70, os desquites eram um horror, as fam�lias brigavam, tomavam partido, os casais se odiavam, n�o se falavam.
Hoje � grande a probabilidade de os div�rcios serem consensuais. � muito comum as fam�- lias continuarem a conviver. O casamento de classes sociais diferentes, o que era impens�- vel nos anos 60, 70, hoje acontece muito. A rela��o homoafetiva, tamb�m, tudo isso me encanta muito.
H�, ent�o, o prop�sito de salientar a evolu��o civilizacional em termos de costumes?
Isso. Hoje estamos vivendo neste pa�s um momento grav�ssimo, de insanidade total. Al�m da pandemia, vejo com muita tristeza o que est� acontecendo no Brasil em termos de autoritarismo. Mas, ainda assim, acho que a voca��o do ser humano � a luz. A humanidade d� um passo para tr�s e dois pra frente. Estamos num momento de um passo gigante para tr�s, mas, quando formos para a frente, acho que ser� um pulo bem significativo.
Pensando na literatura brasileira, que outras sagas familiares s�o em sua avalia��o impactantes, uma refer�ncia, na literatura internacional?
Vou come�ar pela literatura portuguesa, com a saga familiar que tem at� uma rela��o de incesto: “Os Maias”, de E�a de Queiroz, um escritor que tratava das rela��es familiares de uma maneira incr�vel, at� transgressora para a �poca, o primo Bas�lio, todas aquelas hist�rias que ele elaborava muito bem. Aqui, o nosso Machado de Assis tratava de fam�lia de manei- ra transgressora.
Numa fam�lia lato sensu, mais abrangente, eu puxaria a sardinha para o meu escritor brasileiro favorito. Guimar�es Rosa, em “Grande sert�o: veredas”, apesar de centrar a hist�ria no amor de Riobaldo por Diadorim, est�o ali presentes todos os elementos da fam�lia – o jagun�o, a disputa familiar de lideran�as, irmandades e trai��es. A literatura internacional � farta de exemplos. Tem Shakespeare, no teatro. Na literatura francesa, Victor Hugo, em “Os miser�veis”, quest�es como a ado��o, o perd�o. E, na literatura russa, Dostoi�vski.
Como nascem as suas personagens? Nascem a partir de situa��es reais ou s�o completamente ficcionais?
Esse ponto � sempre t�o dif�cil de explicar, porque sempre fui fascinado pelo realismo m�gico do Gabriel Garc�a M�rquez, como em “Cem anos de solid�o”. O realismo fant�stico dele me influenciou muito. Por mais que se diga que est� fora de moda, h� espa�o para todo mundo na literatura. E a m�gica est� muito presente na minha vida. Acho a vida m�gica. A maioria dos truques da vida a gente n�o sabe. Se voc� tirar a m�gica da vida, fica uma coisa muito sem gra�a.
Ent�o, o componente m�gico presente no Gabriel Garc�a M�rquez tamb�m est� em minhas obras. Os meus personagens nascem justamente dessa m�gica. N�o tenho m�todo nenhum para es- crever. N�o fa�o roteiro. Os personagens v�o ganhando musculatura � medida que a hist�ria se desenvolve. Mas eu vejo um tri�ngulo amoroso insepar�vel: a personagem, o autor e o leitor.
Falando sobre “A roupa do corpo”, quarta obra dessa tetralogia, como ela surge? � a �ltima desta saga?
Eu pretendo que seja o �ltimo romance dessa s�rie. Tanto que os personagens de todos os romances anteriores se encontram nele. A Gabriela, personagem principal e narradora de “Doce Gabito”, se encontra e fica com o Jo�o Fiapo. Em “Os novos moradores”, entra a Vicenza Dalla Luce, a cantora e o pessoal que mora na Rua dos Oitis. O Cosme, as filhas, ali eu n�o conto a hist�ria do incesto, mas a Petra que aparece em “A roupa do corpo” � filha de um incesto dos irm�os.
Uma das passagens tocantes em “A roupa do corpo” est� associada ao �rf�o, Juliano. J� o Fiapo, que � o personagem central, parece-me menos envolvente. Quando terminou a obra, o senhor ficou satisfeito com o desempenho das personagens?
O Fiapo � feito dos questionamentos, � uma pessoa muito dividida. Tanto que tem horas em que ele se acha Jo�o, um nome aumentativo, e �s vezes se acha um Fiapo. Acho que no fundo todos temos um pouco disso. Eu tenho esses momentos de, �s vezes, me achar super- lativo e �s vezes uma pessoa insignificante. Todo o esfor�o do Fiapo � ele encontrar esse ponto de equil�brio. Vou lhe dar uma informa��o para provar que escrevo sem roteiro nenhum. Acho que, no segundo cap�tulo de “A roupa do corpo”, veio aquele texto em que o Fiapo iria descobrir a verdadeira miss�o dele no mundo, quando descobrisse o verdadeiro figurino dele.
E o figurino n�o seria nem aqueles que a m�e fazia; nem os figurinos do pai. Seria algo que iria transcender e descobrir qual seria o papel dele no mundo. Quando escrevi isso, eu tinha uma ideia de que Fiapo poderia estar ligado ao teatro. Pensei que ele seria ator e que teria v�rios figurinos, e, de repente, um papel que fosse fazer teria sucesso e isso mu- daria a vida dele. Era o que achava que iria acontecer. Depois eu vi que n�o. Quem era ator era o tio Jorge, n�o era o Fiapo. Quando ele virou autor de teatro, pensei que seria um ja- nota, tanto que teve alguns momentos desses. E eu s� fui saber qual era o figurino uns tr�s cap�tulos antes do final do livro.
As minhas hist�rias t�m isso: elas acabam no ano em que o romance � lan�ado. Em mar�o de 2020, eu disse: “Meu Deus, veio a pandemia. Este livro vai acabar em junho, tenho de falar sobre a pandemia, porque sen�o vai ficar em contradi��o com todas as sagas anteriores”. Fiquei muito assustado, porque n�o sabia como ia tratar desse assunto. Fui escrevendo e vieram as solu��es. Quando Fiapo se encontra com o enfermeiro que o ajudara com o pai da Angela, ele relata para a Gabriela: “Vou me voluntariar para ajudar nos hospitais”.
Ent�o, a Gabriela tamb�m vai. E a� vi que o figurino dele, que o permitiria transcender, era aquela roupa de pl�stico descart�vel, com m�scara e touca, usadas nos hospitais. Aquele figurino permitiu a Fiapo aprender o que realmente importa na vida: que � cuidar do outro. � se doar ao outro. Esse � o figurino que se deve usar.