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Estado de Minas LITERATURA

Filme e contos introduzem leitor ao fant�stico cotidiano de Haruki Murakami

Conto 'Drive my car', do escritor japon�s, inspirou o longa hom�nimo, que concorre ao Oscar de melhor filme e em outras tr�s categorias neste domingo


25/03/2022 04:00 - atualizado 24/03/2022 23:41

Ilustraçao do escritor japonês Haruki Murakami

 "Homens sem mulheres”, livro de contos lan�ado em 2014, � uma boa refer�ncia para quem quer se iniciar ou j� conhece a literatura do escritor japon�s Haruki Murakami, de 73 anos. N�o apenas porque cont�m “Drive my car” – que inspira o filme hom�nimo que concorre ao Oscar em quatro categorias (filme, dire��o, roteiro adaptado e longa estrangeiro) no pr�ximo domingo e foi premiado como melhor roteiro no Festival de Cannes e com o Globo de Ouro de melhor longa estrangeiro, entre outros pr�mios.

Mas por juntar realismo e fantasia, que permeiam o conjunto de suas obras. Ser� a primeira vez que um filme japon�s concorre a melhor longa na academia de Hollywood, gra�as � uni�o dos talentos de Murakami e do diretor Ryusuke Hamaguchi. O nome do conto j� entrega uma das grandes prefer�ncias de Murakami: Beatles. “Drive my car” � o nome de uma can��o do quarteto de Liverpool.

Leia: Indicados ao Oscar 2022: saiba onde assistir a todos os filmes

“Onna no imai otoko tachi”, no original, re�ne os contos “Drive my car”, “Yesterday”, “�rg�o independente”, “Sherazade”, “Kino”, “Samsa apaixonado” e “Homens em mulheres”. De certa forma, sintetiza toda a obra de Murakami. Desde a narrativa simples do cotidiano dos protagonistas, com suas vidas frugais e ao mesmo tempo com rela��es afetivas intrincadas, entre trai��es e abandonos, e grande influ�ncia da cultura ocidental – que inclusive rende cr�ticas ao autor em seu pa�s – at� o realismo fant�stico, que cria mist�rio e d� um charme aos seus enredos. Murakami ficou conhecido no Brasil por sua curiosa trilogia best-seller “1Q84”, que envolve um casal de protagonistas �s voltas com dois mundos paralelos, um real e outro fantasioso.

TRAI��O E LUTO

“Drive my car”, o primeiro conto de “Homens sem mulheres”, pode ser considerado uma introdu��o ao filme, que aprofunda a narrativa liter�ria. � a hist�ria de Kafuku, ator que interpreta “Tio V�nia” na pe�a cl�ssica do escritor e dramaturgo Anton Tch�khov (1860-1904) – mestre do realismo russo. Ele perde a mulher, vitimada por um c�ncer de ov�rio fulminante, ap�s 20 anos de casamento. A dor do luto se soma � dor da trai��o, porque Kafuku, mesmo considerando ter um casamento feliz, descobre os casos extraconjugais da mulher, com quem contracena na pe�a.

Diz o narrador: “Kafuku ficou sabendo de quatro deles. � claro que a esposa agia como se nada estivesse acontecendo, mas ele logo percebia que ela estava se entregando a outros homens. Ele tinha uma intui��o boa quando se tratava disso e, quando se ama profundamente uma mulher, mesmo n�o querendo, � poss�vel perceber essas coisas. Pelo modo como ela falava, ele conseguiu descobrir facilmente quem eram os homens”. E um desses amantes de sua mulher tamb�m � um ator de “Tio V�nia”. Kafuku, ent�o, ap�s a morte dela, faz amizade com ele para satisfazer sua curiosidade sobre um dos homens que a levava para a cama.

