(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas LAN�AMENTO

Como se chega ao extremo?

Carla Madeira lan�a 'V�spera', neste s�bado (6/11), com refer�ncia a um mito b�blico e reflex�es sobre a condi��o humana


05/11/2021 04:00 - atualizado 05/11/2021 17:21

A escritora Carla Madeira
'N�o aceitar as diferen�as, as singularidades de cada um, � o espa�o por onde a viol�ncia, muitas vezes, entra em nossas vidas' (foto: Cristina Cortez/Divulga��o )

“A maior riqueza do homem � a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado...” Esses simples e tocantes versos de Manoel Barros, um dos mestres da poesia brasileira, brotaram em minha mem�ria ao tentar compreender o alcance existencial de “V�spera”, terceiro romance da escritora mineira Carla Madeira, a segunda autora nacional que mais vendeu livros de fic��o adulta no Brasil em 2021, depois de Itamar Vieira Jr. e seu “Torto arado”.

Uma mulher desesperada com o casamento fracassado e para se vingar do marido arranca o pr�prio filho do carro a caminho da escola e o abandona no meio da rua. E por esse ato cruel viver� atormentada. Um homem, para se vingar da mulher religiosa que o rejeita na cama, registra os seus dois g�meos id�nticos como Caim e Abel. E tamb�m sofrer� pelo resto dos seus dias diante da dor da mulher inconformada com tanta insensatez. Se para o poeta a incompletude significa sabedoria, para os protagonistas de “V�spera” s�o tormentos carregados de rejei��o, vingan�a e culpa. Provocam a erup��o da narrativa, pode-se dizer assim, considerando-se a bela capa do livro, que traz a imagem de magma transbordando como lava.

 

Contado em dois tempos, a partir da terr�vel culpa de Vedina – que tenta reaver o filho de 5 anos que abandonou e assim repassa sua vida de casada com Abel –, e, d�cadas antes, da trajet�ria de Caim e Abel – marcados pelo trauma da m�e, Cust�dia, em renegar os nomes b�blicos batizados pelo marido, Antunes –, “V�spera” desnuda conflitos psicol�gicos. No foco, est� a implac�vel condi��o humana e suas v�speras de desfechos imprevis�veis.

''N�o se sai de uma trag�dia com os cabelos molhados ao vento como se sai de um banho nas f�rias de ver�o, quando, depois de lavar areia, �leos e suores pegajosos, veste-se uma roupa leve a tempo de voltar para a cria, sentir a brisa suave e ver a luz do dia cair na beirada dourada do mar. Um para�so n�o � suficiente contra determinados infernos. � verdade que algum al�vio os banhos demorados trazem, mas logo tudo se ressente, repuxa. Quando h� uma ferida aberta, nem os dias ensolarados melhoram as coisas. Nem o mar. E at� a brisa, musa da delicadeza, machuca.”

Assim reflete o narrador,  a certa altura da obra, sobre as consequ�ncias dos atos de cada um. “A descida at� o lugar onde somos capazes de tudo �, por vezes, um desmoronamento lento misturado � banalidade dos dias. Ou abrupta avalanche”. A vida como ela �, diria Nelson Rodrigues.

 

Como Caim e Abel lidar�o na escola e na vida adulta com o estigma do nome? E na vida afetiva? Caim ama a bela Veneza, que n�o ama Abel, que a ama, mas est� casado com Vedina. O que cada v�spera reserva aos irm�os? E o que ter� acontecido ao menino abandonado? Como se chega ao extremo? S�o perguntas que fisgam e intrigam o leitor desde as primeiras p�ginas. Em  “Tudo em rio”, primeiro livro de Carla, o extremo j� se apresenta num  doloroso tri�ngulo amoroso. Em “A natureza da mordida”, o segundo, ele est� na dores da alma das duas protagonistas. E em “V�spera” se manifesta nos atos e nas reflex�es da vida de cada personagem, em erup��es temperadas com beleza po�tica e filos�fica. E ponto final. Ir mais al�m aqui seria n�o resistir aos quase irresist�veis spoilers da tamb�m irresist�vel “V�spera”.

