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Estado de Minas LITERATURA

Em colet�nea, Philip Roth revisita valores que guiaram trajet�ria liter�ria

Reunidos no volume 'Por que escrever?', textos de n�o fic��o revelam novo �ngulo sobre a carreira prof�cua do escritor norte-americano, morto em 2018


18/03/2022 04:00 - atualizado 17/03/2022 23:26

ilustração do escritor Philip Roth

A vantagem do m�gico, do ventr�loquo, � dizer na sua cara que vai te enganar e voc�, mesmo sabendo que isso deve acontecer, ainda assim acha tudo muito fascinante no espet�culo. N�o � muito diferente da fun��o do escritor. Ele tamb�m te engana, voc� tem consci�ncia de que est� sendo enganado, o contrato entre voc�s tem regras claras e a verdade � que todo mundo termina mais ou menos contente com a rela��o. Mas de vez em quando o tipo de ru�do provocado por um escritor fica alto demais. 

� o caso do escritor norte-americano Philip Roth, que desde que publicou o primeiro livro de contos, “Adeus, Columbus”, sofreu acusa��es de antissemitismo e entrou numa roda viva de debates em arena p�blica. A essas acusa��es agregou-se mais tarde a de misoginia, avers�o a mulheres. Fruto de m�s leituras, de interpreta��es pobres e de um clima crescente de desconfian�a generalizada, que ergue tarjas de perigo a qualquer aviso de controv�rsia potencial.

� preciso coragem para enfrentar a oposi��o, quando se tem certeza de que se est� fazendo a coisa certa. No caso, escrever a respeito da complexidade da vida. Por isso, o lan�amento de “Por que escrever?”, que re�ne sobretudo trechos dos dois livros de n�o fic��o do escritor, vem em boa hora. Numa entrevista do volume, ele mesmo d� a dica: “Quem quer que busque encontrar o pensamento do escritor nas palavras e nos pensamentos de seus personagens est� olhando no lugar errado”. 

Primeiro, um esclarecimento. Logo na abertura do volume, Roth alega que dos 31 livros que publicou, 27 foram de fic��o, uma conta intencionalmente embaralhada. Na verdade, h� dois claramente de n�o fic��o, “Lendo o que eu e outros escreveram”, que re�ne ensaios, e “Entre n�s”, uma s�rie de entrevistas de Roth com colegas de profiss�o e alguns ensaios (um deles absolutamente brilhante e impec�vel, a respeito de Saul Bellow, a quem Roth admirava muito).

Os outros dois livros que ele coloca na conta, bem, s�o “Patrim�nio”, um relato do fim da vida do pr�prio pai, e “Os fatos”, uma breve autobiografia “sobre a minha evolu��o como escritor”, alega. O primeiro pode ser lido como uma manifesta��o de um dos mais conhecidos alter egos de Roth, justa e provocativamente um certo “Philip Roth”. Os demais alter egos s�o David Kepesh, que aparece em “O seio”, “O professor de desejo” e “Animal agonizante”, e o mais longevo deles, Nathan Zuckerman, que comparece em nove livros, desde “O escritor fantasma” at� “Fantasma sai de cena”, e rendeu alguns dos grandes livros, talvez os melhores, de Roth.

Mas por cinco vezes ele usou a si mesmo ou familiares mais pr�ximos para ficcionalizar a pr�pria vida, come�ando justamente com “Patrim�nio” e indo at� “Compl� contra a Am�rica”. E, portanto, essa conta anunciada pelo escritor n�o fecha bem. Al�m disso, no fim de “Os fatos” ele acrescenta uma carta de Zuckerman endere�ada a Roth a lhe dizer que n�o publique a alegada autobiografia, porque o texto est� n�o apenas insuficiente, mas claramente ruim e problem�tico. O que deixa ao leitor o papel de separar o que � o qu� e quem est� certo nessa hist�ria (e, sim, o livro foi publicado, o que significa que Roth, ou “Philip Roth”, esse peculiar alter ego, se sobrep�e a Zuckerman, cujo recado n�o foi levado em conta, ou talvez deva ser lido como apenas mais uma diatribe de escritor a exibir talento e criar biombos e disfarces por tr�s dos quais esconde as verdadeiras inten��es).

