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Estado de Minas PINTOR HOLAND�S

Uma viagem pelos del�rios de Van Gogh

No livro 'Di�rios de Vincent: impress�es do estrangeiro', Evando Nascimento romanceia os pensamentos e inquieta��es do pintor holand�s


18/06/2021 04:00 - atualizado 18/06/2021 08:52

“O dinheiro parece movimentar tudo no mundo de hoje, mas n�o me comove. Sou conduzido apenas pela beleza ou simplicidade que contemplo e desejo transportar para a superf�cie, onde esparramo camadas de tinta.” Essas s�o palavras atribu�das a Vincent van Gogh, pintor holand�s que teve uma vida breve – morreu aos 37 anos, na Fran�a –, mas que deixou uma grande contribui��o para a hist�ria da arte.

personalidade forte de um dos artistas mais influentes do s�culo 19 � pe�a central do livro “Di�rios de Vincent: Impress�es do estrangeiro”, idealizado pelo escritor, ensa�sta, professor universit�rio e artista visual Evando Nascimento, e que ser� lan�ado pela Editora Circuito, em evento virtual, nesta sexta-feira (18/06).

A proposta do romance � sedutora: navegar pelos pensamentos mais �ntimos do Vincent de carne e osso, conhecer sua conturbada rela��o com a fam�lia, suas aventuras amorosas, seu senso cr�tico e sua intelig�ncia fora do comum, tudo isso contado em primeira pessoa. O livro prop�e uma mistura de imagina��o e realidade sobre textos elaborados pelo pintor durante os quatro �ltimos anos de vida, enquanto esteve em Paris, Arles, Saint-R�my-de-Provence e Auvers-sur-Oise.

Em forma de di�rio fict�cio, o enredo mostra pensamentos, desejos, impress�es, raivas, m�goas, e tudo aquilo que se passava pela f�rtil mente do artista. “Estes s�o meus desenhos escritos, ou antes, minha escrita desenhada.”

Para isso, o professor Evando Nascimento, natural de Camac� (BA), autor das obras de fic��o “Retrato desnatural”, “Cantos do mundo”, “Cantos profanos” e “A desordem das inscri��es”, se baseou em leituras de cartas de Van Gogh, al�m de biografias e estudos cr�ticos, com o objetivo de humanizar o artista e fugir dos estere�tipos que foram criados sobre sua sanidade, inclusive no cinema. E n�o faltam boas hist�rias para isso: problemas financeiros, consumo excessivo de bebida alco�lica, solid�o, indigna��o por causa da desigualdade social, o abandono da religi�o e at� a relut�ncia em aderir ao impressionismo, muitas vezes por ele criticado, exp�em a face mais mundana de um pintor ainda em forma��o.

Vincent van Gogh, ou simplesmente Vincent, como ele assinava seus quadros, e o motivo � explicado no romance, odiava institui��es acad�micas, mesmo as n�o oficiais, como os ateli�s. Chegou a abandonar duas academias de arte, em Antu�rpia e Bruxelas, e teve dificuldades com colegas enquanto fazia aulas em Paris. Ele n�o aceitava apenas seguir modelos, queria acrescentar algo do seu estilo ao processo criativo: “Tolo de quem segue as normas � risca”.

Em contrapartida, tinha compuls�o por leitura, h�bito que o fazia pensar e lhe dava muito prazer. Desse modo, mesmo sob um forte sentimento de inseguran�a em rela��o aos demais pintores da �poca, preferia estudar por conta pr�pria. Para ele, a arte significava uma combina��o de talento, intelig�ncia e sensibilidade, mas que demandava trabalho e dedica��o total.

Uma das v�rias cidades em que Vincent morou foi Paris, onde dividia o lar com o irm�o Theo. Em seus di�rios, Van Gogh fala das diferen�as entre eles que dificultavam a rela��o, mas, tamb�m, demonstra gratid�o pela constante ajuda financeira que recebia do ca�ula da fam�lia. A hist�ria mostra um pintor incomodado por viver em “tempos dif�ceis” para os artistas e que temia por uma gera��o que corria o risco de morrer jovem, sem conhecer a devida consagra��o.

“N�o se pode comer tela, tinta, pincel. [...] Infelizmente a norma atual do com�rcio �: artista bom � artista morto.” E se voc� acha que j� ouviu algo parecido por a�, os di�rios tamb�m abordam temas que ainda est�o em voga, como: “A fome � um problema social grave de nossos tempos” e “A Terra n�o � plana”.