E nesse meio do caminho do vaiv�m de Kafuku entre sua casa e o teatro aparece Misaki Watari, uma jovem “feia” de 24 anos que se torna sua motorista particular, indicada pelo dono da oficina para a qual ele levou seu carro velho, um Saab 900 amarelo convers�vel. Depois de causar um acidente e ter sua carteira de habilita��o suspensa e se recusar a rodar de metr� e t�xi, Kafuku contrata Misaki, introvertida, mas boa motorista. Kafuku aproveita o trajeto, ent�o, para encenar suas falas da pe�a.

A conviv�ncia com a mo�a estranha acaba fazendo com que abra sua intimidade para ela, revelando as trai��es da mulher e como fez amizade com Takatsuki, com quem se encontra por acaso numa sala de espera numa emissora de TV. Para aumentar o drama, Misaki tem a mesma idade que teria sua filha, que morreu ainda beb� sem receber um nome. A analogia entre a duas, � claro, aumenta o sentimento de perda de Kafuku.

“Drive my car” tem apenas 37 p�ginas, mas traz a densidade de um drama extenso quando Murakami confronta o homem Kafuku e o ator Kafuku em sua obsess�o m�rbida de manter amizade com Takatsuki, amante da mulher, como uma forma de manter as boas lembran�as dela, por mais que isso seja doloroso. E tamb�m confronta Kafuku e Takatsuki entre os limites da vida real e a da arte da representa��o. Como bom ator, ele consegue fazer com que Takatsuki n�o perceba que ele sabia do caso dele com a mulher em suas muitas idas a bares para beber e conversar. E o pr�prio Kafuku se surpreende e se incomoda com essa boa encena��o, como tammb�m tem o sentimento d�bio de simpatia e desejo de retalia��o. Foi assim tamb�m representando que n�o deixou sua mulher perceber que ele sabia das trai��es.

O FILME

O longa de Hamaguchi vai muito al�m do conto de Murakami, ao fazer de Kafufu tamb�m diretor de “Tio V�nia”. O diretor disse em entrevista ao "The Hollywood Reporter" que o filme tem elementos, al�m de “Drive my car”, dos contos “Sherazade” e “Kino”, porque a hist�ria original era muito pequena para garantir um roteiro de tr�s horas, mas as refer�ncias s�o muito sutis. Ele disse que estava desistindo de adaptar os contos, porque a autoriza��o de Murakami demorou seis meses para chegar.

Em seu conto, o escritor japon�s n�o explora a trama existencial da obra de Tch�khov, o que faz Hamaguchi no longa. A not�vel pe�a de Tch�khov fala do drama de V�nia, que chega ao fim da vida com a triste sensa��o de tempo perdido, de n�o ter realizado grandes coisas ao longo de sua exist�ncia, caindo em descr�dito inclusive entre familiares e o mundo � sua volta. Hamaguchi decidiu aprofundar na pe�a do autor russo, mesclando ensaios das falas de Tch�khov e abusando a ambiguidade do di�logo para real�ar sentimentos dos seus personagens.

O sentimento profundo � de perda, e, neste sentido, a vida de Kafuku e de V�nia se entrela�am. Hamaguchi conduz com maestria essas vidas paralelas, entrela�ando tamb�m a vida do ator e do homem, aquele que tolerou a trai��o sob uma fachada de normalidade e foi buscar conforto no acovardamento. E ainda escolhe Takatsuki, mesmo sabendo que ele era amante de sua mulher, para o papel principal da pe�a.

Quem n�o � cin�filo e espera do cinema filmes de a��o, muitas emo��es e reviravoltas, provavelmente, n�o vai ter muita paci�ncia para tr�s horas diante da tela. Isso porque, abusando do trocadilho, � um filme marcha lenta e reflexivo sobre sentimentos caros ao ser humano, como trai��o, perda e culpa. Afinal, cinema n�o � apenas pipoca, � reflex�o, e isso exige tempo e paci�ncia.



