
Leia: Cristhiano Aguiar conta as hist�rias da peleja das sombras com os donos do sol
O autor cria as suas hist�rias de forma original, a exemplo das perip�cias de um garoto, Chiquinho, que precisa atravessar v�rios quil�metros de um povoado no interior para entregar uma carta a um famoso cangaceiro local. Neste conto, intitulado de “Anda-luz”, reina justamente a for�a imaginativa do menino, com todas as lendas e fantasias preenchendo a narrativa, tamb�m com v�rias mortes ao longo do caminho que o menino se depara, refor�ado ainda pelo sentimento de medo com a febre que assola o lugar. O percurso que o jovem faz � a grande sacada deste conto. Na �poca em que a hist�ria se passa, inclusive, o lend�rio dirig�vel Zepelim sobrevoa as cidades brasileiras, quase como um pren�ncio da modernidade que o povo veria em d�cadas futuras.
No conto seguinte, “As on�as”, moradores de uma pequena cidade tentam se proteger contra a invas�o dos felinos assassinos. A personagem Diana, a protagonista dessa hist�ria, conduz a trama junto com a m�e. Aqui, as on�as parecem servir como alegoria de invas�o, de praga e, principalmente, do cerceamento da liberdade. N�o por acaso, as cenas de puro horror que m�e e filha encontram nos arredores, quando precisam buscar rem�dios e suprimentos, se misturam com pensamentos sobre a ditadura militar em curso no Brasil. Esse � um conto bastante tenso, ali�s, em que o leitor acompanha esperando por algo inesperado, revelado apenas na �ltima linha, quando um segredo entre m�e e filha surge inesperadamente.
Ecos das “intermit�ncias” de Saramago
A pandemia da COVID-19 se faz presente no conto “L�zaro”, sobre uma idosa dada como morta que ressuscita por algum efeito ainda desconhecido da ci�ncia. Em seguida, outras pessoas tamb�m mortas pelo v�rus come�am a milagrosamente ressuscitar. Os ressuscitados, no entanto, se tornam uma esp�cie de estorvo, por j� n�o serem as mesmas pessoas de antes. Tal qual nas “As intermit�ncias da morte”, de Jos� Saramago, a n�o morte se torna um problema, porque as pessoas n�o voltam do mesmo jeito, passam a “viver” como zumbis. Esse milagre confuso assume ares de fic��o cient�fica, pois os novos humanos quebram o c�digo secreto entre a vida e a morte. Do que � morrer e, mais ainda, do que � (ou significa ser) estar vivo. As pessoas se tornam, de uma hora para outra, espelhos difusos do p�s-vida.
Em “Firestarter”, colecionadores de inc�ndios buscam queimadas atrav�s de um aplicativo, num novo entretenimento macabro. S�o pessoas que juram fidelidade ao fogo, t�m a estranha sensa��o de pertencimento, com picos de pura euforia e emo��o em ser, literalmente, quase devoradas pelo fogo.
O Nordeste do t�tulo, claro, est� presente em cada um dos contos, mas pintado com tintas que unem o que se sup�e ser o tradicional da regi�o, apesar de distante do puro estere�tipo, trazendo atrav�s do g�tico um outro formato ficcional. Em boa parte, os textos s�o focados (como n�o poderia deixar de ser) no territ�rio m�tico que a regi�o evoca a partir de diversos s�mbolos, como os que est�o presentes em “A mulher dos p�s molhados”. Nessa hist�ria, acompanhamos a suposta maldi��o de uma fam�lia desde quando um antepassado apareceu depois que o navio dele ficou encalhado na Para�ba. O pesadelo constante que a narradora (bisneta desse n�ufrago) tem com uma certa mulher de p�s molhados e cheiro de mar torna o conto o mais fantasmag�rico do livro.
As narrativas de Cristhiano Aguiar se sustentam pela for�a especulativa e imag�tica dos enredos. O leitor acompanha o desenrolar das hist�rias com real interesse, porque sempre existe algo a mais, n�o apenas o que est� na superf�cie, pendendo, por vezes, para uma esp�cie de realismo m�gico, quando detalhes corriqueiros ganham uma dimens�o diferente. Sobretudo nas hist�rias onde a natureza dita as regras, como nos contos “Tecidos no jardim” e “Anna e os insetos”, dois textos com a cor local trabalhada n�o para documentar algo do passado, na tentativa de fincar um sentimento nost�lgico, mas para mostrar que o passado e o presente podem, e devem, caminhar juntos compartilhando os seus abismos.
Em “Anna e seus insetos” acompanhamos a rela��o de um casal j� perto do fim. As pequenas coisas que Anna nota naquele apartamento do Recife Antigo, os insetos que habitam a resid�ncia e a vida desta mulher, s�o tratados num tom quase sobrenatural.
Observamos aqui uma Recife moderna, mas que, nos pensamentos da narradora, n�o fez desaparecer a cidade de outrora, ao menos na imagina��o dela. Os objetos de ambos, marido e mulher, se misturam com os sentimentos e pensamentos da rela��o h� muito desgastada. Anna precisa viver a rotina de aus�ncias do marido m�dico, acentuado ainda mais por conta de um lockdown que ela precisa tamb�m enfrentar. A forma��o do imagin�rio coletivo � bastante forte nos textos. O exemplo mais percept�vel disso est� em um dos contos mais regulares do livro, “A noiva”. O texto retrata o culto de alguns adolescentes ao redor de uma morta, encontrada em um galp�o abandonado. Essa mulher desperta a curiosidade dos garotos, que come�am a achar que ela � santa, mesmo sem eles entenderem que se trata de um poss�vel caso de feminic�dio.
No conto que encerra a obra, intitulado de “Vampiro”, essa figura mitol�gica que os mais velhos dizem habitar a cidade h� muitos anos povoa tamb�m o imagin�rio coletivo da popula��o. Al�m das crendices t�picas do interior, da cidade povoada por fantasmas, o conto traz uma reflex�o muito interessante sobre o bem e o mal, tendo a figura do suposto vampiro como alicerce para o andamento da narrativa.
“G�tico nordestino” � um livro divertido e bem-escrito. O autor soube criar personagens e boas tramas, fugindo dos arqu�tipos, tanto do g�tico quanto do nordestino. � percept�vel a influ�ncia da cultura pop na prosa de Cristhiano Aguiar. O autor conecta essas refer�ncias no livro unindo, por vezes, com a cultura oral do Nordeste, a partir da forma muito peculiar que as pessoas do interior t�m em contar boas hist�rias fantasiosas, com os famosos elementos que provocam admira��o e, muitas vezes, espanto no espectador.
Ainda que os contos de Cristhiano neste livro n�o sejam espetaculares, eles conseguem prender o leitor justamente pela suposi��o de algo que est� por vir, num passeio quase sensorial por �reas rurais, do sert�o, mas tamb�m pela metr�pole e o litoral. O principal m�rito dos contos � mostrar que sempre pode existir um outro lado para al�m do real e caricato, principalmente quando se fala em Nordeste, muito mais secreto e profundo do que a simples vis�o superficial � capaz de alcan�ar. Neste livro, observamos o assombro que se esconde quase sempre nas situa��es aparentemente simples e banais, escondidas nos detalhes, como s� a boa fic��o � capaz de fazer enxergar, mas que nunca desvenda totalmente o mist�rio oculto das entrelinhas.
*Ney Anderson � jornalista, escritor e cr�tico liter�rio, autor do livro “O espet�culo da aus�ncia” (Patu�) e editor do site Ang�stia Criadora (www.angustiacriadora.com) / @angustiacriadora