A vida noturna de Paris agradava aos irm�os Van Gogh, que, devido aos exageros, acabaram prejudicando a pr�pria sa�de. As hist�rias contadas por Evando Nascimento mostram muitas rela��es oriundas da boemia francesa, que arrebatavam o cora��o do pintor holand�s.

Uma delas foi a italiana Agostina Segatori, dona de um restaurante. Apesar disso, Vincent sonhava com uma esposa que unisse caracter�sticas como “for�a e do�ura”, e afirmava: “Mais vale morrer de paix�o do que de t�dio”. O artista vivia em mar�s de afeto e desafeto com a pr�pria fam�lia, criticava a rela��o submissa da m�e em rela��o ao pai, e falava da necessidade de se respeitar mais as mulheres.

Existiram alguns hiatos entre as anota��es de Van Gogh. Por vezes, ele perdia os cadernos durante o trabalho, e s� voltava a encontr�-los semanas depois. Por�m, � f�cil identificar que Vincent admirava culturas diferentes. Ele falava com muito amor sobre o Jap�o, pa�s que nunca chegou a visitar, mas que influenciou em seu modo de observar a arte. 

O pintor adorava as coloridas estampas do pa�s oriental, os ‘cr�pons’, como ele mesmo as chamava, por causa do papel com que eram produzidas. Outro exemplo disso � que, al�m do holand�s, sabia ler em mais tr�s l�nguas: ingl�s, alem�o e franc�s. Adorava Balzac, Huysmans, os irm�os Goncourt, Maupassant e Flaubert.

Muito se comenta sobre o epis�dio em que Van Gogh perdeu parte da orelha e tamb�m sobre sua sa�de mental. Mas o livro tem uma proposta diferente, pois o pr�prio pintor nos conta a sua vers�o da hist�ria. A din�mica de escrita e o ritmo do texto mudam quando o holand�s est� internado em um asilo. 

Ainda assim, � interessante observar que, mesmo ap�s um diagn�stico de ‘epilepsia latente’, e recomenda��es m�dicas para que evitasse fortes emo��es, o talento brilhante de um homem que viveu pela arte se manteve intocado at� seus �ltimos dias: “A vida perde valor quando experimentada sem o que os gregos chamavam de p�thos, um estado que independe de nossa vontade, podendo nos levar aos p�ncaros da felicidade – ou �s funduras do infort�nio”.

Trecho 

“Assim, dentre os pintores que s�o grandes, Paul C�zanne pode ser colocado como um m�stico, pois � li��o de arte o que nos d�, ele v� as coisas por si mesmas, mas por sua rela��o direta com a pintura, ou seja, com a express�o con- creta de sua beleza. Ele � um contemplativo, observa esteticamente, n�o objetivamente; exprime-se pela sensibi- lidade, ou seja, pela percep��o instintiva e sentimental das rela��es e acordes. E como assim sua obra faz fronteira com a m�sica, podemos repetir de maneira irrefut�vel que � um m�stico, sendo esse �ltimo meio o supremo, o do c�u. Toda arte que se musicaliza est� no caminho de sua absoluta perfei��o. Na linguagem ele se torna poesia, na pintura torna-se beleza”.

“Di�rios de Vincent: impress�es do estrangeiro”

•Evando Nascimento
•Editora Circuito
•354 p�ginas
•R$ 60 
•Lan�amento: hoje,sexta-feira (18/06), �s 18h

ENTREVISTA

Evando Nascimento: 'Peço que leiam o livro, antes de tudo, como ficção baseada em fatos reais'(foto: Divulgação)
Evando Nascimento: 'Pe�o que leiam o livro, antes de tudo, como fic��o baseada em fatos reais' (foto: Divulga��o)
Evando Nascimento

“Van Gogh foi um dos maiores 
escritores de todos os tempos”

Como foi o processo de pesquisa para a produ��o do livro? Por que voc� decidiu por Vincent van Gogh?

Em 2015, fiz uma viagem � Holanda com a inten��o de revisitar esse museu, que conheci em 1992, e tamb�m um outro, o Kr�ller-M�ller, o segundo no mundo em quantidade de obras de Van Gogh. Voltei ao Brasil determinado a escrever uma fic��o a respeito. Procurei uma edi��o das “Cartas” na internet e encontrei os seis volumes enciclop�dicos da Editora Actes Sud, que fica em Arles, onde Van Gogh morou. Lendo a vasta cor-respond�ncia, surgiu o desejo de escre- ver um di�rio ficcional sobre os dois anos em que ele viveu em Paris com Theo, quando escreve pouqu�ssimas cartas, pois o irm�o era seu maior correspondente.