AMOR PERDIDO

“Yesterday”, como j� diz o nome, � outra influ�ncia dos Beatles na vida e na obra de Murakami. Como sempre faz ao longo de suas obras, Murakami fala de amor perdido e abandono, por meio da amizade de dois homens, um deles amargurado porque sua mulher foi embora. Kitaru d� um n� temporal na cabe�a do amigo e do leitor ao criar sua vers�o sobre sua falta de rumo para a can��o composta por Paul McCartney: “Ontem � o anteontem de amanh�. E o amanh� de anteontem”.

No conto “�rg�o independente”, o protagonista � o doutor Tokai, um cirugi�o pl�stico que tem uma cl�nica de beleza. Solteiro e refinado, ele costuma ter tr�s namoradas ao mesmo tempo e n�o se importa que elas tenham outros amantes. Bem-aceito socialmente, um dia ele surpreende seu amigo Tanimura com esta opini�o bizarra e mis�gina: “Todas as mulheres nascem com uma esp�cie de �rg�o especial para mentir. Depende de cada mulher o tipo de mentira que vai contar, onde e como vai faz�-lo. Mas com certeza todas elas mentem uma hora, ainda mais sobre assuntos importantes. Naturalmente, elas tamb�m mentem sobre assuntos que n�o t�m muita import�ncia, mas, acima de tudo, n�o hesitam em mentir nos de extrema import�ncia. E a maioria n�o muda nem um pouco a express�o do rosto nem o tom de voz nessa hora. Porque n�o s�o elas que mentem: � seu �rg�o independente, que mente por conta pr�pria. Por isso a mentira n�o faz pesar a bela consci�ncia delas nem prejudica seu sono tranquilo – com exce��o de alguns casos espec�ficos”.

“Sherazade” traz a hist�ria de Habaru, que tem uma amante, a dona de casa Sherazade, casada, que em nada se parece com a rainha de “As mil e uma noites” nem tem a cabe�a cortada, mas, depois, de cada noitada de amor, conta o estranho e proibitivo h�bito que tem de invadir a casa de um colega de escola por quem � apaixonada, quando n�o tem ningu�m em casa, mexer nos pertences dele e sempre deixar um sinal misterioso de sua invas�o.

O conto “Kino” � uma narrativa fant�stica, sobre um funcion�rio de uma empresa de artigos esportivos que abandona o emprego ap�s descobrir que sua mulher o trai com um dos seus colegas de traba- lho. Ele se muda para um lugar distante e abre um bar num im�vel cedido por uma tia. Mas ali come�am a acontecer fatos estranhos, entre serpentes e gatos, e ele � aconselhado a abandonar o lugar por um homem misterioso que o adverte sobre um perigo iminente. Sem entender o que est� para acontecer, ele resolve sair viajando Jap�o afora sem saber o que fazer.

A NOVA METAMORFOSE

O grande elemento fant�stico de “Homens sem mulheres” est� no conto “Samsa apaixonado”, no qual Murakami demonstra a influ�ncia liter�ria do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) sobre sua obra. C�lebre por sua trilogia do absurdo (“A metamorfose”, “O processo” e “O castelo”, entre outras obras contundentes), em “A metamorfose”, Kafka conta a triste sina de Gregor Samsa, o protagonista, que acorda, “ap�s sonhos intranquilos” transformado num imenso inseto e passa a ser discriminado pela pr�pria fam�lia at� um fim tr�gico. Uma cl�ssica hist�rica de rejei��o, discrimina��o e intoler�ncia.

Em sua vers�o, Murakami inverte a hist�ria e cria um inseto apavorado porque acordou num dia transformado em Gregor Samsa. O autor japon�s transfere o drama da condi��o humana para um simples invertebrado. Qu�o terr�vel passa a ser ent�o para o bicho perceber sua situa��o no mundo dos humanos. Perdido dentro de uma casa vazia, Samsa recebe a visita de uma jovem corcunda que diz ter sido chamada para consertar uma fechadura e por quem se apaixona por causa da identifica��o com sua deformidade. � a vida humana ao avesso, como se precis�ssemos.

