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Estado de Minas LITERATURA

Em 'Janeiro', argentina Sara Gallardo aborda temas feministas essenciais

Lan�ado no Brasil pela editora mineira Moinhos, estreia da autora argentina fala sobre estupro, aborto e o tratamento dispensado a elas diante da barb�rie


11/03/2022 04:00 - atualizado 11/03/2022 00:28

ilustração

Um fungo negro � a imagem central de “Janeiro”, de Sara Gallardo (1931-1988). As duas vezes em que a express�o surge ao longo do romance s�o o suficiente para enunciar a condi��o predat�ria da protagonista do relato da escritora argentina, publicado pela primeira vez em 1958. Nefer tem 16 anos e vive com a fam�lia no pampa, em uma vida eminentemente rural de um pequeno povoado argentino. Ela foi estuprada, est� gr�vida e o segredo a envenena dia ap�s dia. Em seu desespero, sente abrigar um fungo negro no ventre. Uma imagem potente que irradia, de muitas formas, o sentimento da jovem ao gestar uma criatura n�o desejada em meio � prec�ria exist�ncia.

O calor do ver�o dilata o tempo e faz suar os corpos, e a temperatura elevada da plan�cie meridional agudiza a sensa��o de peso e monotonia. Nessa latitude, Nefer ser� mais uma v�tima, mas ela poderia carregar muitos outros nomes. O romance s� chega agora em tradu��o brasileira, e os mais de 60 anos que nos separam da primeira edi��o s�o pouco diante da prem�ncia de ler essa narrativa. “Janeiro” � agora. Nada ali envelheceu: estupro e aborto seguem temas obrigat�rios para pensar o lugar das mulheres na sociedade, e o tratamento dado a elas diante da barb�rie. 

Gallardo escreveu romances, contos, literatura infantil e colaborou para revistas argentinas como Primera Plana e Confirmado, al�m do jornal La Naci�n. Esta obra de estreia j� anuncia sua not�vel capacidade de criar climas, sem necessariamente se amparar em longas descri��es – a simples men��o a um pormenor serve para evocar toda uma ambienta��o, como o desolamento da vis�o de um c�o com o dorso cheio de lama na porta da igreja, ou o gesto da m�o que colhe farelos no tecido gasto de uma toalha de mesa. O cen�rio de amplid�o e vastos panoramas poderia facilmente convidar ao descritivismo da paisagem. N�o para Gallardo, que, como miniaturista, oferece outros �ngulos para acessar o que se passa dentro da personagem, selecionando e modelando a narrativa de acordo com o olhar da protagonista: “O quarto se borra para Nefer e os detalhes ganham import�ncia: o bordado do vestido, uma perna e o sapato, outra perna com seu sapato, o cabelo que se inclina em dire��o a ela, a m�o seca e fria que tateia seu ventre”. 

No que se refere ao contexto de mis�ria e atraso, Nefer carrega caracter�sticas similares �s do protagonista do romance “Eisejuaz” (1971, lan�ado no Brasil em 2021 pela Relic�rio), e neles Gallardo examina a condi��o subalterna dessas pessoas na sociedade argentina. Uma jovem humilde, cuja fam�lia vive do trabalho na terra e um ind�gena que transita entre o saber das matas e o discurso do colonizador. Dois p�rias, com muita chance de naufragar pelo caminho. “Eisejuaz” roga a um Deus que nunca responde, e essa inst�ncia tamb�m est� presente em “Janeiro”, amea�ando a jovem com a imagem do fogo do inferno para quem vive em pecado.

Mas a intimida��o n�o deriva somente da presen�a divina. “Os patr�es e a pol�cia t�m ideias parecidas”, e toda essa gente explorada depende, muitas vezes, da condescend�ncia de fam�lias abastadas, constituindo rela��es de favor e apadrinhamento. � o caso da madrinha da menina, que assume um papel definitivo na escolha de seu destino. Nefer � vulner�vel a todos esses discursos que a oprimem ainda uma vez, para al�m do pr�prio corpo violado: igreja, sociedade e fam�lia a castigam novamente.