Quis preencher essa lacuna ima- ginando fatos a partir dos poucos documentos existentes. Depois criei gosto e fui at� o final, quando ele morre em Auvers-sur-Oise. Mas n�o me ative somente � correspond�ncia, que � estupenda. Consultei tamb�m as melhores biografias e diversos estudos cr�ticos, al�m de cat�logos de exposi��es. � medida que lia, fui escrevendo alguns epis�dios isolados, sempre numa narrativa em primeira pessoa, a do pr�prio artista, num caderno. A partir de determinado ponto, dei uma sistematicidade maior � escrita, cobrindo per�odos mais largos, at� concluir. A primeira vers�o ficou pronta em 2019. Dei um ano de descanso ao manuscrito e retomei no final de 2020. Foram mais tr�s meses de reescrita, at� me dar por satisfeito.

Para escrever o romance, voc� estudou a obra de Van Gogh a fundo. O quanto voc� usa da imagina��o autoral e do exerc�cio ficcional, e o quanto o livro carrega de fatos sobre o artista?

� quase imposs�vel avaliar o quanto exatamente entrou de imagina��o e o quanto entrou de realidade no romance. Posso apenas afirmar que, em linhas muito gerais, sou bastante fiel ao ho- mem excepcional que foi Van Gogh, muito diferente do mito redutor do g�nio louco e suicida. As cartas e alguns estudos hist�ricos bem fundamentados me deram os principais fatos que inte- ressavam ao retrato que eu desejava compor. Mas estou plenamente consciente de que � uma interpreta��o minha, e que outros interpretam de outra maneira, tal como fizeram bi�grafos e cineastas. Nessa leitura pessoal, o simples recorte dos fatos a serem narrados j� � parte da fic��o. Al�m disso, h� elementos inspirados em Van Gogh, mas que ele n�o necessariamente vivenciou e sobretudo n�o narrou, como fez com in�meros epis�dios de sua exist�ncia.

Os di�rios d�o acesso �s convic��es, incertezas, anseios, medos e aventuras do pintor holand�s. O que o leitor poder� perceber sobre a personalidade de Van Gogh?

Espero que meu leitor perceba um personagem culturalmente riqu�ssimo, bastante contradit�rio e muito sens�vel. Lendo sobretudo as cartas, descobri uma pessoa que n�o cabe na camisa de for�a do mito. Van Gogh era um homem cult�ssimo, que lia compulsivamente o tempo todo em tr�s l�nguas, al�m do holand�s: franc�s, ingl�s e alem�o (este bem menos). Falava ingl�s e franc�s fluentemente e tamb�m escrevia nessas duas l�nguas – um ter�o das longu�ssimas cartas � em franc�s. Adorava lite- ratura francesa, Zola e Balzac eram seus �dolos.

Tinha tamb�m um enorme repert�rio de pintura, adquirido desde que trabalhou como marchand na empresa de quadros e reprodu��es de seu tio Cent, a Goupil & Cia, a maior daquela �poca. Visitava com frequ�ncia museus e galerias. Foi um artista cosmopolita, viveu em seis cidades importantes: Haia, Amsterd�, Londres, Bruxelas, Antu�rpia e Paris, al�m de v�rias cidadezinhas do interior da Holanda, Inglaterra, B�lgica e Fran�a. Fez grandes amigos, como os pintores �mile Bernard e Paul Gauguin, mas tamb�m com gente simples como o carteiro Roulin, que pintou mais de uma vez. Teve tr�s grandes paix�es, a �ltima delas Agostina Segatori, italiana dona de um restaurante frequentado por artistas.

Por fim, mas n�o o menor, depois da leitura das cartas posso afirmar que foi um dos maiores escritores de todos os tempos. Seu estilo � simplesmente espl�ndido e precisa ser t�o reconhecido quanto as pinturas. N�o pensei em nenhum momento em imit�-lo, mas sim em forjar um estilo inspirado no modo como ele escrevia, no entanto, com dife- ren�as marcantes. Uma emula��o bastante inventiva. Posso afirmar que a vida � dele, mas a escrita � minha.
 

Em seus escritos, Vincent van Gogh celebra o ‘avan�o das ci�ncias’, ressalta que a Terra � redonda, e critica o modo como os pintores eram tratados ao afirmar que, naquela �poca, ‘artista bom era artista morto’. Voc� enxerga semelhan�as com o Brasil atual? Se estivesse vivo, o que o pintor pensaria a respeito do nosso pa�s?