TRECHO DO LIVRO

“Fiquei pensando... Outro dia... Que ideia foi aquela de me pedir para tirar a roupa? Que bobagem, Antunes!

– H� quanto tempo n�o vejo seu corpo, Cust�dia?

– Pra que isso, agora, ver meu corpo?

– Voc� � minha mulher.

– E da�?

– Quero apenas olhar.

– Para um corpo velho?

– Para voc� – disse Antunes, olhos �midos enquanto lhe vinha � mente a primeira vez que viu Cust�dia.

(…) Cust�dia ficou parada olhando para ele, a travessura solta no peito. Aos poucos, com as m�os t�midas, desabotoou o vestido. Na penumbra delicada, ficou nua para Antunes.

Ele, distante, abriu os olhos e a viu. Sentiu a emo��o mais forte de toda sua vida. Olhou para o corpo de sua mulher. Ela, encabulada diante de olhos t�o desimpedidos... o peito disparado... p�s apressada a roupa de volta e saiu do quarto.

No dia seguinte, Antunes acordou cedo e apareceu na mesa do caf� da manh� sozinho, coisa que n�o fazia havia tempos. Estava mais bem-disposto. Ao se olharem, os dois tiveram a sensa��o de compartilhar uma vida.”

V�SPERA

Carla Madeira

Editora Record

278 p�ginas

R$ 49,90

Lan�amento: 6 de novembro, 

11h �s 14h, Vila 211, Rua Professor Estev�o Pinto, 211, B. Serra, em BH.

Entrevista
CARLA MADEIRA
Escritora

“A hist�ria de Caim e Abel � a hist�ria dolorosa da rejei��o”

A que voc� atribui o sucesso de “Tudo � rio” e de ser uma das campe�s de venda de livros de fic��o para adultos em 2021, num pa�s t�o carente de leitores e leitura? 

Acredito que “Tudo � rio” traz quest�es universais: sexualidade, religiosidade, viol�ncia, maternidade, perd�o. A hist�ria tem uma din�mica envolvente. Frases curtas, cap�tulos curtos, personagens intensos. Um narrador acess�vel que fala de coisas complexas de uma maneira simples. Quem l� quer dividir, falar sobre. Os livreiros contam que alguns leitores voltam na livraria para agradecer a indica��o de “Tudo � rio”. � o velho boca a boca, ampliado pela tecnologia, o grande respons�vel pelo sucesso do livro.

 

Como em “Tudo � rio” e “A natureza da mordida”, “V�spera” explora a conflituosa condi��o humana, suas virtudes e seus defeitos. Por mais que os dramas familiares se pare�am, essa � mesmo uma fonte inesgot�vel para a (sua) literatura e para a arte em geral?

Sim. Eu me interesso muito por este aspecto da nossa condi��o humana: a pot�ncia do bem e do mal e como essas for�as v�o ganhando territ�rio em n�s. Como vamos sendo enredados por nossas circunst�ncias. O livro come�a com a pergunta: Como se chega ao extremo?. Em retrospecto, percebo que essa quest�o atravessa todos os meus livros, e, em todos eles, as fam�lias ocupam o lugar primordial na din�mica dessas for�as.

 

“A mem�ria � um est�mago em permanente refluxo, e a culpa � �cida como um suco g�strico”, que atormenta Vedina ap�s abandonar o filho. Lidar com a culpa, principalmente quando vem de uma terr�vel vingan�a, seria uma das trag�dias insuper�veis da vida?

Vedina � uma mulher destro�ada por um casamento marcado pelo desamor. Abandona o filho em um momento de descontrole, arrepende-se dois minutos depois, volta ao lugar onde o deixou, mas n�o o encontra mais. � este triz que nos espreita ao longo da vida: o do acontecimento que nos aprisiona. E n�o h� confins no mundo onde possamos nos esconder dos nossos pr�prios olhos.