N�o � toa, Roth diz numa entrevista que o que pode ser considerado “pelos ing�nuos” como autobiografia pura � “mais provavelmente uma autobiografia falsa, uma autobiografia hipot�tica ou uma autobiografia grandiosamente ampliada”. Durma-se com a barulheira. 

De volta � ativa

A vantagem clara de “Por que escrever?”, al�m da reuni�o de alguns textos fundamentais em que Roth explica os pr�prios processos e decis�es narrativas, est� em algumas palestras que profere depois de 2009, quando anunciou que n�o ia mais escrever, fic��o ou qualquer outra coisa. Ora, esses textos de palestras s�o, de algum modo, a escrita de Roth ainda em atividade, embora n�o mais como ficcionista praticante, bem mais como memorialista de si.

Na �ltima das palestras, ali�s, ele termina lendo um trecho de “O teatro de Sabbath” – em minha opini�o, o melhor de todos os seus livros. E na apresenta��o do volume, o escritor ecoa uma frase de Sabbath, quando deixa uma pedrinha em cima das l�pides de seus parentes no cemit�rio � beira-mar onde se encontram os restos dos familiares. Sabbath diz a seus mortos: “Aqui estou”. Pois Roth o secunda: “Aqui estou, tendo sa�do de detr�s do biombo de disfarces, inven��es e artif�cios do romance”. Numa entrevista em outra parte, ele diz: “Para mim, o trabalho de escrever significa transformar a loucura do eu na loucura do ele”. 

O primeiro dos textos de “Lendo o que eu e outros escreveram” contido neste volume d� um toque da embocadura especial utilizada por Philip Roth. Chama-se “‘Eu sempre quis que voc�s admirassem meu jejum’, ou Contemplando Kafka” e est� dividido em duas partes, a primeira delas um ensaio a respeito do escritor tcheco a quem Roth (e qualquer escritor que se preze) admira, a segunda um conto em que ele transforma Kafka num professor severo que ele, menino de nove anos, um dia teve, e que chegou inclusive a ter um breve namoro com uma de suas tias.

Ou seja, a ideia de misturar as inst�ncias, fic��o e n�o fic��o, faz parte do projeto do escritor em qualquer que seja a modalidade em que investe – o que deve no m�nimo levantar suspeitas a respeito do que ele diz nas entrevistas. E � importante saber que, quando dava aulas a respeito de Kafka na Universidade da Pensilv�nia no mesmo momento em que brincava “com as ideias que se cristalizaram em ‘O complexo de Portnoy’”, isso ajuda a entender o alcance que o livro adquiriu.

Foi o mais vendido e � ainda o mais conhecido da carreira do escritor, em que pese ele ter feito coisas melhores e ainda mais provocativas depois. H� inclusive v�rios textos dele a respeito especificamente desse romance, al�m de uma entrevista sobre o assunto concedida a George Plimpton, nada menos que o fundador da revista liter�ria “The Paris Review”. O volume tem, ali�s, a entrevista oficial de Roth para a revista, na qual ele comenta que escreve �s vezes cem ou mais p�ginas antes que apare�a o par�grafo que ser� o in�cio do pr�ximo livro. E sim, ele descarta as p�ginas anteriores sem piedade.

Na parte das conversas com outros escritores, o que se sobressai nem � tanto o contato com nomes do primeiro time, como Primo Levi, Aharon Appelfeld, Ivan Kl�ma ou Milan Kundera. � a capacidade anal�tica de se posicionar enquanto parece fazer uma entrevista. Algumas s�o brilhantes em toda a sua plenitude e desenvolvimento e � importante para saber, por exemplo, o que aconteceu com alguns escritores obrigados a viver sob regime da Cortina de Ferro ou submetidos �s agruras de campos de concentra��o durante a Segunda Guerra Mundial. Ajuda o fato de Roth ter coordenado a s�rie Escritores da Outra Europa para a editora Penguin, que se concentrou em lan�ar livros de escritores do Leste europeu. 