Culpa, incompreens�o e ang�stia

A cena em que o padre vai � comunidade � ilustrativa – o discurso culpabilizante da igreja s� traz incompreens�o e ang�stia. Comunh�o, batizado, casamentos, confiss�o, rituais sem sentido v�o apenas se somando diante do desespero de entender o inexplic�vel: “Por que eu, e n�o outra?”. Essa s�plica se multiplica diante da constata��o amarga de que quase todos est�o surdos ao seu lamento. Nessa configura��o, um pai amoroso surge no cen�rio, mas sua mudez n�o impulsiona nenhuma forma de resist�ncia.

Uma das muitas virtudes da narrativa surge quando Gallardo evoca de forma sensorial a impossibilidade de articular a fala. A men��o aos dentes, l�bios e garganta surge sempre que algo fundamental se passa com a personagem, interrompendo a natureza fluida do discurso. Tudo ent�o � trope�o, gagueira, vacilo: Nefer deseja morder os dentes para n�o ter de revelar seu segredo vergonhoso, pressente o grito forte que sobe na garganta e � impedido pela boca de sair, sente impot�ncia quando deseja vocalizar o abandono: “Sua dor sobe como lentas facadas na garganta que lhe doem, lhe doem, e seus gemidos se perdem entre rumores de mugidos e de patas que mudam de posi��o”. Toda uma constela��o de imagens a incluir no centro da trama o silenciamento da jovem a partir de um corpo que padece e de uma l�ngua emudecida. 

Olhos e ouvidos igualmente recebem destaque, denotando a exist�ncia de tantas palavras in�teis diante do drama vivenciado. Abortar � um crime, diz a madrinha, pois se trata da morte de algu�m que n�o pode se defender. A m�e, descrita como algu�m que tem olhos de pedra, pensa de modo semelhante. O n�o dizer ecoa tamb�m na pr�pria cena da viola��o, j� que Gallardo dedica pouqu�ssimas linhas a esse momento: n�o descreve, n�o se delonga no ato em si, n�o faz render no texto o crime perpetrado, mas sim os ecos terr�veis desse acontecimento. 

Vaidosa, Nefer sonha com um vestido bonito para se fazer bela aos olhos de Negro Ramos, famoso cavaleiro local que a encanta. Mas as m�os que remendam a vestimenta de festa s�o as mesmas que se dedicam � ordenha do gado e ao preparo dos gr�os para a semeadura. � o mundo do trabalho que grita aqui, nessas m�os “sujas de terra e leite”. Est�o sempre pretas as unhas de Nefer, impregnadas do solo cultivado, mirando o tempo da colheita que logo deve chegar. Se faz presente todo um calend�rio ditado pela terra, essa m�e t�o maltratada. Um tempo de semear, outro tempo de colher. Mas para meninas como ela – e como tantas mulheres ao redor deste triste planeta que as condena � viol�ncia e � morte – os belos vestidos devem esperar, e as unhas s�o negras, assim como o fungo n�o desejado inchando em seu ventre. Ao centrar sua narrativa na subjetividade pulsante daquela que foi agredida, Gallardo nos coloca frente a frente a esse desamparo. Seus olhos, ouvidos, unhas e dentes se postam diante de n�s, e dessa experi�ncia de leitura sa�mos chamuscados.

Trecho

“Talvez fosse melhor se sentar, recusar as mantas, repousar as costas na parede enrugada, passar a m�o pela testa e pelo cabelo �mido, fechar os olhos. Era intrincada demais a tran�a de ru�dos na escurid�o, com o pesado tique-taque do despertador, a respira��o de Alzira, os roncos dos pais atrav�s das portas, os cachorros inquietos na noite, os galos pr�ximos e os distantes, o pr�prio cora��o palpitando e trepado na garganta que se asfixia, e acima de tudo, passando pelo quarto sem interrup��o, passando pela noite, passando pelo mundo, o tempo carregado de coisas que chegam e passam, chegam e passam, mas que n�o podem separar-se.”

capa do livro Janeiro

“Janeiro”

.Sara Gallardo
.Tradu��o de Ellen Maria Vasconcellos
.Moinhos
.96 p�ginas
.R$ 48. E-book: R$ 33,99

*Stefania Chiarelli � professora associada de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense, realizou os estudos de mestrado em teoria liter�ria pela Universidade de Bras�lia (1997) e doutorado em estudos de literatura pela Pontif�cia Universidade Cat�lica do Rio de Janeiro (2005)


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