O �ltimo conto � o que d� nome ao livro. “� muito f�cil ser um dos homens sem mulheres. Basta amar profundamente uma mulher e ser abandonado por ela. De uma forma ou de outra, voc� tamb�m vai ser um dos homens sem mulheres. De repente. E, uma vez que voc� se tornar um homem sem mulheres, a cor da solid�o se impregnar� no seu corpo. Como se fosse uma mancha de vinho tinto em um tapete de cor clara”. � o que diz o narrador ao protagonista ou at� mesmo ao leitor. Mais uma vez, Murakami fala de amor perdido e abandono ao contar a hist�ria do homem de meia-idade que lembra sua paix�o adolescente e da necessidade do conformismo, j� presente no primeiro conto, “Drive my car”. “Parece que n�o h� nada que eu possa fazer agora a n�o ser rezar”, lamenta-se o protagonista ao embalo das can��es de Percy Faith e Henry Mancini e outras cl�ssicos.


MURAKAMI ESSENCIAL

Capinha do livro 1Q84
1Q84
A trilogia lan�ada em 2009/2010, best-seller mundo afora, � a obra mais ambiciosa e fant�stica, no sentido literal, de Murakami, que inclui ainda metalingu�stica. A trama se desenrola simultaneamente em dois mundos paralelos – 1984 e 1Q84 –, embora, aparentemente, seja apenas um. A diferen�a est� no fato de que um deles tem duas luas no c�u. Murakami intercala os cap�tulos com os protagonistas Tengo e Aomame. Tengo se envolve numa jogada arriscada ao reescrever um romance misterioso que passa por uma seita perigosa. Aomame � uma matadora profissional e tamb�m est� em fuga. A trajet�ria de ambos vai se juntando aos poucos, em meio a criaturas fant�sticas, o Povo Pequenino, que usa cad�veres para transpor os dois mundos.


Homens sem mulheres
Re�ne sete contos, entre eles “Drive my car”, que inspirou o filme hom�nimo que concorre em quatro categorias ao Oscar, e “Samsa apaixonado”, uma releitura de “A metamorfose”, de Franz Kafka. Hist�rias sobre amores perdidos, trai��es e fantasia.


Kafka � beira-mar
Outro romance ambicioso, um dos melhores de Murakami, que vai da cultura pop a trag�dias gregas, entremeado tamb�m por elementos fant�sticos. S�o duas hist�rias paralelas. A do menino Kafka Tamura, de 15 anos, que foge de casa para escapar da profecia de �dipo (matar o pai e se tornar amante da m�e), numa misteriosa jornada de autoconhecimento. E a de Satoru Nakata, que sofreu um misterioso “apag�o” na sua inf�ncia e, quando acordou, passou a ter o dom de premoni��o e a capacidade de conversar com gatos.


Capinha do livro Crônica do Pássaro de Corda
Cr�nica do P�ssaro de Corda 
Extenso romance com 766 p�ginas, conta a trajet�ria de Toru Okada, que leva uma vida banal em T�quio, at� o dia em que seu gato desaparece e sua vida se transforma totalmente. Em seguida, sua mulher, Kumiko, o abandona e estranhos personagens surgem em sua vida, como fantasmas invadindo seu mundo real. E � literalmente no fundo de um po�o no quintal do vizinho que ele vai refletir sobre sua vida. E, ent�o, o gato reaparece...


Norwegian Wood
O romance � uma bela e triste balada de amor inspirada na can��o hom�nima dos Beatles. Passada nos anos 1960, a narrativa fala da vida do jovem Toru Watanabe, que se apaixona por Naoko, ex-namorada do seu amigo que se matou. A descoberta do amor e a passagem para a maturidade s�o os temas da obra, uma das poucas em que Murakami n�o explora elementos fant�sticos.
 