Autocontrole a toda prova

A argumenta��o de Roth como ensa�sta � t�o brilhante quanto sua prosa de fic��o e, no frigir dos ovos, o que se sobressai de tudo � a decis�o dele de ter controlado com m�o de ferro a pr�pria carreira para emitir, de forma at� econ�mica, os 31 livros que lan�ou, entre 1959 e 2010. “Por que escrever?” �, n�o apenas um adendo, um ap�ndice, com pouco mais de uma d�zia de textos realmente in�ditos, mas tamb�m um novo �ngulo para enxergar a n�o fic��o desse grande prosador, morto em 2018.

Depois de explicar, por exemplo, a repercuss�o provocada pela �nica colet�nea de contos da carreira, “Adeus, Columbus”, ele lista os adjetivos que recebeu na �poca: a obra seria “perigosa, desonesta e irrespons�vel”, segundo seus detratores. N�o com enfado, mas na verdade com enorme disposi��o para luta, ele pondera: “�s pessoas que sentem que finquei meus dentes em suas carnes, � dif�cil, se n�o imposs�vel, explicar que muitas vezes elas nem foram mordidas”. N�o � toa, ele termina por cunhar uma express�o sint�tica que d� conta da postura de seus detratores: ele fala em “leitura equivocada imaginativa”. Em outro ponto, afirma que apartada da fic��o, “a sabedoria de um romancista n�o passa de conversa pura”. E como gosta de conversar, talvez de jogar conversa fora. Se bem que ele se comporta como se nada do que diz fosse (e n�o �) banal.

Nem sempre Roth conviveu com os advers�rios usando bons modos e modera��o. Numa entrevista concedida a Joyce Carol Oates, ele conta a respeito do trabalho que teve para responder, de forma p�blica e extensa, a toda sorte de acusa��es que angariou, e que lhe custou muito tempo e empenho. “Fora isso, eu me enfure�o e esque�o; e continuo a esquecer at� que – milagre dos milagres – esque�o de verdade.”

� interessante pensar que numa resposta concedida nesta mesma entrevista ele termine por responder, indiretamente, a quem lhe acusa de misoginia, quando Oates lhe pergunta se ele gostaria de viver como homem ou como mulher e ainda lhe oferece a possibilidade de assinalar “outro”, que sua op��o seria por ambos os sexos: “Como a personagem central de ‘Orlando’ [romance de Virginia Woolf em que a personagem muda de sexo ao longo de s�culos]. Quer dizer, sequencialmente, e n�o ao mesmo tempo”. � esse o papel do escritor, entender a variedade humana. Como ele mesmo diz em outra parte, “estamos escrevendo vers�es inventadas de nossa vida o tempo todo, hist�rias contradit�rias por�m mutuamente entrela�adas, hist�rias que, falsificadas de forma sutil ou grosseira, constituem nosso dom�nio sobre a realidade e s�o a coisa que temos mais pr�xima da verdade”. 

A terceira parte � toda constitu�da por palestras, discursos em pr�mios ou para comemorar anivers�rios. � a parte mais recente e mistura em doses mais ou menos iguais mem�ria, avalia��o e nostalgia. Uma vida liter�ria passada em revista pelo mecanismo emocional. Tem ainda a discuss�o tornada p�blica, quando Roth tentou corrigir distor��es da Wikip�dia e os editores exigiram “fontes secund�rias”. Meus amigos e amigas, se o autor que escreveu aquelas coisas n�o puder atestar a veracidade das informa��es... bem, este � o mundo que afinal Roth ajudou a construir, de desconfian�as perp�tuas. 

A belicosidade com que precisou enfrentar uma s�rie de advers�rios ao longo da carreira parece ter desviado um pouco da energia que ele poderia ter empregado escrevendo outros tantos livros. Mas tamb�m � verdade que se alimentava de controv�rsias, que isso o tornou um dos mais judeus entre os escritores judeus, e, afinal, ele demonstrava gostar de sua dose cotidiana de veneno.