Do que sabemos que fizemos, do que deixamos de fazer, do que sentimos que dever�amos ter feito. Do que somos capazes. A culpa � uma presen�a sem tr�gua. Quando estava escrevendo “V�spera”, conheci um poema de Victor Hugo chamado “A consci�ncia”, que fala da culpa sentida por Caim ao matar Abel. � de uma beleza impressionante, e, ao l�-lo, sentimos o quanto a culpa � a trag�dia do inescap�vel. N�o h� como fugir dos olhos vigilantes que est�o dentro de n�s.


A “B�blia” cobriu a humanidade com o dilema cruel do manique�smo. “V�spera” subverte esse estigma. Caim, o vil�o b�blico, aqui � belo, inteligente, bem-sucedido, tem a simpatia do leitor. Abel � fraco, pouco inteligente e agride a mulher. Afinal, o peso do nome � o que o menos importa sobre o car�ter de uma pessoa? Por que sua op��o por Caim e Abel?

A hist�ria de Caim e Abel � a hist�ria dolorosa da rejei��o. A rejei��o que nasce da compara��o entre duas pessoas que possuem diferentes coisas a ofe- recer. N�o aceitar as diferen�as, as singularidades de cada um, � o espa�o por onde a viol�ncia, muitas vezes, entra em nossas vidas. Foi com esse olhar que escolhi enxergar esta hist�ria. O julgamento das oferendas a que somos submetidos de maneira recorrente talvez seja o grande mal que nos assombra. Como diria Borges: “Houve pela primeira vez a morte. J� n�o me lembro se foi Abel ou Caim”. Porque n�o importa, morremos e matamos o tempo inteiro, � uma din�mica.

Em uma leitura inicial, pode-se concluir que h� uma troca de lugares entre Caim e Abel, mas, aos poucos, muitas camadas v�o sendo colocadas para provocar uma outra compreens�o – e eu espero ter provocado – de que h� in�meras maneiras de matar e morrer. N�o h� uma s� culpa. H� muitas culpas e muitas v�speras pelo caminho. Sob a bandeira do “bem matar o mal” (os bons matarem os maus), vamos vendo o mal se esconder sob toneladas de narrativas. As palavras permitem todo tipo de realidade.

 

O romance enla�a as vidas de Caim e Abel, inclusive pelo amor da bela Veneza. Caim, em certo momento, questiona o irm�o por ter batido na mulher, Vedina, e sobre a morte do melhor amigo. E “o rosto de Abel se contorceu como se, finalmente, tivesse sido esfaqueado”. A vida dos dois irm�os � de confronto?

A hist�ria de Caim j� foi resolvida pela “B�blia”: ele ganhou um lugar para onde ir e uma numerosa descend�ncia. Deus o cumulou de b�n��os. Caim n�o � o mal, como andam dizendo por a� h� s�culos. E Abel – aquele que morre – o que pode nos inspirar? Em “V�spera”', os dois irm�os, Caim e Abel, n�o lutam por amor. Lutam para se separar. Para que cada um exista sem ser por aquilo que o define em rela��o ao outro.

Se voc� � o irm�o que morre, quer dizer que eu sou o irm�o que mata? O Abel de “V�spera” talvez nos d� a chance de pensar que se pode morrer pelas pr�prias m�os. Os dois irm�os ganharam nomes dif�ceis de carregar. E um nome n�o � s� uma palavra. Como uma palavra nunca � s� uma palavra, a ela � dado ser poema ou cativeiro. O que faremos ser? Para mim, s� fazia sentido um desfecho em “V�spera”: o que ilumina a perspectiva de que, quando olhamos para uma hist�ria, sempre inventamos uma verdade.

 

A v�spera � a nossa �ltima chance de mudar o destino? Ou “somos o que somos”, independentemente de tudo e a v�spera � mera expectativa?

Nossas v�speras podem muito. E h� nisso muita esperan�a.


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)