 
AS OBRAS *

» Sul da fronteira, oeste do sol (2021)
» O assassinato do comendador, vol. 2: Met�foras que vagam (2020)
» O assassinato do comendador, vol 1: O surgimento da IDEA (2018)
» O elefante desaparece (2018)
» Cr�nica do P�ssaro de Corda (2017)
» Romancista como voca��o (2017)
» Ou�a a can��o do vento / Pinball, 1973 (2016)
» Homens sem mulheres (2015)
» Sono (2015)
» Dance dance dance (2015)
» Ca�ando carneiros (2014)
» O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrina��o (2014)
» 1Q84 (trilogia) (2012/2013)
» Do que eu falo quando eu falo de corrida (2010)
» Ap�s o anoitecer (2009)
» Kafka � beira-mar (2008)
» Minha querida Sputnik (2003)
» Norwegian Wood (2005)
» Primeira pessoa do singular (ainda n�o lan�ado no Brasil)

* As datas s�o de lan�amento no Brasil


Beatles, homem-carneiro e gatos

A f�rmula do sucesso dos livros de Haruki Murakami � uma curiosa mistura de narrativas detalhadas do cotidiano dos protagonistas e demais personagens com situa��es inusitadas. Ler uma obra de Murakami, com seu detalhamento, �s vezes excessivo, de cada ato e gesto dos personagens, se vestir, comer, dormir, d� a sensa��o de normalidade e de que tudo se encaixa com o correr do tempo na vida de pacatos cidad�os. Mas, ent�o, de repente, Murakami surpreende o leitor com algo fant�stico, que, por mais estranho, que pare�a, se enquadra na narrativa naturalmente.

� assim desde “Ca�ando carneiros”, da d�cada de 1980, o primeiro romance que lan�ou o autor japon�s ao sucesso mundial. Na obra j� surgem �cones da cultura pop e nada menos do que um homem-carneiro que vive nas montanhas e que aparece de repente na vida do protagonista, ao qual o autor n�o d� nome, um publicit�rio, que ap�s ser amea�ado por um estranho  sai � procura do local onde foi feita uma famosa foto publicada na capa de sua revista

Ou ent�o em “Kafka � beira-mar”, onde h� transposi��o temporal de uma mulher adulta para uma adolescente em um quadro que passa a conversar com o protagonista. Kafka Tamura. Murakami dilui as fronteiras tempo-espa�o para fluir a narrativa de forma t�o natural, que n�o assusta o leitor. Em resumo: como assombra��es que conversam normalmente com pessoas vivas.

Outra obra curiosa � “Cr�nica do P�ssaro de Corda”, em que a vida tranquila e conjugal do protagonista vira de ponta-cabe�a quando seu gato desaparece, abrindo as portas para um mundo diferente. Logo em seguida, sua mulher o abandona. ...sai ent�o em busca do gato e da mulher, numa jornada de autoconhecimento, na qual aparece um p�ssaro cujo canto lembra o dar corda em um rel�gio, que o encanta. Da� ele ganha o apelido de P�ssaro de Corda, de uma adolescente vizinha bem esquisita.

Ah, os gatos. Em quase todos os livros de Murakami, os gatos est�o presentes. Em “Kafka � beira-mar”, Nakata, um dos protagonistas, tem o dom de falar com gatos. Em artigo traduzido pela revista Quatro Cinco Um, ele fala desses felinos: “Sempre havia gatos na nossa casa. Para mim, eram amigos maravilhosos. Eu n�o tinha irm�os, ent�o livros e gatos eram os meus melhores amigos. Eu adorava ficar na varanda (naquele tempo, quase todas as casas tinham varandas de madeira abrindo-se para o jardim) tomando sol junto com um gato”.