Como um pactu�rio que aceitou o pre�o estipulado pelo Diabo, ele precisou enfrentar uma briga que lhe atravessou a vida inteira, o mais longo round de dura��o. Ali�s, o escritor disse que judeus n�o gostam de virar lutadores de boxe justamente pelo risco de ter a mand�bula quebrada e n�o poderem mais falar por uns tempos, algo inimagin�vel. Em contrapartida, Roth p�de embaralhar o quanto quis as marcas fronteiri�as entre o real e a fic��o, fazendo uso indiscriminado de “grada��es expressivas de comicidade”. N�o � pouco. O tempo dir� se ele acertou nas escolhas. Na �ltima entrevista recolhida no volume diz que todas as manh�s, durante cinquenta anos, “encarei a p�gina seguinte indefeso e despreparado”. Para concluir: “Foi a obstina��o, e n�o o talento, que salvou minha vida.” Um grande n�mero de f�s discorda que tenha sido s� obstina��o. 

* Paulo Paniago � professor de jornalismo da Universidade de Bras�lia

TRECHO

“Escrever para mim n�o � uma coisa natural, que eu simplesmente vou fazendo, como um peixe nada ou um p�ssaro voa. � algo feito sob uma esp�cie de provoca��o, uma urg�ncia especial. � a transforma��o, mediante uma personifica��o complexa, de uma emerg�ncia pessoal num ato p�blico (nos dois sentidos da palavra ‘ato’). Pode ser um exerc�cio espiritual muito exasperante filtrar atrav�s do seu ser qualidades que s�o estranhas � sua constitui��o moral – t�o exasperante para o escritor como para o leitor. O escritor �s vezes se usa de modo bem cruel a fim de alcan�ar o que est�, literalmente, mais al�m dele. O imitador n�o pode se entregar aos instintos humanos comuns que determinam o que as pessoas querem exibir e o que querem ocultar.”

LINHA DO TEMPO

Os livros de Philip Roth em ordem cronol�gica. O ano de publica��o corresponde ao texto original. Os t�tulos em ingl�s s�o dos livros ainda sem tradu��o. 
Capa do livro 'Adeus, Columbus'

1959  - “Adeus, Columbus”

1962  - “Letting Go”

1967 -“Quando ela era boa” 

1969 - “O complexo de Portnoy”  

1971 - “Our Gang” 

 1972 -  “O seio” David Kepesh (1)

1973  - “The Great American Novel”

1974 - “Minha vida de homem”

1975 - “Lendo o que eu e outros escreveram”*
capa do livro 'O professor de desejo'

1977  -  “O professor de desejo” 

1979 - “O escritor fantasma” 

1981  - “Zuckerman libertado” 

1983  - “Li��o de anatomia”

1985 - “A orgia de Praga” 
capa do livro 'O avesso da vida'

1986 - “O avesso da vida”

1988  - “Os fatos: a autobiografia de um romancista”

1990  - “Mentiras”

1991  - “Patrim�nio: uma hist�ria verdadeira” 

1993  - “Opera��o Shylock: uma confiss�o” 

1995  - “O teatro de Sabbath”

1997  - “Pastoral americana” 

1998  - “Casei com um comunista” 
capa do livro 'A marca humana'

2000  - “A marca humana”

2001  - “O animal agonizante” 

2001 -  “Entre n�s”

2004 - “Compl� contra a Am�rica” 

2006  - “Homem comum” 

2007 - “Fantasma sai de cena” 

2008  - “Indigna��o”

2009 - “Humilha��o”

2010 -  “N�mesis”

“POR QUE ESCREVER? — CONVERSAS E ENSAIOS SOBRE LITERATURA (1960-2013)”
Philip Roth
• Companhia das Letras
• Tradu��o de Jorio Dauster
• 568 p�ginas
• R$ 89,90 e-book: 39,90


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