Quando li numa carta essa frase sobre a obviedade de a Terra ser redonda, me lembrei logo dos terraplanistas e resolvi coloc�-la no romance. O livro tece, sim, sutilmente, algumas rela��es com o Brasil antigo e atual, de forma cr�tica mas tamb�m positiva. H� inclusive alguns (poucos) anacronismos intencionais. Quanto � frase “artista bom � artista morto”, ele nunca a pronunciou, mas o sentido cr�tico que atribuo est� na correspond�ncia. Em v�rios momentos, ele fica indignado que, ap�s a morte de um pintor como Millet, por exemplo, a obra dele dobre ou triplique de pre�o.

Ou seja, para os galeristas, depois de falecer � que a obra de um pintor se torna de fato “boa” para comercializar. Ora, isso vai se repetir ao longo de todo o s�culo 20. A obra do pr�prio Van Gogh vale mil vezes mais hoje do que quando ele era vivo. Ali�s, s� conseguiu vender um �nico quadro em vida, por baixo pre�o. H� uma cr�tica cerrada em meu romance ao fato de os artistas lucrarem em geral menos do que quem comercializa suas obras, com poucas exce��es. Essa � uma discuss�o que ele suscita e que continua a ter uma atualidade imensa: � preciso morrer para ser efetivamente valorizado. A especula��o financeira em torno da arte atingiu dimens�o estratosf�rica no s�culo 21. Van Gogh, cujo irm�o era marchand como ele mesmo foi na juventude, antecipou a explos�o abusiva do mercado de arte.

No quarto caderno, quando o artista est� em um asilo, o estado de sa�de de Van Gogh chega a comprometer as pr�prias anota��es. Como foi reproduzir esse per�odo e o que ele pode nos trazer de aprendizado?

Essa foi uma parte em que utilizei muita imagina��o. Na verdade, ele s� escrevia cartas no asilo quando n�o estava em crise. E n�o eram cartas delirantes, ao contr�rio, se ele mesmo n�o falasse da enfermidade n�o seria poss�vel identificar um louco somente pelo estilo da escrita. Fora das crises, ele manteve uma lucidez que impressiona. Mas achei interessante que meu personagem tentasse escrever durante as crises ou logo depois, quando ainda estava imerso na tormenta ps�quica.

A� fiz um experimento de linguagem, em que insiro fatos reais numa fala em parte desconjuntada, em parte l�cida. No romance isso � enriquecedor, numa biografia ver�dica seria catastr�fico. � por isso que pe�o que leiam o livro, antes de tudo, como fic��o baseada em fatos, tal como quando se vai ao cinema ver a hist�ria de um personagem real reinventada, e n�o como document�rio. A diferen�a � que optei pela forma di�rio e n�o pelo narrador em terceira pessoa. Isso traz uma complexidade especial, j� que esse di�rio jamais existiu.

H� 10 anos, em maio de 2011, quando perguntado sobre seus pr�ximos projetos, voc� disse ao Estado de Minas: “Est�o a caminho: o anunciado quase romance por vir, as duas pe�as de teatro, um livro de poemas, dois livros de ensaio, minhas correspond�ncias incompletas, uma instala��o po�tica e outras coisas que forem surgindo ao longo da estrada. Bote pelo menos uns dez anos de traba- lho nisso (risos)”. Qual balan�o voc� faz desse per�odo que passou e o que espe- rar da pr�xima d�cada?

Dez anos depois, rio de mim mesmo... H� uma dist�ncia enorme entre inten��o e gesto, sempre. Nesse per�odo, publiquei dois livros de contos, um livro de estudos sobre Clarice Lispector, diversos ensaios sobre literatura e est�tica e um livro com textos meus e de Jacques Derrida na Fran�a, al�m de escrever esse romance vangoghiano. Voltei tamb�m a desenhar como fazia na adolesc�ncia, e comecei a pintar e a fazer colagens. Escrever sobre Van Gogh � um desdobramento de minha paix�o pelas artes visuais. Antes de optar pela literatura e pela filosofia, pensei muito em me tornar artista pl�stico.

Por vias muito tortas, s� agora estou cumprindo meu destino. O �nico dese- nho que ousei p�r nesse romance � uma singela homenagem a Van Gogh e ao adolescente que fui: um girassol feito com grafite, que uma amiga chamou de “o olho de Van Gogh”, e com raz�o! Quanto ao futuro, desta vez n�o arrisco nada (risos).


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