Ele, inclusive, conta curiosa hist�ria de sua inf�ncia com seu pai: “Certo dia, quando viv�amos na casa de Shukugawa, fomos at� a praia para abandonar um gato. N�o era um filhote, mas uma gata f�mea, j� adulta. N�o sei dizer por que decidimos abandon�-la, sendo que mor�vamos em uma casa com jardim e espa�o suficiente para criar gatos. Talvez fosse uma gata de rua que resolveu viver conosco, ficou prenha, e os meus pais conclu�ram que n�o daria para cuidar dela e dos filhotes. Naquela �poca, abandonar gatos era muito mais comum, e n�o particularmente malvisto, porque n�o ocorria a ningu�m a ideia de castrar o seu gato. Eu e o meu pai deixamos a gata na Praia de Koroen e pedalamos de volta para casa. Abrimos a porta e nos deparamos com a gata miando alegremente, de rabo espichado no ar. Ela estava de volta, antes de n�s. N�o consegui entender como ela fez aquilo. Voltamos direto, de bicicleta. O meu pai tamb�m n�o entendeu. Ficamos os dois sem palavras”. 


Inspira��o no absurdo kafkiano

Nome certo na lista de favoritos ao Nobel de Literatura na �ltima d�cada – em 2017, o vencedor foi o seu conterr�neo Kazuo Ishiguro –, Haruki Murakami, que completou 73 anos em 12 de janeiro, � avesso a entrevistas, apesar da popularidade gerada pelos milh�es de livros que vende mundo afora, em mais de 50 idiomas. Sem se ater � milenar tradi��o japonesa – samurais, haraquiri, quimonos, ikebana, sushis e mang�s, por exemplo, que inexistem em suas obras –, Murakami � um escritor globalizado, da cultura pop. Dono de uma cole��o com milhares de discos, ele mant�m um programa de r�dio na Tokyo FM desde 2018. Essa playlist gigante aparece com todas as letras em seus livros, especialmente can��es dos Beatles, que, inclusive, d�o nomes a algumas de suas obras. N�o � de surpreender, ent�o, que sua mulher, com quem � casado h� 50 anos, se chame Yoko, mesmo nome da vi�va de John Lennon.

Na literatura, inclusive fant�stica, basta ler suas obras para perceber a clara inspira��o. Exemplos: o autor tcheco Franz Kafka (1883-1924) no livro “Kafka � beira-mar” e no conto “Samsa apaixonado”; assim como a trilogia “1Q84”, que deu fama a Murakami com seu mundo paralelo, sombrio e misterioso, parece ter um qu� de “1984”, obra m�ximo do escritor brit�nico George Orwell (1903-1950). Ele j� traduziu para o japon�s obras de escritores que admira, como F. Scott Fitzgerald, Truman Capote, John Irving e Raymond Carver.

Apreciador de atividades f�sicas e ex-maratonista, Murakami falou, em recente entrevista ao El Pa�s Semanal – quando esteve no Equador para receber um pr�mio liter�rio –, de sua rotina de escritor. “� gratificante, mas � algo que aconteceu com os outros. Eu continuo igual: escrevo de manh�, quatro ou cinco horas, a mesma quantidade de p�ginas, e quando me levanto da cadeira s� quero saber onde a hist�ria me levar�. Por isso, volto no dia seguinte.”

“Escrever romances longos como os meus exige um esfor�o sustentado e met�dico. N�o � um trabalho leve; escrevo com a sensa��o f�sica de dar tudo de mim; administro minha energia como o ar nas maratonas e tento oferecer sempre algo novo. S� espero que o leitor desfrute do livro. Essa � a parte dele”, diz.

Com rela��o conjugal est�vel h� d�cadas e sem filhos, curiosamente, Murakami fala de paix�es frustradas, trai��es, abandono e perdas, normalmente com protagonistas na faixa entre 30 e 40 anos. “N�o sei por que escolho esses protagonistas. Talvez seja esse vi�s pessoal, essa busca de sentido em meio � hesita��o, o que me interessa. � como se nessa idade nos d�ssemos conta de que essa vida � a nossa. Esse processo de apropria��o me intriga. A pessoa j� n�o � t�o jovem, mas n�o � velha. � livre e vulner�vel ao mesmo tempo”, explica.

Sobre a falta de rela��es familiares em seus livros, Murakami destaca: “N�o me interessam os v�nculos familiares, mas sim explorar tudo o que acontece entre um homem e uma mulher. � uma rela��o especial, talvez a mais importante. Voc� n�o pode escolher seus pais ou seus filhos, mas pode escolher seu parceiro e tem de ser respons�vel com essa escolha. Sou casado com Yoko. Ela �, al�m disso, a primeira leitora de meus livros. Por que a escolhi? N�o sei. Penso nisso com frequ�ncia e ainda n�o tenho uma resposta”.

Sobre os elementos fant�sticos em seus livros, Murakami filosofa: “A vida � misteriosa e talvez certas coisas que conto sejam estranhas para outros, mas s�o naturais para mim. Que um esp�rito tome a forma da figura de um quadro ou que haja personagens cujas sombras se desdobrem s�o ideias habituais em minha vida, metaforicamente falando. Como narrador, penso no n�vel da hist�ria; tudo pode acontecer. As crian�as vivem isso com mais naturalidade. Quando voc� � crian�a e em um livro algu�m atravessa a parede, � algo natural. Os adultos dizem: '� estranho'. Sou quase um velho, mas ainda acredito que se pode atravessar a parede, e espero que o leitor tamb�m acredite”.

Murakami vive em T�quio, mas j� morou nos EUA e na Europa. Sobre a cultura norte-americana, ele diz na entrevista: “Fui adolescente nos anos 60. A cultura norte-americana era empolgante, selvagem: nessa d�cada aconteceu de tudo, jazz, rock, literatura, pop. Absorvi isso e sou grato. Mas a cultura dos EUA j� n�o � t�o estimulante. Eu me interesso por pol�tica, mas escrevo fic��o. N�o fa�o declara��es de outro tipo”.

Em outra recente entrevista, desta vez � ag�ncia liter�ria de Londres Curtis Brown, Murakami fala da ess�ncia de sua obra. “Eu n�o costumo escrever obras realistas (com exce��o de alguns contos e de “Norwegian Wood”), mas como leitor gosto muito de escritores e livros com um estilo mais realista. As narrativas que escrevo usando esse estilo n�o s�o, na maioria dos casos, narrativas realistas. Creio que essa separa��o me atrai”, declarou o autor japon�s.

M�SICA CONTRA A UERRA NA UCR�NIA

Murakami usou o seu programa de r�dio no �ltimo domingo (20/3), na Tokyo FM, para fazer protesto contra a guerra na Ucr�nia. Ao tocar a can��o “Never die young”, de James Taylor, e voltando �s m�sicas que marcaram o movimento antiguerra nos anos 1960, o escritor japon�s afirmou: “A m�sica tem o poder de parar a guerra? Infelizmente, n�o. Mas tem o poder de fazer os ouvintes acreditarem que a guerra � algo que devemos parar”.

O programa de 55 minutos transmitido para toda a capital japonesa – a cidade mais populosa do mundo, com 37,5 milh�es de habitantes – foi chamado de “M�sica para acabar com a guerra”, com 10 faixas de sua imensa cole��o de vinis e CDs. “As letras v�o desempenhar um papel importante no show desta noite, ent�o fiquem atentos”, Murakami lembrou aos seus ouvintes. “Ao final do show, tenho a sensa��o de que voc� estar� mais inspirado para acabar com a guerra. O tempo vai dizer.” Em algumas m�sicas, ele citou trechos das letras que traduziu para o japon�s com suas pr�prias palavras, acrescentando antecedentes hist�ricos que inclu�am discrimina��es raciais e sociais enquanto transmitia a mensagem de raiva, tristeza e amor. 


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